digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Papar bem com vagares





















Comer devagar não é uma arte, é uma obrigação. Há locais onde o esmero da cozinha não permite equívocos na imposição e quando o tinto tem fama de façanhudo, não há volta a dar às pressas.
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O Bairro Alto terá os seus segredos, mas está quase todo ele descoberto. Os rincões especiais guardam-se para os peritos alfacinhas e moradores bairristas. Para todos os outros, o espaço abre-se franco. É numa rua famosa que está o célebre Papa'Açorda, casa para se repastar devagar.
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Gil Magriço é um engano de homem. É grosso como um tronco de azinho e o apelido alentejano esconde um lisboeta que, por um lado dos costados, leva cinco gerações de lisboetas. Numa das noites frescas de Dezembro subiu a rua do Alecrim e aperitivou um fraco Vinho da Madeira na Brasileira do Chiado com os amigos Maria, uma espanhola de Oviedo que sabe falar Bable, e o Sérgio, um lisboeta que pôs as botas a marchar para Trás-os-Montes, que convenceu a banquetearem-se. O problema foi que o tema deu discórdia: onde ir? Há tantos locais, tanto gato disfarçado de lebre e desastrados mascarados de chefes de cozinha, e tantas ementas tingidas com preços desajustados. Palavra puxa restaurante, restaurante puxa palavra e o sufrágio deu consenso no Papa'Açorda, que tem uma tabuleta quase discreta e uma porta que abre para a rua da Atalaia.
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A entrada não é simpática, é um corredor com um balcão alto que intimida quem não é dotado de uma altura extravagante, além da forma do sítio potenciar o engarrafamento longitudinal nos dias mais concorridos. Mas é o que se pode arranjar e é sacrifício inicial a que o gastrónomo tem de se submeter. Contudo, naquela noite pré-natalícia foi sempre a andar até à boca da sala onde um dos proprietários, e mestre de cerimónias, os recebeu para os conduzir onde se iria dar o sustento do corpo e da alma.
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Curiosamente, aqueles três comensais não soltaram palavras enquadras na época em que o católico São Nicolau faz sorrir as crianças e ajuda ao pagão Mercúrio, que abençoa os comerciantes. O tema foi, à época, a prematura eleição presidencial e o folclórico festival que o acto democrático do botar-cruzinha tem sempre em Portugal. Diabolizaram candidatos, esconjuraram personalidades, enalteceram perfis e rabujaram sobre tiradas sábias, doutas e tolas. Ainda havia tanto para se ver e já tanta certeza, tanto acerto e tão pouca ingenuidade. Em quem disseram que iriam votar e se ganharam a aposta do pódio eleitoral são segredos que não se revelam.
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O que conta por aqui é a matéria sublime que os atraiu ao estabelecimento. Por conveniência de arrumo nos estômagos mandaram vir apenas duas entradas, que partilharam irmãmente: peixinhos da horta, muito gostosos e frescos (se viessem do mar dir-se-ia que estavam vivinhos a saltar) e um folhado de queijo de cabra que veio acompanhado com rúcula (que no Alentejo chamam mastruços), tomate cereja e pão torrado cortado em cubinhos.
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A asturiana pediu meia-desfeita, o lisboeta-transmontano preferiu os filetes de sardinha panados e o Gil pediu cabidela de galinha. Nos restaurantes bem frequentados as pessoas são bem educadas, pelo que não reparam no que as outras fazem. Confiantes neste princípio, o trio decidiu partilhar, discretamente, o conteúdo dos seus címbalos não musicais, para provar mais e deliciar-se melhor. Estava tudo muito bem. Sem surpresas.
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Para saciar as sedes, dos primeiros pratos aos segundos, a escolha foi para um especialíssimo alentejano: Mouchão, colheita de 2001. Não é vinho que se beba ou que se deixe beber. É vinho que, quando se dá por isso, já está bebido. Que belíssimo tinto! Escorreito! Fino e agradável!
O Mouchão é um vinho equilibrado, com fruta, com taninos suaves e bem alentejano, não é um produto. Quando se bebe nota-se que não poderia vir do Chile, da Argentina, da Califórnia ou da Austrália. É Alentejo para o melhor e para o pior. Apesar de ser ano de centenário da Herdade de Mouchão, a colheita de 2001 não é das mais espantosas que saiu daquelas vinhas e adega de Sousel. A meteorologia tem caprichos e as vides ressentem-se. Mesmo assim, a colheita de 2001 vai-se num ápice, embora esteja um pouco encarecida.
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O trio seguiu, empanturrado, para as sobremesas e só Gil Magriço, inteiriço de carnes, se mandou servir de um Vinho do Porto para escoltar o doce. Desta vez voltou a haver partilhas, sem que ninguém notasse, bem se vê. Gil foi para um bolo de chocolate com compota de laranja (absolutamente pecaminoso), o Sérgio descaiu para um sorvete de limão com vodka (tão desenquadrado que há-de pagar por isso no Purgatório dos gulosos) e Maria venceu a contenda pelo acertadíssimo pedido de mousse de chocolate atribuído em dose imprópria para cardíacos, diabéticos e obesos. Postos isto, passearam para digerir. Nessa noite, o fantasma do Natal, de Charles Dickens, visitou-os a todos em pesadelos, fustigando-lhes a consciência... se as gulas festejaram assim naquela noite, que abusos carnavalescos não teriam no Natal? Tiveram de ser de contenção e quase em abstinência!

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