Os
portugueses são dados aos exageros. Estamos sempre entre a euforia e o desânimo,
o que nos torna bipolares. Temos o maior número de loiça lavada com uma garrafa
de detergente (Fairy – 1998 – feijoada na ponte Vasco da Gama, a maior do mundo
– dois em um) e não faltam portugueses candidatos a aparecer no livro de
recordes da Guinness.
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Para quem não
sabe, o livro da Guinness nasceu para pôr termo às discussões intermináveis dos
bebedolas nos bares da Irlanda. Não me parece elogioso trabalhar
propositadamente para aparecer... é a versão escrita do «Emplastro» do Futebol
Clube do Porto.
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Pouco
viajados e pouco exigentes, deslumbramo-nos com facilidade. Se tivéssemos
«mundo»... e «ter mundo» não implica só viajar. Ter «mundo» é cultura,
conhecimento, sensibilidade e relativisação, a cultura e a relativização.
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Há
portugueses por todo o planeta e todos partilham um orgulho meio bacoco acerca
do que é nosso. São os portugueses do mercado da saudade, que consomem o que
vem do rectângulo e ilhas adjacentes, só por virem do rectângulo e autonomias.
Por isso, vi espumante Raposeira à venda numa loja em Reims.
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Um aspecto
que se prolonga até aos jornalistas, que, muitas vezes, não fazem o que estão
obrigados. Saber mais, perguntar mais, falar com mais gente. Em 2008, um vinho
português passou a ser «o melhor do mundo».
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Passou? Não,
não passou. Mas o comunicado, escrito por um ignorante ou cínico, da Câmara de
Palmela, incendiou as redacções: o Casa Ermelinda Freitas Syrah 2005 venceu o
Grande Prémio Especial do Júri (ou algo assim – foi o mais pontuado) no
concurso Vinalies Internacionales de Paris.
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É um bom
concurso, mas colocá-lo-ia no fim da lista dos melhores certames. Ganhar é
sempre bom, mas aquele vinho, em concreto, não era o melhor do mundo. Porquê?
Porque em concurso não estavam todos os vinhos do mundo. E quem é quem para
dizer o que quer que seja... um júri são pessoas, todas elas falíveis e que,
estatisticamente, podem estar todas erradas. Não vou por aí e o vinho era bom,
sim senhores.
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Há vinhos que
nem vão a concursos, ou porque não precisam ou porque poderiam sair-se mal e lá
cairia a aura de santo príncipe dos néctares de Baco. Com o palmelense Syrah
2005, tão inchados, os portugueses correram às prateleiras das lojas para
comprar «o melhor vinho do mundo».
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Assisti a
conversas e vi, com estes dois que tenho abertos para a alma, à demanda dos
curiosos... e diverti-me quando, na ausência do 2005, outro qualquer ano
servia. E quando já não havia Syrah, marchava outro, como que se «o melhor do
mundo» passasse por osmose a toda a obra do enólogo Jaime Quendera, na vinícola
Casa Ermelinda Freitas.
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Não sei de
preços, mas aposto que os 8,50 euros de preço recomendado pelo produtor se
tenham multiplicado, para contentamento dos comerciantes. O português, que quer
vinho barato, não se importou de pagar mais, só para experimentar e perceber o
que é ser-se «o melhor do mundo».
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Este é um
exemplo de falta de «mundo». Um outro é acreditar que a marca comercial «O melhor
bolo de chocolate do mundo» é um facto real, que traduz uma sentença dada por
alguém com poder para tal. O bolo nem é nada de especial, e falta «mundo» aos
portugueses.
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Por isso,
temos o melhor vinho do mundo... o melhor queijo... a melhor comida... Certo,
certo. Também é verdade especialistas mundiais da cozinha gostam de se
abastecer de peixe da nossa costa. Esse facto, que não resulta de concurso, e é
formado por gente não concertada ou formada em júri, pode traduzir-se no «”melhor”»
peixe do mundo? Pode? Não! Mas é um excelente reconhecimento ter alguns dos mais
reputados chefes de cozinha do mundo a comprar peixe português.
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Portugal
salazarento era a preto e branco, silenciado, fechado na mesquinhez duma
ditadura que considerava que aos portugueses bastava saber ler e contar. Havia
miséria e subdesenvolvimento.
