digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Romeu e Julieta





















Numa mesa posta de toalha de xadrez vermelho e branco está um solitário e um cravo, que há-de sair quando os clientes se sentarem. Não por fé de esquerda, mas por ser flor das Primaveras e da tradição portuguesa. Lá fora chove, por teimosia e hábito do mês de Abril. A sala, de verde-pardacento-claro está húmida, com uma luz triste, feita de mescla da lâmpada desusável e da filtragem do saguão que resguarda o quarto.
.
A casa vive de afectos de paladares e rigor na fórmula e mão de quem cozinha. Está na Baixa de Lisboa, porque era onde almoçavam dos doutores da capital. Está fora de moda porque vieram as artrites, os reumáticos e as reformas dos costumeiros comensais. A marcha dos ponteiros do relógio redondo, pendurado à entrada, mantém-se e tudo o resto também. As chapeleiras, onde agora só param jornais dobrados, e os bengaleiros garantem que ali houve sempre bons modos e respeito.
.
Hoje é quase tudo memória. Vive da simpatia e do afecto dos da casa e a mesma ementa de sempre: desde o bife à inglesa, coisa de gente burguesa no antigamente, aos croquetes macios de vitela, às folhas de louro (linguadinhos) ou à mousse de chocolate inesquecível pelo toque do caramelo. Hoje vêm alguns velhos, clientes despreocupados e necessitados de refúgio de olhares e ouvidos. Hoje é o dia em que Gertrudes e Jorge entraram para celebrarem em segredo um ano de namoro.
.
Passada a portada de vidros martelados onde está pintado o nome da casa veio um sorriso do dono da casa de pasto, fiel servidor das mesas e seguro ouvidor das intimidades de alguns clientes. O homem conduziu o casal à sala mais fugida da entrada, à mesa do canto junto à janela, que não deixa ver o saguão: «Leve a jarra, mas deixe a flor». Num assento de cabeça assim fez o servente que deixou as listas e deslizou. O amante ofereceu-a à amada e esta fez-lhe uma festa no rosto.
.
Hoje, naquela casa de pasto, dois amantes reservaram-se e guardaram-se com tempos roubados aos trabalhos. Há médicos, avarias, eléctricos descarrilados, vacinas para levar e muitas outras desculpas para atrasos. Ela avançou para bacalhau à lagareiro e ele foi para iscas à portuguesa, das verdadeiras, das que vêm com batata cozida. Bem conversadas as coisas e descobertas as gulas refez-se o pedido: que venha primeiro o peixe e depois a carne.
.
E porque hoje é dia de festa e os empregos já quase se assumem como esquecidos mandaram vir vinho. Um branco do Douro, nascido numa aldeia perto daquela onde cresceu o senhor Lopes, o guardador deste recanto de paladares. Mas para melhor se contar a história tem primeiro de se contar a do tinto. Junto a Mirandela fica Jerusalém de Romeu, uma aldeia, ou talvez duas, no meio da maior propriedade de Trás-os-Montes, mas dentro da região vinhateira do Douro. A evocação da capital das três religiões monoteístas deve-se ao antigo dono das terras: a Ordem do Hospital de São João de Jerusalém (Ordem de Malta). A aldeia é um encanto de se ver, tão bem preservada que está, sem atropelos à tradição nem ao conforto. Aquele quase ermo tem até um restaurante supimpa: O Maria Rita. Quanto aos vinhos: Ao tinto chamaram-lhe Romeu e, por analogia, ao branco Julieta.
.
A escolha dos amantes fez-se pela rima daquele momento com a tragédia de Shakespeare, mas na terra onde as videiras fincam as raízes há mais versos e entoações. João Pedro Menéres, homem que dirige a Sociedade Clemente Menéres, explica que a terra é uma coisa viva, que na vida tem de haver ética e nos negócios respeito pelas coisas viventes. A lavoura faz-se em regime biológico, o que exige mais esforço, mas que retribui com o consolo da consciência leve. São seis mil hectares onde videiras, oliveiras e sobreiros não provam herbicidas, fungicidas e pesticidas de síntese. As práticas são as antigas, as que menos agridem a vida. Quem faz as coisas assim, fá-las porque as quer bem feitas, o que nem sempre é verdade quando se fala noutros sistemas de produção ou quando o objectivo final ou único é a rentabilidade. As contas têm de bater certas e as parcelas das despesas têm de somar menos do que as das receitas. O mercado paga estes cuidados, sobretudo no estrangeiro e o negócio está saudável.
.
O azeite de Romeu é macio, fino e suave, com um toque frutado. Foi ele que acompanhou, embora incógnito, o bacalhau que Gertudes partilhou com Jorge. O Julieta de 2003 fresco é bem vivo e alegre e aguenta-se bem quando mata a sede de um bacalhau a nadar em azeite. É peculiar, com o carácter forte das mulheres decididas, mas nada pesado ou quente de paladar. Tanto assim é que no contra-rótulo uma citação de Marguerite Yourcenar ajusta-se-lhe. O Romeu de 2001 é generoso e amigo, não esmagou as iscas, mas bater-se-ia bravo se defrontasse um pato. Não tem o carisma dos enormes duriense, mas é honesto e tem tudo o que se pede aos nascidos naquelas bandas.
.
O almoço correu feliz e terminou com algumas pequenas gotas tintasa alegrar a toalha de mesa. O enlevo dos amantes distraíu-lhes a atenção das marés enchente e vazante dos clientes. A comida esteve um esmero e o vinho – deixado quase todo nas garrafas, porque o que é bom não é para abusar, nem mesmo nas festas – uma surpresa contente. O que Gertrudes e Jorge não sabiam é que o que se faz com amor transmite-se e sublima-se. Por isso, foi mais doce o beijo que deram ao despedirem-se depois do repasto.

Sem comentários: