
A segunda maior empresa vínica portuguesa nasceu quase por acaso há 202 anos e desde então tem-se mantido sempre na mesma família, transitando, quase sempre, de pai para filho.
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O apelido Fonseca perdeu-se cedo na sucessão da casa. O destino encarregou a família da mulher de José Maria da Fonseca de gerir as vinhas e as terras. O nome do fundador ficou como marca, mas o mando não mais deixou o nome Soares Franco.
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José Maria da Fonseca nasceu em 1804 em Vilar Seco (Nelas) e jovem desceu a Coimbra para estudar matemática, antes de rumar a Lisboa, onde se estabeleceu na zona do Cais do Sodré para mercar com tabacos.
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Um dia executou a garantia duma propriedade em Azeitão, a Quinta da Cova da Periquita, e traçou o seu destino e o de várias gerações de familiares. Aconteceu por volta de 1834, mas pode ter acontecido antes, quem o diz é António Soares Franco, representante da sexta vindima familiar de responsáveis pelo negócio dos vinhos.
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A Quinta da Cova da Periquita durou pouco tempo na posse de José Maria da Fonseca. Os negócios sucederam-se e nem todos saíam bem, o capital rodava e os activos também. Contudo, ficou o gosto pela lavoura, onde aplicou inovações e os conhecimentos aprendidos no estudo da matemática.
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Entre as inovações e experiências houve uma que ficou célebre: a casta castelão, oriúnda do Ribatejo, foi trazida para Azeitão e ali veio a dar-se com grande sucesso. O êxito foi tal que ainda hoje esta ainda é a variedade dominante na zona, representando mais de 90% dos encepamentos. Outra dimensão do bom resultado é o nome que a casta castelão tomou na zona: periquita, como a quinta onde foi introduzida (hoje o uso do termo está interdito por se tratar duma marca comercial). No entanto, a propriedade saíu do património familiar e hoje já não dá vinho e tem em cima prédios de habitação.
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Conta António Soares Franco que o fundador da casa foi um homem adiantado no tempo, já preocupado com a necessidade de marcas. Em 1850 nasceu o vinho Periquita, a marca de vinho de pasto mais antiga do país. Actualmente, a empresa guarda duas garrafas datadas de 1880, mas Domingos Soares Franco, vice-presidente e enólogo, teve conhecimento dum coleccionador que passou pelas instalações e lhe disse ter um exemplar mais antigo.
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Montado no negócio dos vinhos, cedo os mercados externos se tornam prioritários. Portugal exporta vinho desde a Idade Média, mas é José Maria da Fonseca que pensa nas vantagens de vende-lo em garrafas por forma a preservá-lo e a garantir a sua não adulteração.
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De entre todos os países, o Brasil é um destino especial, com um forte peso nas vendas da casa durante décadas. Porém, após a crise da bolsa de Nova Iorque, em 1929, e as medidas proteccionistas do regime de Getúlio Vargas, este grande mercado vai afectar a saúde financeira da empresa, o que leva à venda de activos, nomeadamente quintas em Colares. A recuperação será lenta, ao longo da década de trinta e de quarenta. Mas a solução será cor de rosa: o rosé Lancers.
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O empresário norte-americano de origem arménia Henry Behar visitou a José Maria da Fonseca e propôs-se lançar, em 1944, um rosé nos Estados Unidos. Queria um vinho despretencioso e fácil de beber, até porque o vinho não tinha grande tradição do outro lado do Atlântico. Queria uma garrafa «very typical», que lembrasse Portugal, e assim se decidiu pelo modelo que imita barro. A marca Lancers foi escolhida por Henry Behar ser um grande apreciador do quadro «las lanzas» de Diego Velasquez. O Lancers tornou-se um grande sucesso nos Estados Unidos e tirou a José Maria da Fonseca da situação financeira complicada em que se encontrava.
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O negócio prosperou com os anos e alargaram-se os interesses. No entanto, os descendentes também aumentaram. Em 1980 havia já muita família a querer mandar nas empresas que se reuniu um concílio familiar que decidiu pela venda dos interesses na distribuição e da, então, JP Vinhos (hoje Bacalhôa Vinhos). O núcleo Soares Franco ficou com a José Maria da Fonseca, embora o ramo Avillez ficasse com uma posição.
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A década de oitenta não estava fácil, com as empresas a pagarem a factura da instabilidade revolucionária. «A sociedade estava numa situação preocupante por causa dos juros, com encargos financeiros brutais». As férias de 1985 foram decisivas. Sobre a mesa duas hipóteses: a abertura do capital ao exterior ou a venda do negócio dos rosés, que eram detidos em 51% pela casa de Azeitão. A segunda opção vendeu e os parceiros norte-americanos da Heublien (actualmente integrada na IDV-UD, a maior empresa mundial de bebidas) tomaram «contrariados» a posição da família Soares Franco. «Com esse dinheiro saneámos financeiramente a casa-mãe, pagámos ao banco, aumentámos o capital, aumentámos o património fundiário, reequipámo-nos e começámos a exportar mais. As coisas começaram a correr bem» – afirma António Soares Franco.
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Um dos primeiros passos foi dado em direcção ao Alentejo, estava ainda para vir a moda dos vinhos desta região, com a compra em 1986 da marca José de Sousa, de Reguengos de Monsaraz.
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Uma tarde em Wimbledon
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Um dia, os antigos sócios do negócio dos rosés convidaram António Soares Franco para assistir a uma partida de ténis em Wimbledon. Porém, além das tacadas com raquetes veio de lá um «drive» com negócio apontado. «Eles sabiam que andávamos à procura de adega e eles queriam sair da produção para se concentrarem apenas no marketing.