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O que foi a
vaga da emigração? Poucos se lembram ou sabem das condições deploráveis em que
viviam os portugueses na cintura de Paris, nos bidonville. Podia haver miséria,
mas tinham bacalhau e couves penca, garrafão de tinto da aldeia. Sim, levaram Portugal
atrás. Como fizeram os italianos nos Estados Unidos ou os japoneses no Brasil.
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A pobreza
provinciana trouxe a Lisboa (e a outras cidades) esses rurais em busca de
melhores condições de vida. O país rural é quase urbano e as auto-estradas «encolheram»
o território. Hoje, 2,9 milhões de pessoas vivem em torno de Lisboa e quase 2,3
milhões ao redor do Porto.
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Os pais vão à
terra e a segunda geração na cidade passeia-se nos centros comerciais, com bonés
americanos e/ou fato de treino. As segundas e terceiras gerações nas cidades
têm «vergonha» das suas origens campestres.
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Os
portugueses papam tudo! Uns patinhos! Comprámos o Dia de São Valentim e o
Halloween, um carnaval fora de época. E no Entrudo adoptamos o tropical
samba... com suas miúdas descascadas, em pleno Inverno, habitualmente frio e
chuvoso.
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Há décadas
fritámos em óleo e temperámos com caldos salgados, em cubos. Desenganem-se,
esses produtos ainda se vendem e muito. Outro dia espantei-me ao ver temperar
uma salada com óleo, sei lá se de girassol, amendoim, sésamo ou milho. Óleo?
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As gerações
que vieram procurar uma oportunidade de vida nas cidades ou na estranjas usavam
azeite oxidado, talvez lampante... depois renderam-se aos óleos industrias, de
sabor quase neutro. O azeite fazia mal, dizia uma indústria, alguns médicos e
vários comerciantes.
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A
desruralização quebrou agriculturas. Uma amiga italiana disse-me chocada que,
quando veio a primeira vez a Portugal, se admirou com as poucas variedades de
hortícolas... Falta? Temos imensas! Mas não chegam à cidade ou desapareceram.
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Não me fico
pelos ingredientes, mas pelas comidas. Além dos bifes com batata frita (que
entretanto perdeu o dito «ovo a cavalo»), a variedade de receitas tradicionais
resume-se a uma vintena, se tanto.
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Depois, a boçalidade
e a errónea genialidade faz com que proliferem coisas que têm nomes de coisas
concretas, mas que não são a mesma coisa. Exemplos: amêijoas à Bulhão Pato já
comi com manteiga, cerveja, vinho branco e mostarda – até talvez com tudo ao
mesmo tempo; leitão à Bairrada com batata frita, iscas com batata frita,
alheira frita com batata frita e ovo frito. Vegetais, hortícolas? Não sei onde
comem os meus leitores, mas caso isto que escrevo seja desconhecido, vede os
cafés (!), cada prédio tem um.
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Se querem
fazer essas, e outras coisas, que lhe chamem outras coisas. Um burro é um burro
e um cavalo é um cavalo e não é por deixar que lhe dêem festas que um gato se
torna num cão.
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Nas portas
que dão para as ruas, verduras, comida abundante durante séculos resumem-se a
alface, tomate, às vezes cebola e raspas de cenoira. E o pimento? E o pepino? E
os orégãos? Não sei onde comem, mas vejam.
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Já escrevi
(no infotocopiavel.blogspot.com) que esta crise veio provar que adormecemos europeus
e acordámos portugueses. Nos tempos em que o dinheiro brotava e o crédito era barato,
graças a estarmos no euro – aliás, começou no cavaquismo – viajámos e vimos
mundo, mas aprendemos algumas coisas? Fomos para a praia e fizemos bem. Só isso
ou pouco mais que isso.
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Lembro-me
quando andar de avião implicava vestir melhor e pagar caro. Com o dinheiro do
crédito, os portugueses passaram a gritar, nos autocarros, nas ruas, que tinham
ido a Cuba, Brasil, México, República Dominicana... gritavam, como gritavam os
emigrantes quando vinham de férias «à terra» e mostravam a bagnole e começavam
a construir as suas maisons com janelas tipo fenêtre.
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Uns, mais
urbanizados, descobriram que havia um país aqui ao lado... lá havia (há) uma
sopa que se come fria, chamada gaspazo... pois, da Beira Baixa ao Algarve
sempre esteve (esquecido) o gaspacho. Estes tugas urbanizados deliciam-se com
rúcula, porque desconhecem a eruca. E por aí fora...
