digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, fevereiro 16, 2014

Comida de Santo - o que é que a Baía tem em Lisboa

Se não foi o primeiro, terá sido o segundo restaurante brasileiro em Lisboa. A minha estreia foi noutro. Mas neste, o do Príncipe Real, que me recebeu barrigadamente. Do outro tenho memórias de sangue; deste, memória de leveza na vida.
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O Comida de Santo abriu as portas em 1981... tinha 11 anos e Lisboa estava a modernizar-se. Os bigodes rapavam-se, as calças à boca-de-sino tornaram-se roupa para fazer esfregões... os brados da revolução democrática já não pesavam tanto na vida e na música.
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Mil novecentos e oitenta e um mexeram-se com os Heróis do Mar, a primeira banca com estética na roupa, fardas de músico, evocação nacionalista, que irritou a malta mais à esquerda, que lhes chamava fascista.
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Mil novecentos e oitenta e um, um agitador de visual fora-de-tudo arrasou a televisão, num programa para toda a família, em que Júlio Isidro juntava o que hoje é inconciliável. De macacão amarelo, com bolas as nódoas de tinta, barba farta, cabelo oxigenado, uma força tremenda...
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Mil novecentos e noventa e um quase ninguém tinha televisão a cores António Variações... desde 1978 que andava a cantar e ninguém lhe ligava. Nem os Heróis do Mar, quando estes fizeram um casting para vocalista.
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Mil novecentos e oitenta e um era tudo novo, não era só eu. Saía-se do país com mais facilidade, descobria-se a Europa, vinha roupa de marca e de formatos diferentes. A Guerra Fria estava no auge e havia algum medo.~
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Mil novecentos e oitenta e um e não existia o bar Frágil no Bairro Alto. Aqueles quarteirões tinham tabernas, tascos, putas e dancings, tinham jornais e jornalistas... Um ano depois surgiu um dos mais icónicos bares (dançantes) da capital.
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Quem ia à frente, ia ao Frágil. Era gay friendly, numa época em que muito pouco dava direito a ser chamado de maricas e paneleiros. Ali havia outra música e pensamentos novos.
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Mil novecentos e oitenta e um e a móvida (movida, em espanhol) de Madrid estava no auge, farol de toda a Europa, excepto Londres. Com Espanha já ao lado... artistas, jornalistas, comerciantes de arte... romperam Lisboa.
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Todos os anos, Manuel Reis, Rei do Frágil e desde 1998 Rei do Lux, mudava o cenário das duas salas onde se dançava e conversava. Gente gira, gente diferente, onde se podia ser tudo. E eu na escola a ouvir Heróis do Mar.
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Em Madrid, a lua da móvida estava cheia e em Lisboa em quarto crescente. Misturava-se gente, conceitos, as novas tendências juntavam-se mais do que se afastavam... e eu entrei no Lux com o meu pai, não sei bem porquê, em 1982... talvez.
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Nessa onda de novidade, quando a casa se arrumava e redecorava, quando havia tanto cotão para limpar que surgiu, também na comida, uma estrelinha: o Comida de Santo. No Príncipe Real, na Calçada Engenheiro Miguel Pais, concretamente no número 39.
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Eu, com 11 anos, comia na cantina da escola. Quando me deram liberdade para sair sozinho à noite, em 1986, tinha 16 anos, pouco dinheiro guardava para jantares. Não sei quando entrei pela primeira vez na Comida de Santo, mas deve ter sido por volta de 1990, quando já trabalhava, no novíssimo Diário Económico, e não tinha de cravar os pais... ganhava 450 euros (em formato actual, tradução literal). Na altura dava para pouco e agora tem de sobrar.
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Que exotismo aquela comida... às vezes próxima e outras distante. Comida da Baía, trazida, e sem tradução, por António Pinto Coelho. Com o oceano pelo meio, a mesa põe-se sempre à moda da terra das negras gordas, que rodam as ancas, com enfeites nos cabelos e alegres e cheios peitos guardados em vestidos coloridos.
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Para mim... era tudo novo... ter dinheiro mesmo meu, comer fora sem paizinhos, namoradas, o glamour da noite (vestíamo-nos para sair, perfumávamo-nos, sorriamos muito bem encantados, pela e para a sedução), o cosmopolitismo pequenino alegrava tanto... e eu não sabia nada da Baía, nem via telenovelas.
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Sei, que é autêntico o sítio. Só a honestidade da mesa faz com que uma casa se aguente. Imagino que pela cozinha da Comida de Santo tenham passado muitos artesãos, enquadrados por Pinto Coelho.
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Dois mil e catorze cabe tanta coisa em Lisboa e, ou estou velho, que a novidade fica de fora. O que é bom, o colo da mãe, o colo da mesa que se aprendeu a gostar, nunca parte – haja saúde e alegria.
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Houve uma época em que ia com frequência ao Comida de Santo... não deixei lá dinheiro para comprar Pinto Coelho comprar um Porsche, mas as caipirinhas (ui, que boas) impediram-me de pegar num volante.
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Marisco, peixe, carne, fruta... tudo à moda da Baía. Até vinho brasileiro (da portuguesa Dão Sul)... fui sempre feliz ali. E agora que conheci Pinto Coelho leio uma paixão, sábia de deixar falar e ouvir.
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Quando há quem diga que tem «o melhor bolo de chocolate do mundo»... ah! O pagode!... Pinto Coelho diz, rindo-se, mas com trunfos na manga, de brasileiros profissionais da crítica, ter o melhor quindim do mundo. Afirma-o aos amigos e aos comensais... e talvez seja verdade.
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Local: Calçada Engenheiro Miguel Pais, 39 (Príncipe Real – Lisboa)
Telefone: 21 396 33 39
Aberto: De quarta-feira a segunda-feira

Horário: 12h30 às 15h30 e das 19h30 à 1h00.

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