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Fiquei de todas as cores. Aquela era a oportunidade de recomprar a bom preço o que venderamos, além de ser a possibilidade de ter a 100 por cento uma marca que nunca fôra nossa totalmente».
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António Soares Franco ligou para Portugal e começaram a acertar-se os contornos do negócio. Em 1996, a Jose Maria da Fonseca Internacional – detentora duma das marcas vínicas portuguesas mais vendidas, a Lancers – passou para controlo português. «Triplicámos o volume e somos a segunda maior empresa privada em Portugal» – afirma orgulhoso o chefe da empresa.
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O alargamento territorial da empresa não está completamente fora de questão, mas António Soares Franco diz ser tempo de «parar para pensar» e de «consolidar o negócio», tendo em vista os «investimentos brutais dos últimos dez anos» e a crise que se verifica em muitos países. «Ainda não temos dimensão. Ainda temos muito que crescer na exportação e nas marcas».
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Um novo negócio? «Só se aparecer uma oportunidade e se se enquadrar no que se faz neste momento». E onde se faria o negócio? António Soares Franco quase exclui a Europa. Primeiro recusa-a, depois admite a Espanha ou a Itália. Propostas sobre a mesa não faltam, mas as repostas têm sido sempre negativas. Novos negócios implicam mais quadros e alavancagem financeira, explica.
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Posto isto é a vez de Domingos Saores Franco (quem é). Em plena entrevista dá-se quase uma mini reunião do conselho com um colorido diálogo.«Eu sou Novo Mundo, estudei no Novo Mundo» – atira Domingos.
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António Maria avança que em Espanha estão a fazer-se vinhos bem à moda dos novos países produtores. «Os espanhóis estão a tornar-se Novo Mundo».
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Mas a jogada é do homem das uvas, delas quem percebe mais é ele: «Sim, mas a Espanha está é inundada de tempranillo [casta que em português se designa por tinta roriz ou aragonês]. Para mim, Novo Mundo é Nova Zelândia e África do Sul».
Num instante revelou-se uma luz na sala com o entusiamo do enólogo, que advertiu para a subida dos preços da terra nos dois países, que no caso africano acrescem riscos políticos. «São esses os países em que investiria. Seria sempre no hemisfério Sul, até para aproveitar a equipa de enologia que faria aqui as vindimas e depois lá».
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A discussão dos três Soares Franco da empresa é viva e correcta. Mas nem sempre foi assim. Os tempos mudam e as posturas também. Cada época tem os seus sinais. Cada responsável imprime a sua marca pessoal e geracional. Quando Fernando Porto Soares Franco mandava nos destinos da casa a convivência era diferente. «Com o pai havia um discurso construtivo. O pai tinha um feitio diferente, ouvia muito e falava no fim. Nós somos mais combativos, metemos a voz em tudo, estamos 25 horas por dia na empresa e às vezes temos de nos mandar para casa. No tempo do pai era diferente» – afirma António Soares Franco.
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António Maria diz que trabalhar com o pai e com o tio Domingos «é giro». «Tenho discussões tanto com um como com outro. É muito divertido». Porém, todos garantem que na empresa não há discussões de família ou discursos de pai para filho. As relações são profissionais. «Desde que sairam de casa que acabaram as regras tipo tropa», diz António Soares Franco. «Damo-nos melhor do que irmãos» – brinca Domingos sobre o irmão António.
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Os três Soares Franco de Azeitão
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Na empresa não há ritual na transição do poder ou na entrada em funções, garante António Soares Franco. Para um Soares Franco trabalhar na José Maria da Fonseca são precisos alguns requisitos: vontade do próprio e interesse da empresa. «Um membro da família é tratado como outra pessoa que não seja».
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António Maria Soares Franco veio da Procter & Gamble; Gamble «não veio com o ferro JMF marcado, mas está cá com um destino mais longo do que outros directores. Ninguém dos Soares Franco é obrigado, só trabalha cá porque quer, porque a empresa precisa e tem de trazer valor-acrescentado», diz o presidente sobre o seu filho e director de marketing.
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António e António Maria são dois executivos. Já Domingos nota-se um ar mais descontraído. Os dois primeiros vêm de fato, embora o mais novo se apresente sem gravata. Já o enólogo está de ganga e com um colete.
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A vida fez diferentes os dois irmãos. Um ficou em Portugal e conheceu os anos difíceis que se seguiram à revolução democrática, o segundo foi estudar para fora. António Soares Franco terminou o Instituto Superior de Economia em 1975, debaixo do recolher obrigatório. Fez exame a 27 de Novembro, apenas dois dias após a vitória das forças democráticas.
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Domingos Soares Franco assume-se diferente. A experiência de vida fê-lo diferente. Estudou enologia em Davis, na Califórnia, para onde partiu em Agosto de 1975, em pleno Verão quente revolucionário. Os horizontes abriram-se nas paisagens americanas e a profissão de enólogo liberta-o da farta de executivo.
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«Dou-me lindamente com o meu irmão como me dei com o meu pai. Fiz o baú para a América a pensar que não ía voltar. Tirei fotografias à quinta, tinha 19 anos. Estive cinco anos sozinho e isso fez-me um pouquinho diferente, como na maneira de vestir, que é mais irreverente. Mas estou sempre em sintonia com o meu irmão, apesar de pequenas diferenças no pensar».
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O que também faz parte da família é a receita da ginjinha, que a empresa comercializa com a marca de Cherry Bom. A perícia e as doses passaram de geração em geração, mas a frieza dos números das vendas é cruel mesmo para uma bebida doce. Quando acabar o stock, acaba este segredo que os Soares Franco partilham com a sociedade.
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