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Estes são
exemplos de falta de cultura. Cultura não é só literatura, cinema e pintura.
Nada há de mais nobre do que comer (incluindo beber). Há outro tipo de
incultos, os que se fecham às massificações... o mundo não pára e, tal como nas
antiguidades, há bom e mau. Que mal tem o MacDonald’s e a Coca-Cola? Cabemos
todos, mas uma só coisa, não.
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Voltando às
peneiras do melhor do mundo... somos incongruentes. Temos o melhor vinho do
mundo (e não me refiro àquele syrah de atrás), mas 90% dos vinhos vendidos em
Portugal têm um preço até cinco euros. E 80% até três euros.
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O vinho, pura
e simplesmente, não tem valor. Não lhe damos valor. A questão não pode ser
vista no ângulo do bom é sempre caro. Todavia, o bom não pode nem deve ser
barato.
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Os
portugueses, que acham uma fortuna dar cinco euros por um vinho, pagam 1,10
euros por uma água engarrafa (0,25 litros), 1,50 euros por uma Coca-Cola (0,33
litros), 0,60 euros por um café (30 mililitros) ou sete euros por um copo de vodka
corrente (atestado, porque é para bater) quando saem à noite.
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Depois há a
mania (compreensível) de fazer o cálculo entre a relação a qualidade e o preço.
Para mim vale quase nada, pois o mau será sempre mau e prefiro não ter. Há uns
anos a esta parte que deixei de ir jantar fora... e não foi por causa da
relação entre a qualidade e o preço, mas por causa da falta de dinheiro para
pagar o bom.
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Numa crónica
antiga (2006 – ainda hoje é dos textos no top dos mais lidos no blogue) disse
mal dum restaurante, o Mal-amanhado. Choveram-me impropérios em cima, discussãoinfindável até ameaças, mais ou menos óbvias, de me quererem bater – por acaso
o cozinheiro chamava-se Barbosa; somos danados. A dada altura, uma defensora do
restaurante justificou que (não ipsis verbis) o restaurante era bom, se
olhássemos para o preço.
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Só que preço
e qualidade são coisas diferentes. Ou se consegue ter, comprando, recebendo,
roubando, ou... o mau nunca será bom nem sofrível. Ah! Mas gostos, tal como a
arte, discutem-se. Respeitem-se as opiniões, mas discutem-se. Já a qualidade é
mais difícil de debater e aceitar... luta que exige conhecimento, cultura,
«mundo».
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Um dia tinha
marcado um jantar no Tavares, provavelmente o mais antigo restaurante
português. O emblemático e aristocrático Tavares, na rua da Misericórdia
(outrora rua do Mundo – por lá se situar a redacção desse jornal de referência da
viragem dos séculos anteriores). Passeando pelo Bairro Alto, cruzei-me com o Fulano,
proprietário do restaurante O-Í-Ó-Ai (invenção), que estava com o seu filho Cicrano.
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Em
adolescente e mancebo costumava frequentar a casa. A mina de ouro em que se
transformou o Bairro Alto fez-lhe subir os preços além das minhas posses... não
é bem assim, mas não quero explicar. Perguntaram-me:
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– É hoje que
finalmente vens cá jantar?
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Respondi-lhes
que não, que ia ao Tavares. Fizeram um esgar...
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– Ao Tavares?
Não vale nada ...
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– Já alguma
vez lá comeram?
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Não. Mas
sabiam que não era bom. Tinha a discutível Estrela Michelin, mas isso não
importava (e talvez não importe mesmo). Isto traduz é o sentido português em
que só o popular (popularucho) é que é bom. Mesmo que seja apenas, e tão só,
barato.
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Calcular a
relação entre a qualidade e o preço é legítima, não o nego, mas a mim
interessa-me muito pouco. É claro que por vezes também faço esse raciocínio.
