Habituei-me a apanhar do chão o lençol do banho. Há uma vertigem, uma insuportavel vontade de cair. Está tantas vezes caído que começo a acreditar que o lugar dele é no chão.
Habituei-me a partilhar o espaço com duas gatas. Tenho de ceder às suas rotinas e quereres, porque é importante o que me dão em troca. São macias, giras, bem cheirosas, meigas, brincalhonas, bem dispostas e sociáveis. Sei onde gostam de dormir a sesta e onde se escondem quando querem estar sozinhas. Há miados engraçados, com pedidos de mimos, de comida e de protesto... e há outros desconcertantes e incompreensíveis. Gargalho sozinho e enterneço-me todos os dias.
Habituei-me a apanhar o lençol do chão e a ter de deixar as portas abertas a quem roubei a liberdade e a família. As gatas brincam e pregam partidas uma à outra e reconhecem-me como mãe, que lhes dá comida, carinho e calor. Retribuem como sabem: ronronando, saltando para o colo, enroscando-se, deixando-me estar, sendo gatas. Às vezes nas suas brincadeiras lembram-me até pessoas e as traquinices de quem cá sei e não digo. Em tempos disse-lhe que tinha feitio de gata e tem mesmo.
Habituei-me a ter de apanhar o lençol de banho do chão e não gosto nada de ter de o fazer. Ainda bem que o chão está limpo. Elas só sentem uma imensa vontade de tocar a vertical do pano. Penduram-se e o objecto não oferece resistência, deixa-se cair sem ruído. É uma vertigem, um insondável querer sem porquês. Os gatos sabem o que fazem e há quem diga que podem ser artistas, pois têm sentido estético. Talvez o lençol de banho, tanto o azul como o vermelho, fique mal ali.
Já me conformei a ter a porta da despensa aberta. E logo da despensa!... Descobriram como se abre e insistem em abri-la, só porque não gostam de portas fechadas e porque o espaço da liberdade é maior do que o de uma casa. Estou conformado e muito satisfeito com a inteligência e habilidade das minhas gatas.
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