
Outro dia tirei a hora de almoço e anexei uns momentos mais só para mim e fiquei a pensar. Desliguei o telemóvel e sentei-me frente ao Tejo, a menos de dez metros, separado por um curto cais e uma parede de vidro ou janela. Fiquei só com um Pontual Syrah de 2003.
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Entrei no restaurante Vírgula, ali ao Cais do Sodré um pouco antes da hora do almoço invadir os espaços e desde que o fiz até que me levantei tudo à volta pouco me interessou. O serviço foi competende e não me perturbou mais do que o nessário à competência. Quanto à audiência, mais não foi do que uma projecção narcísica que, de vez em quando me assaltou a mente. Acredito que ninguém reparou ou quis saber que estava ali. Eu era tão transparente quanto as janelas, só que muito menos interessante.
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A comezaina, obra do mestre Bertílio Gomes, foi bochecha de vaca estufada em vinho tinto. Só! Sem direito a entrada nem a sobremesas. O vinho bastou! O luxo foi o repasto demorado e mais o seu motivo.
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Escolhi o restaurante Vírgula num acto de paz e de reconciliação, para fazer uma trégua com um vinho. A última vez que o tinha tragado o refeição não correu pelo melhor e o sabor não me alegrou como de costume. Fiquei triste. E com razão: tinha gasto dinheiro, o respasto irritou-me, zanguei-me com um local e o belo do vinhito apanhou por tabela. Para agravar a situação, a garrafa não é muito fácil de encontrar, pelo que é preciso saber onde ela se esconde e ir dar-lhe caça.
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Já agora, para que não fiquem suspeitas no ar ou a sensação de que as crónicas só dizem bem, cá vai um pouco de amargura e de veneno. O jantar azarado ocorreu no restaurante Vaskus, ali na Passos Manuel, na zona de Arroios em Lisboa. A casa tem piada, com ar germânico, com a estrutura de gaiola pintada de côr escura, as toalhas à italiana e a comida brasileira. O sítio tinha fama de servir boa carne, mas vive do nome e as batatas fritas são cogeladas. O serviço cumpre, mas não é simpático nem compentente em absoluto. Ora veja-se: «Está na lista o Pontual, mas qual deles é? O Syrah ou o Touriga Nacional com Trincadeira?» Sem um sorriso a rapariga respondeu uma das hipóteses, afinal tinha 50 por cento de hipóteses de acertar, até que voltou para dizer que tinha os dois. A comida veio e já não é o que foi. Paciência! Tão cedo não volto lá e não me vou esquecer de não recomendar a casa.
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Mas voltemos ao que interessa, ao Vírgula que encanta pela vista, pelo serviço, pela comida, pela carta de vinhos, e ao Pontual Syrah. Naqueles olhares pela janela fiquei a contemplar o passado, quando Cacilhas era uma vila de pescadores e imaginei um pomar no laranjeiro. Por daí à frente seriam montados de azinho, sobro e olivais, todo um Alentejo que se chegava mais aqui a Lisboa.
Dei por mim a voar sobre as planícies e a aterrar numa herdade perto de Borba, bem junto à Capela de Nossa Senhora da Boa Nova, que é exactamente um dos berços do Pontual. Há outros dois, que se situam junto a Portalegre. Naquele monte de Borba avista-se o lago de Alqueva, que nunca chegará a imitar o Tejo nem as suas brumas, por mais que as gentes alentejanas digam que o clima já mudou e que se sente o ar mais húmido e nebuloso.
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Onde existe um certo nevoeiro é no meu discernimento. Confesso que não consigo decidir qual dos vinhos Pontual prefiro. O Pontual Touriga Nacional e Trincadeira é uma festa. A primeira casta é pujante como um toureiro e a segunda delicada como uma bailarina. As duas juntas, unidas pela sabedoria de mestre Paolo Nigra, dão muito contentamento. Eu que que acho os monovarietais aborrecidos vibro com o Pontual Syrah, que elegante, sabe falar em qualquer festa e acompanha bem muitas comidas. É mais discreto que o anterior, mas não tem menos carácter.
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A empresa que os produz tem ainda poucos anos de vida e as vinhas são ainda novas, pelo que estão a dar os primeiros cachos. O ano de 2003 foi o primeiro a sério. Já provei os Pontuais de 2004 e a coisa melhorou... e não desiludiu, porque o par não ultrapassou o Syrah nem o monocasta puxou dos galões de variedade internacional e remeteu para segundo plano o lote das primas uvas portuguesas. A empresa tem outros vinhos e desses outro merece também uma notinha: o Boa Nova branco, o único cara pálida da gama. E destingue-se bem dos branquelas alentejanos, pois não é nada pesado, tem fruta sem exagero, com qualquer coisa de citrino, com um aroma muito agradável e bebe-se refrescantemente sem constrangimento na alma nem remorso tardio. Aliás, se isto acontece com este, imagine-se o prazer permitido pelos Pontuais!...
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Engana-se quem pensar que me vim embora daquela tarde frente à janela. Continuo lá sentado a apanhar um pequeno e frio banho de Sol e a ver os cacilheiros a cortar o Tejo ou a imaginar as velas das fragatas a empurrarem cascos de madeira e varinas descalças a correrem com canastas de peixe à cabeça pelo empedrado do cais. Lisboa com Sol merece sempre um mergulho de delírio e um brinde!
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