Dou dois exemplos:
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Em 1999, fui
com a minha namorada a um tasco no Bairro Alto. Grelhados bem-feitos e gente
trabalhadora e simpática. Custou a refeição 4.700 escudos e fez-se de manteiga,
pão, prato, vinho (popular), sobremesa e café. Na semana seguinte fui à Bica do
Sapato e o pão, manteiga, prato, vinho (popular), sobremesa e café custaram-me
5.100 escudos. Já naquela altura a diferença de preço era mínima, mas não a
confecção, o empratamento, o serviço, a decoração, a luz... Em 2006, almocei
com a minha namorada (outra) na Portugália, no Cais do Sodré. Manteiga, patês
industriais, pão industrial e mau, bife da vazia com batata frita, duas
imperiais e café custaram-me pouco mais de 15 euros. No dia seguinte fui com Raul
Durão (referência do jornalismo televisivo, já falecido) ao Magano, em Campo de
Ourique. Vieram entradinhas boas, da «terrinha alentejana», bom pão alentejano,
prato, vinho (acessível) e café... 16 euros.
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O que há de
errado? A falta de cultura e de critério. Achamos caro um vinho de cinco euros,
mas aceitamos ser «roubados» numa cervejaria industrial.
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Ao contrário
das certezas dos analfabetos, os «sábios» têm mais dúvidas, por isso procuram
mais. Nessas buscas encontram respostas, mas também mais dúvidas. É disso que
se faz «o mundo». Não apenas na gastronomia, em tudo.
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É feio, mas
vou auto-citar-me ou fazer pior: plagiar-me. Escrevi há poucos dias, num texto
acerca de José Bento dos Santos, proprietário da Quinta do Monte d’Oiro,
gastrónomo sábio.
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Abro aspas: «Aparte.
Contaram-me uma vez que um famoso financeiro (não me recordo do nome) fazia as
entrevistas finais aos candidatos a um emprego qualificado. Uma equipa já teria
questionado, passado por testes de vária ordem e ficando «licenciados» teriam
de ir à oral com o banqueiro.
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Certamente
nervosos, do que iriam falar? Do óbvio, cifrões, parcelas, margens, taxas de
juro, spreads... ou... música, desporto, gastronomia, ciência, banda desenhada
ou outra arte... e era aqui que entrava a decisão. Gente que sabe fazer contas
e tem olho para o negócio até abunda, mas quem tem «mundo» tem a vantagem de
saber usar microscópios e telescópios, transmitindo esse conhecimento
transformado em cultura. Quem tinha «mundo» era quem ficava com o lugar, ainda
que tivesse conversado acerca dos lacraus do Saara e o banqueiro disse não
soubesse. O financeiro lia os olhos, a expressão da boca, a dança do corpo, a
vivacidade, as vistas largas».
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Agora os
marketeers (estrategas de mercado) agarraram o vocábulo francês gourmet. Julgo
que só não há pastilhas elásticas gourmet. Qualquer banalidade pode ascender à
categoria de gourmet. Hão-de cansar a palavra – porque o povo pode ser
ignorante, mas não é estúpido. Um dia dizer gourmet será o mesmo que dizer
fécula de batata.
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Quando um
português diz que «ali se come bem» quer dizer que «ali as doses são bem
servidas», ou seja: têm muita comida. Por tudo o que já escrevi, já se percebeu
que considero que o português não é gourmet (gastrónomo), mas gourmand (comilão).
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Vou parar com
a comida. Tentando mostrar que tenho algum (quiçá mínimo) «mundo» vou escrever
acerca de coisas que andam à volta da comida e não são de se comer, ou apenas
isso.
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Comer tem
algo de sagrado. Não é por acaso que em todas (palavra perigosa – arrisco-me)
as culturas a mesa é o corolário. Podem variar no género, no momento... são
sempre simbólicas. À mesa fechamos um negócio, à mesa seduzimos, à mesa somos
aceites numa tribo...
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Compreendo
perfeitamente os vegetarianos (de todo o género), aceito argumentos. Mas há um
que lhes falha e é intrínseco à espécie humana: dentes caninos. Comemos
animais, criaturas de Deus ou apenas viventes, devemos-lhe respeito e
agradecimento por nos alimentarem. Não devemos matar animais para comer, mas
sacrificá-los, num sentido religioso, de fé ou de sagrado. Devemos ter presente
que nos vão dar vida.
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Comer é um
acto da maior importância. E é pena que em Portugal não existam tantas recolhas
etnográficas acerca do que comemos e como comemos, como as há sobre os trajes,
a música ou o trabalho (etc).
