digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Numa pedra a caminho de Bucelas





















A Patrícia não parou, durante toda a viagem, de perguntar quando chegávamos. O que valeu foi Lisboa ter sido o ponto de partida e Bucelas o destino. Mas quem mandou prometer-lhe visitar uma quinta onde nascem as uvas?
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A miúda tem quatro anos a caminho dos cinco e um olhar muito vivo e meigo. É esperta e irrequieta, curiosa, mas obediente. Onde nascem as uvas? - Perguntou e continuou: Mas para quê? Para fazer vinho, respondeu-se-lhe. Nada disse. Que estranho! Ela que critica sempre que se bebe vinho... alguém lhe deve ter encomendado um sermão sobre os malefícios do álcool.
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Quando chegamos? Quando Chegamos? E já chegámos? E falta muita muito? Quero fazer chi-chi. Mãe, dói-me a cabeça!...
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Os menos de vinte quilómetros que vão da capital àquela vila saloia tiveram mais perguntas do que respostas. Com a auto-estrada é um tirinho, mas é só até ali à frente, até ao subúrbio, porque depois entra-se na província e não se saiu da Área Metropolitana de Lisboa. Bucelas é mesmo uma vila e rodeia-se da paisagem que envolve as povoações rurais. É um encanto conduzir pelas estradas de curvas e de sobe-e-desces verdejantes, mesmo que o céu tenha tons cinza e as encostas mostrem algures castanhos outonais. Era já o tempo de vindimas que começava.
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Uf! Lá se chegou à pequena quinta do Chão do Prado, pertencente ao mais pequeno produtor-engarrafador da região de Bucelas, uma terra que só certifica brancos, embora em tempos tivesse dados tintos e, ao que consta, não eram de fazer cara feita. Porquê o Chão do Prado? Por quatro razões: a qualidade do vinho, a comida do restaurante, a vista e os afectos. Cada coisa será explicada a seu tempo.
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A Patrícia não desatou a correr pelas vinhas alinhadas nem estranhou muito aqueles frutos serem bem mais pequenos do que aqueles que se comem em casa. Havia de ser bonito explicar que a feitura do vinho precisa de variedades com bagos mais pequenos... Por isso, e ainda bem, não perguntou se as uvas têm nome: como se explica a uma miúda de quatro anos que algumas daqueles frutos chamam-se arinto (quase todas), esgana-cão e rabo-de-ovelha? O que a imaginação dela não lhe mandaria perguntar a seguir?!... A miúda fez o que gostam de fazer os miúdos de quatro anos: agarrar em paus, saltar nos montes de parras amareladas, provar as uvas, descobrir caminhos entre as fileiras de vides, alcançar o muro e ver a abertura onde estivera um portão e onde hoje fica um buraco que dá para a estrada.
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O restaurante situa-se numa extremidade da quinta do Chão do Prado e encosta-se à loja da propriedade. O lado que dá para a estrada fez-se em pedra, mas as vistas iluminam-se no envidraçado que deixa entrar a quase totalidade dos oito hectares da propriedade. Só não entram os que se escondem no ondulado da paisagem. São vinhedos e vinhedos alinhados, montes e cerros como um mar desalinhado, feito com história. Por ali combateu-se nas Invasões Francesas, por ali passam umas das Linhas de Torres. O Sol, naquele começo de tarde, aquecia quanto baste e a vidraça travava a ventania constante daquele lugar. António Paneiro Pinto, o dono desta quinta, explica que àquele sopro se deve parte da frescura do Bucelas, uma outra cabe à acidez suave que a terra lhe dá.
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É quase tonto que uma cena tão simples e quase parada quanto uma vinha possa encantar tanto, mas encanta. Não me recordo, ao certo, o que manjei, mas tenho certa a entrada de ovos mexidos com morcela, que deliciaram até à tremura. E como casaram bem com o Chão do Prado Colheita Seleccionada 2004! Aliás, este branco bateu-se muito bem com a carne de porco grelhada que veio depois.
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Enquanto o pasto decorria, a Patrícia fazia a fita que fazem quase todas as crianças de quatro anos. Mafalda inventou depressa forma de a encantar. Primeiro vieram uns lápis de cor e mais tarde levou-a para o exterior para brincar com Xana, uma gatinha mimada e dócil.
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À porta do restaurante está uma grande pedra comprida. Um automóvel, já vê... Patrícia agarrou na Xana e levou-a a passear. Na sala, atrás do vidro, saboreava-se, o Chão do Prado Colheita Seleccionada 2004. Não apetecia pensar em mais nada, apenas naquele vinho e na doçura feliz da pirralha com a gata ao colo.
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Os Bucelas têm o dom de refrescar como poucos. Contudo, o Chão do Prado é especial, com uma acidez muito equilibrada e baixo teor alcoólico. Bebe-se melhor, com mais agrado, refresca mais e sem mágoa posterior. Naquela quinta fez-se também o primeiro espumante da região e faz-se ainda um colheita tardia, filho do fungo botrytis cinerea (podridão nobre).
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Nesse domingo já não havia para provar o Chão do Prado Colheita Tardia 2004 (o de 2005 ainda não nascera), mas tenho-o na memória. Foi no Verão passado e apesar de ser, normalmente, servido como aperitivo ou como acompanhante de sobremesa suave, aguentou-se ao sabor forte do bacalhau português.
Findo o repasto, lá me sentei no banco de trás do carro-pedra com Patrícia ao volante. Saía eu e entrava Maria, a mãe. Ela bem queria levar-nos aos dois no banco de trás, mas não cabiamos. Quanto ao resto desse domingo e aos afectos há ainda a dizer que é uma alegria ser recebido por alguém como António João e Mafalda Paneiro Pinto. Depois de os conhecer, o vinho que fazem passou a alegrar-me mais do que antes.

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