digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, abril 18, 2014

Numa noite normal

Como posso dizer a um morto que está morto se também estou.
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Jantar à luz de círios, monólogos curtos e parcos.
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A colher toca na faca quando ia pra encetar a sopa. Sopa de abóbora.
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Acho que é de Bucelas.
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O tinto faz figura de corpo-presente.
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O copo da água é de vidro martelado e o guardanapo bem passado estava à maneira portuguesa antes de o pôr no colo.
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Está mogno. Não há conversa.
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Não faz sentido jantar sem velas. Círios são para mortos.
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Uma alegria seria ridícula.
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Que se festeja?
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Um funeral sem defunto.
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Entorno uma pinga de vinho na toalha branca.
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Felizmente ninguém diz: sinal de alegria.
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Não há pior do que o enfado do que o enfado genuinamente enfadonho.
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Que alegria seria essa? Apressar a lavagem da toalha? No dia seguinte, sem convidados servirá bem. Nas refeições seguintes também.
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É admirável a tristeza como a dum jantar à mesa com um morto sem cadáver.
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A sopa, já disse, é de abóbora.
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Penso: se houvesse peixe, seria pargo. Assado no forno.
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A carne e a Páscoa. Não sei como sobrevivi. Nessas décadas cumpriam-se os preceitos e não comia peixe. Conheço-lhe alguns cheiros.
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Penso na palavra paixão. Coisa estúpida!
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Por que nos alegramos com a dor?
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Ou que chamamos dor a coisa boa?
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Borrego assado com batatinhas, cebolinhas e cenouras.
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Cai mais um pingo na toalha e ninguém mostra ter reparado.
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Foi de tinto, mas podia ser o que se quisesse, tão benfeitinho que está.
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Benfeitinho é normal. É bom ser normal? E se o ser normal, que é bom, for uma porcaria?
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Tive uma faísca de inteligência. Uma fuga da sacristia onde janto.
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Como se consegue ser tão estúpido para jogar pokker com gajos de chapéu e óculos escuros.
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Nunca jogaria pokker com escumalha.
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Há quem veja disso na TV.
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Aliviou-se-me a tensão. Há gente mais estúpida do que eu.
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Volta a luz de círios e caiu uma gota de tinto na água. Não quero saber.
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Nem vinho. Nem mulher. Nem amigos. Nem companhia. Nem ninguém.
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Jantar à luz de círios. Alguém morreu?
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Todos e jantamos sem cadáver à mesa.
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Nota: A V, P e I.

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