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Homem que
buscou nas raízes musicais populares portuguesas argumentos de trabalho falhou
ao desprezar o alimento que lhes sustentou as vozes e mãos. Mesmo os génios têm
lados negros. Fernando Lopes Graça (1906 – 1994), um dos maiores compositores
eruditos portugueses do século XX, e com reconhecimento mundial (pelas elites
cultas, provavelmente), desprezava a comida – ou, pelo menos, assim me parece.
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Afirmo-o por
saber que quem o recebia em sua casa estava «proibido» (literalmente) de pôr
música a acompanhar a refeição. Lopes Graça não considerava tão nobre o
alimento do corpo quanto aquela comida para a alma.
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Um outro
exemplo, assisti (horrorizado) a José Duarte (que só aceita como perito em
jazz, em Portugal, cinco pessoas, embora só fale a três ou não fale a três –
ouviu-o afirmar isto numa entrevista na rádio, numa arrogância incomodativa) a
espancar o vinho, qual fanático maometano. Num interessante debate sobre música
e vinho – uma iniciativa descontinuada pela Adega Mayor, que reunia à arte do
vinho uma outra actividade cultural – José Duarte, de cátedra de Inquisidor do
Santo Ofício, arrogante e insuportável, destratou o vinho, coisa de alcoólicos.
Não disse, mas pensou, que nem admitia que pudesse ser arte. Música no alto e
jazz no topo, tudo o resto é para mortais imbecis, deve pensar.
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Com uma falta
de educação deplorável, admoestou um presente por ter tropeçado, na boca, no
nome de Ella Fitzgerald. Como era possível?! O senhor, que é um senhor sorriu.
Apenas tropeçara no nome, não no seu conhecimento.
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Ao contrário de Lopes Graça e José Duarte há quem tenha maior flexibilidade
de espírito (é forçado, mas referir «cultura» seria totalmente estúpido da
minha parte). Há dias, no 25 de Abril, o hotel Conrad Algarve, em Almancil,
promoveu uma harmonização entre música clássica, vinho e comida, do chefe
Andrew Macgie. Lopes Graça não gostaria e José Duarte não conta, não ficará na
História, apenas nas sebentas da Universidade de Aveiro, entidade a quem cedeu
a sua vastíssima colecção de jazz.
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Pois, o vinho
é muita coisa. Além do industrial, do de autor e do popular, o vinho é
alimento, é objecto religioso, é droga (social no Ocidente), é divertimento... e
pode um excelente vinho ser mau por se deixar contaminar por ambiente hostil e
vice-versa. Além do mais, como qualquer arte, tem momentos... a praia, o
churrasco, a tasca, o salão nobre, é história, o Natal, o fim de ano, o
casamento, o nascimento dum filho, o médico que nos salvou a vida, a
apresentação ao sogro, tradição e história... além do mais, o vinho é vida. O
vinho é arte viva. E as três categorias que elenquei no início podem ser todas
estas coisas.
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O vinho é a liberdade
que se quiser!
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Com mais
visão que Lopes Graça ou José Duarte, os proprietários do Château Mouton
Rothschild têm vindo a pedir (e pagar) a artistas que pintem propositadamente para
os seus rótulos. E à lama não caíram as almas de Miró, Picasso, Kandinsky,
Tàpies, Warhol, Francis Bacon, Chagall, Delvaux, Keith Haring, Arman, Henry
Moore, Dali, Braque, etc... ecletismo e consonância com épocas. José Duarte é
quem?
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Por cá,
felizmente, também há visão do casamento entre o vinho e as artes plásticas.
Não tem a aura nem a antiguidade da referida vinícola de Bordéus, mas mostra o
que fazem os nossos artistas. Desde o lançamento do seu primeiro vinho, em
1985, são já 24 os artistas que iluminaram os rótulos do Esporão.
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Bual, Costa
Pinheiro, Dórdio Gomes, Graça Morais, José Pedro Croft, Guilherme Parente, João
Hogan, Julião Sarmento, Júlio Pomar, Pedro Cabrita Reis, Pedro Proença (o meu
preferido), Pedro Calapez... E para a Quinta dos Murças, no Douro, o Esporão dá
a conhecer fotógrafos. A propósito de Pedro Proença: ilustrou a colheita de
1999, comercializada em 2001. Um homem de turbante deliciava-se com uma taça de
vinho – o 11 de Setembro obrigou ao arrebanhar das garrafas e voltar a
rotulá-las. Hoje, essas «proibidas» serão objectos de colecção e provavelmente
terão preço superior. José Duarte é quem?
