digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Abandonado? É para ficar!

Sentei-me a ver passar as nuvens, à espera de ver acontecer alguma coisa: um acontecimento marcante, uma instante inesquecível ou uma chispa de eternidade. Na varanda de casa, com vista para o Panteão Nacional de Santa Engrácia, não se vislumbra nada além da Primavera e do Tejo.
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À frente, mesmo diante da vista uma faixa de azul passante a imitar a cor da abóboda celeste. Por cima, uma tontura ao revirar a cabeça: tanta beleza neste tom profundo que embriaga. Se fosse possível tornar sempre a esfera corpórea voltar-se-ia com os olhos ao ponto inicial, mas o pescoço não deixa chegar nem chegar à linha de cor atijolada que fica por baixo do azulão do Tejo e que vai encosta abaixo, em relação ao ponto em que me encontro, até ao rio maior da península que mais além desagua, mais à frente, mais à frente.
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É neste ponto, de vista sempre diferente, ainda que sempre estática, que gosto de estar: de manhã, à tarde, ao anoitecer, à noite, de madrugada e ao alvorecer. Estou quase sempre. Nunca! Nunca cá estou. É como se não estivesse. A vista é sempre diferente. É um ponto neutro, com a paisagem estática fixa e o cenário em permanente mudança. Este é o local de encontro de todos os afectos.
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É aqui que gosto de abrir os meus melhores vinhos e dos partilhar com quem amo: as mulheres da minha vida, mais aquelas que julguem serem as grandes paixões e os grandes amigos. Intermináveis conversas à volta de um tema ou a dispersar as palavras que se poisam em muita fruta.
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Num jantar, outro dia, passei com a minha companhia da mesa para o miradouro da casa e ali ficámos a apreciar o vinho. Que efeito tem? Tem o de amplificar o prazer do enófilo, porque o vinho não é uma coisa amorfa: é alimento, é objecto de criação, musa criadora, objecto de luxo.
Dessa vez brindámos com Abandonado 2004 . Este é um tinto e vem duma vinha homónima com 80 anos da Quinta da Gaivosa. Tem um aroma profundo, tão enigmático como é densa a sua cor, que deixa antever um futuro promissor a quem o quiser guardar. No nariz notas de flores e de frutos pretos. Na boca, ginjas muito maduras e chocolate negro. Que tal estava? Magnífico! Abandonado, só de nome. Prolongado na boca e no prazer.
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Foi dessa vez que estando sentado a conversar e a ver passar as nuvens, a ver se acontecia alguma coisa, algo surgiu. Uma revelação. Aquele vinho! Um espanto! Porquê ir mais longe?

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