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Ao Esporão só
critico uma coisa: não promover mais mediaticamente os duetos. Não sou pago
para ter ideias, não sou publicista, fui gestor de comunicação... nem me quero
meter onde não devo, no caso a política da vinícola e da sua assessoria mediática...
ainda assim, atrevo-me: Por que não uma festa (vernissage está démodé e só dá
para poucos)... uma festa multi-artes. Pelo menos, exposição no sítio da internet, com memória escrita e visão do artista.
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Tenho de ser
justo... se há quem na intelectualidade despreze o vinho há também quem no
vinho não veja mais do que produto e comércio. A Comissão Vitivinícola Regional
do Alentejo censurou uma obra de Paula Rego, provavelmente a mais conceituada
artista plástica portuguesa, que iria iluminar o Esporão. A CVRA será sempre uma
repartição, cinzenta e anónima, e a artista um capítulo ou um livro. A arte é
eterna e divina, ou resto são folhas de Excel.
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Nem Mouton
Rothschild nem o Esporão são casos únicos. Certamente que, num planeta habitado
por mais de sete mil milhões de pessoas, haverá outras adegas, maiores ou
menores, com um relacionamento com as artes. Não contabilizo o banal
patrocínio.
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João Barbosa,
um homónimo simpático e educadíssimo. Que saibamos não temos parentela...
talvez os nossos sangues só se cruzem na origem, no primeiro que tomou o
vocábulo toponímico. Sancho Nunes de Barbosa (1070 – 1130) que se casou com Teresa
Afonso, filha ilegítima de Dom Afonso Henriques. Este produtor das regiões do
Tejo e Alentejo escolheu para emblema uma Graal do reino vegetal... um dos dois
(que eu saiba) na botânica: a Rosa Azul e a Tulipa Negra.
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Mas isto, assim a cru, é pouco do que tem para contar João Barbosa (adoro o pinot noir deste senhor)... acrescentou ao seu Graal uns degraus de dificuldade: sólidos impossíveis. As artes são de António Quintas, que se baseou na obra do arquitecto e artista visual Maurits Cornelis Escher. Confesso que quem me assaltou a memória foi o húngaro Victor Vasarely, autor do sólido impossível que serviu a Renault durante décadas.
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Outro senhor,
muito dito por aqui.
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Conversar ou
apenas ouvir falar José Bento dos Santos é um duche de conhecimento, mais do
que conhecimento, sabedoria, de tudo o que vai à mesa e tanta coisa que anda à
sua volta e mais uma tanta que anda à volta da que anda à volta. Benditos
programas tinha na televisão – serviço público – embora criticando o formato,
mas isso é técnica, ofício, não é conteúdo.
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O novo
milénio, tenha ele começado em 2000 ou 2001, trouxe (o novo milénio começou
antes, em contextos) coisas novas, como o fenómeno dos DJ. Antigamente
gostava-se de músicos, agora apreciam-se também os homens dos pratos de discos,
dos efeitos musicais. Novas danças.
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A essa vida
junta-se a jovem arte urbana, outrora apenas clandestina, ganhou estatuto e
hoje tem artistas reconhecidos. Nesses referidos encontros das artes com o
vinho, a Adega Mayor convidou vários a interagirem com garrafas (tenho uma) e
fez-se um debate.
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Quem se
apresenta novo sucede. Sucede a maneirismos, uns vivos, outros moribundos e
outros mortos. Os cerimoniais das mesas, as hierarquias do sentar, o lado em
que se põe o guardanapo (sigo a tradição portuguesa de o colocar à direita), do
servir, da sequência dos copos, da chegada do queijo, da vizinhança da salada.
Dos talheres de ferro, de prata, de madeira, de «christofle» e das mãos.
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As mãos? Há melhor
forma de abrir um pão? O pão é «o» alimento e é sagrado. Com as mãos, abrimo-lo
como a carcaça dum animal, gesto ancestral, primordial. O pão que, para Pablo
Neruda, é o mais nobre dos alimentos.
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A Portugal
chegou tarde o fenómeno do chefe de cozinha, embora tenha existido sempre gente
capaz de orar acerca de alimentos e como olhos abertos além fronteiras. Não
quero ser injusto por presunção, mas Portugal era Maria de Lurdes Modesto
(grande senhora e sábia da comida) e o chefe Silva (grande profissional «doutro
tempo»)... mas também do Michel, do Capote, da Vacondeus... com os devidos respeitos,
não têm o mesmo substrato que os primeiros.
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A minha
memória de 44 anos situa no novo milénio (que começou antes) o culto dos chefes
em Portugal. Gastrónomos acompanham as obras como os melómanos os seus
compositores...
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Falei aqui no
sábio José Bento dos Santos... foi um dos responsáveis para que (o estrelado
Michelin) Joachim Koerper viesse para Lisboa, para o Eleven, no topo do Parque
Eduardo VII; em Lisboa.
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Gostos
discutem-se! Respeitam-se, mas discutem-se... não gosto da comida de Joachim
Koerper, como não gosto de Verdi. Quanto a mim falta-lhe alma, ao músico
sobra-lhe. «Venero» José Avillez (também estrelado Michelin) e Wim Mertens,
pela força, temperamento, subtileza...
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E o mundo de Avillez não está só na
cozinha... ele e o seu prato Pollock – nele brilha a carne da raia, apesar de
pollock ser escamudo, peixe que, na década de 80, imitava o bacalhau, rarefeito
pelo preço... sim, o Fundo Monetário Internacional não esteve só agora em
Portugal, embora Mário Soares se tenha esquecido e apele a revoltas e «ao por
muito menos do que isto mataram o Rei Dom Carlos»... Vem isto a propósito? Vem,
vem a propósito, vem, porque se tratou de fome e este é um texto de gastronomia...
nesses idos, havia um «bispo vermelho», Manuel da Silva Martins, em Setúbal,
epicentro da crise, que criticava a situação do país, em particular do seu
distrito...
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Quantas vezes
a fome não criou iguarias... cultura de almanaque: a cozinha alentejana, as
suas muitas ervas, o cação e as amêijoas que não pagavam impostos e a carne de
porco. Isso, isso, isso... e a cavala, quem diria há uns anos, elevada à alta
cozinha, por José Avillez. E com falta de «mundo», profissionais bem capacitados, mas sem estrela (de iluminação de espírito), rosnam por Avillez ser menino queque e não um proletário.
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Regressando
ao vinho... a arquitectura teve sempre uma relação mais óbvia com o vinho. O
vinho tem de ser feito em algum lugar, exige elementos funcionais e
industriais, por mais pequena que seja a vinícola.
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Em Espanha,
temos fábricas de Santiago Calatrava, Frank Gehry, Philippe Mazieres ou Herzog
& de Meuron. Por cá, com renome internacional, temos (que me lembre) Álvaro
Siza Vieira na Adega Mayor, na Quinta do Portal – confesso que não aprecio a
arquitectura (genericamente) de Álvaro Siza, aborrece-me tanto branco, que
chega a induzir melancolia. Tive acesso a desenhos (e é fácil encontrar numa
pesquisa na internet) de Siza Vieira e que traço! Que força simples e quase
frágil, em que muito pouco mostra muito.
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A 30 de
Abril, no Porto, a Adega Mayor ofereceu a Álvaro Siza Vieira o seu vinho, um
alicante bouschet rico e complexo (terá crónica em breve aqui no blogue), bem
alentejano. Não é caso único, Pedro Abrunhosa também tem o seu, lavrado pelo
duriense Dirk Niepoort.
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Enquanto cá
coleccionamos saca-rolhas (com devido respeito pelo indispensável apetrecho e seus
ajuntadores), em Espanha mostra-se um incrível museu, reconhecido como valoroso
no seu ano de abertura, em 2004, pela UNESCO (Organização das Nações Unidas
para a Educação, Ciência e Cultura).
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O Museu
Dinastia Vivanco, além dos saca-rolhas, tem para mostrar peças egípcias,
gregas, romanas, moçárabes, medievais... contemporâneas. À entrada vi uma
exposição sobre o vinho e a mulher, no espaço das mostras temporárias. Desde
hilariantes saca-rolhas em «T», em que cada parte era uma perna e, sobre o
sem-fim, uma vulva, a capas da Playboy ou uma pintura de Paula Rego. Lá dentro,
prensas das várias regiões espanholas, objectos de trabalho e arte.
Apaixonei-me por um Sorolla.
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Não sei como
viveria em ditadura. Sou muito afirmativo, a roçar o autoritário... como o meu
cão, que ladra e rosna, mas abana sempre o couto de cauda (fizeram-lhe essa maldade).
Para mim, podem dizer que tudo o que escrevi acima é mentira ou mais-ou-menos
mentira. Podem discordar de gostos, podem criticar-me o tom, certamente mais
manso se dito cara-a-cara...
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Como qualquer
pessoa (como de alguma forma fiz – justa ou injustamente – no começo deste
texto) não gosto que me insultem ou, pior, que pensem por mim. Há uns tempos,
há mais dum ano zanguei-me com a revista Wine – não com ninguém, que sou homem
de paz.
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A Wine valia
(vale) pelos colunistas. Comprava-a para ler mestres e com eles aprendi alguma
coisa. Um dia saiu um texto que me fez sentir insultado. O influente José Peñin
dissertou sobre o que é saber beber vinho... uma coisa de escol, que eles (e
poucos) conseguiam, que era beber (bebericar, como passarinho – certamente) vinhos...
diferentes aos bárbaros, imbecis, bruta-montes... ele e seu escol sentiam a
sedução do álcool e não se deixavam cair em tentação.
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A embriaguez,
para Peñin, é uma espécie de doença de pobre de espírito. Como se os vapores de
Baco não tivessem inspirado tantos artistas... embora não fosse com vinho, que
musa acompanhou Henri de Toulouse-Lautrec? O álcool, sob a forma de absinto.
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Se Peñin
tivesse pensado um bocadinho talvez percebesse que foi o álcool que manteve o
vinho vivo. O álcool e a higiene da bebida, quando a água podia envenenar. Sim,
o álcool é um tóxico e está integrado na cultura de quase todos os povos dos
velhos continentes. E só aí, sendo tão danoso para as vidas e saúde pública de
comunidades onde era desconhecido até à chegada de europeus, nomeadamente entre
os ameríndios. Tóxico como heroína ou crack! Literalmente. Aparte: O National
Geographic Channell emitiu um documentário impressionante sobre o alcoolismo no
Alasca. Sim, naquele Alasca o álcool é degradação total, incluindo
criminalidade.
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Sentir o
cantar das musas, quando se fica de pé a flutuar dez centímetros acima da
realidade, é divinal. Ajuda a criar e a pensar. Talvez, por estar absolutamente
sóbrio, este texto não me tenha saído tão bem.
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Em acto de
contracção, digo: talvez tenha exagerado na tareia que dei aos portugueses numa
boa parte do texto. Tenho direito de o pensar, mas talvez me tenha faltado o
engenho da delicadeza. Snob ou sem nobreza.
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Nada disto tem a ver com sofisticação ou popularidade. Com aristocracia e povo. Bom é bom e mau é mau. Sim, a tascas onde se cultiva a comida melhor que num palácio. Haja sabedoria.
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Em, «O clube
dos anjos», Luís Fernando Veríssimo (filho de Eurico Veríssimo) narra um
policial à volta da mesa. Um grupo de amigos, entrados no mundo da gastronomia
pela porta do picadinho à mineira, foi evoluindo na exigência. O círculo definhou
com o falecimento do seu motor. Um dia, surge um cozinheiro genial e o clube
regressa à vida. Contudo, um a um, os membros foram morrendo. Morrendo
envenenados pela gula. Morriam ao saborear a comida predilecta. Perceberam quem
era o homicida e ainda assim deixavam-se morrer. Neste policial, o picante está
no «porquê», que só se sabe no fim. Pois a minha iguaria favorita são pezinhos
de coentrada e os melhores que traguei foram do simpático mestre José Avillez.
Morreria, de homicídio-suicídio, se fosse ele o carrasco do livro e eu membro
do clube.
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Tudo se
discute, sobretudo o gosto.
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Música (por ordem de entrada):
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Fernando
Lopes Graça – Acordai – pela Tuna Académica da Universidade de Coimbra
DJ Patife –
ao vivo no Sumol Summer Fest
Wim Mertens –
Struggle for pleasure
Pedro
Abrunhosa – Se fosse um dia o teu olhar
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Artes visuais (por ordem de entrada):
Vicky Neumann
– Picnic Fastfood
Richard
Lippold
António
Quintas
Maurits Cornelis Escher
Victor Vasarely
Jackson
Pollock
Álvaro Siza Vieira
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