digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

terça-feira, junho 10, 2025

Já que perguntas

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 Já que perguntas.

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Digo-te que estou triste, mas sobreviverei. Fico triste, porque é triste ficar na esperança de ir. Fico triste se não me dizem. Fico triste. Triste.

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Tenho uma porta, no sítio onde me encontram. O resto são paredes, janelas e ombreiras, quem as vê, se quiser, pode acreditar ver-me a caminhar, fugir ou apanhar fruta. A quase todos, não importo.

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A porta é clara em parede escura ou ao contrário. A maçaneta parece um maçaneta, a fechadura não tem chave e se espreitarem não verão. É simples rodar a maceta e empurrar para abrir, mas não querem. Fico triste, dói.

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Acreditam que não vou, por isso não estarei, nem se interessam, sabem nada, mas não querem saber.

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Dói. Dói. Até o sangue dói. Não querem saber antes, não querem saber depois.

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Parece que o sangue se transforma em lágrimas e as gotas salgadas correm nas veias. Dói.

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Consola-me ter o seu desprezo para lhes fechar a porta, para não verem onde estou, mas não irão.

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Invisível para não lhes dar espanto. Se quisessem saber.

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Vou onde me chamam e me querem bem. Gostaria que fosse a Terra toda e todos os espíritos da carne e do éter. Mas não, e dói.

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Onde estou, não me vêem nem verão, porque lhes fechei a porta, mesmo que não o saibam nem queiram. Ainda assim, fico triste. Dói.

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Dói. Dói. Onde estou não me verão chorar.

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Se virem? Não vêem nem verão, porque não querem saber.

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Estou noutra rua, doutra cidade, a preto e branco, janota ou mendigo, invisível noutro século.

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Porém, dói. Quando me dói fico triste, fico triste e dói.

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De qualquer forma, ainda bem que perguntaste.

segunda-feira, junho 09, 2025

Às vezes os meus olhos não são castanhos

 

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O meu olhar é triste como o da minha mãe como o da minha avó e como parentes antigos.

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É a minha meia-idade, que não me envergonha nem amedronta, mesmo sem um descapotável encarnado, rede de apanhar miúdas impressionáveis, é sonolenta, interessante como a hora do almoço de balconista ou escriturário.

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Tenho a pele presa por si mesma, porque o Sol impõe. Não posso fazer nada sem viver à sombra, como vivo.

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A água morna torna-a areosa. Não posso fazer nada além de poupar a higiene e não vou cheirar mal das axilas.

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Dos meus destroços, da vida quotidiana e universal, o lixo vai para o aterro e o resto vai para reciclar.

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Os poemas sem poesia valem como os resíduos indiferenciados, não são recicláveis e, pensando a correr, não são reutilizáveis.

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Há poetas que juntam palavras como se fossem poemas e, mesmo sem poesia, têm palmas e até ganham prémios.

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Desejo que os meus poemas sejam lidos, traduzidos, estudados, premiados e que, acima de todos os tudos, sejam poesia.

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Não leiam mais do que escrevi nem diferentemente ao posto. Este texto não é um poema, é um conjunto de pequenos parágrafos.

domingo, junho 08, 2025

Digam o que disserem

 

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Então, disse-me:

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– O céu azul é lindo, não é?

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– Os cientistas dizem, li não sei aonde, que o céu não é azul.

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– Então, qual é a sua cor?

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– Não sei… talvez seja negro, tal como se vê à noite.

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– Deve ser a luz do Sol que.

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– Não sei. Os cientistas dizem coisas que não se entendem.

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– Êee… como assim? Quais? O quê?

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– Todos eles, de todas as ciências. Nunca têm certezas. Se as tiverem, outros desmentem-nos e, mais tarde ou mais cedo, os cépticos e os invejosos afinal não tinham razão… ou só em parte.

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– …

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– Para que quero as ciências? Não as entendo… só algumas pessoas… os cientistas, alguns outros sábios e gente muito inteligente e com grande memória. Há também os mentirosos, mas, se eu não souber, não perceberei que me enganam… como não me interessa, é-me indiferente o falso conhecimento. Iludem-me, mas não me roubam nada.

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– A ciência é importante.

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– Para quê? Adianta-lhe saber que a Terra é redonda? Poder calcular a raiz quadrada ajuda-o a descansar? E a fórmula química da glucose, que nunca me esqueci?…

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– …

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– Voando sobre uma esfera, a distância mais curta entre dois pontos não é através da recta. Quero ir daqui para ali e o caminho não me importa, desde que chegue o mais rapidamente possível.

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– Não lhe importam como vivem as plantas ou como actuam as vacinas?... Sem ciência não há tecnologia…

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– Interessam-me a couve no prato e as rosas no jardim. Quero as vacinas para não ficar doente e um comprimido para as dores…

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– Essas coisas não são importantes?!…

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– São coisas importantes, mas desinteressa-me o seu funcionamento. Para que quero a ciência? Não a entendo nem vou fazer uma pausa para aprender, porque não serei cientista e ser sábio ocupa o tempo em que me delicio a olhar a chuva, a afagar um gato ou a repousar em água morna…

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– …

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– Referiu-me as proezas… as ciências e a tecnologias. Quem é mais importante, o astrofísico que não me dá nada e me fala do que não entendo ou o padeiro que faz bom pão, mas desconhece química, física e mecânica?

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– Êee… âaa…

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– …

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– É um homem de letras, não de números.

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– É exactamente o mesmo! Saber o que é o predicativo do sujeito importa para dizer que se está molhado da chuva?

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– O conhecimento liberta…

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– O conhecimento científico gera desconhecimento. Por que hei-de andar numa estrada que cresce a cada passo? Se a ignorância é escuridão e apenas ver as sombras projectadas é, uma espécie, servidão, saber que saber significa saber menos do que se julgava saber… Saber de ciência é uma prisão doentia. E saber de letras não faz, do sábio, um poeta.

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– …

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– Não é possível saber tudo sobre uma coisa, tal como não é possível saber um pouco, que impressiona por ser muito, acerca de tudo. Se não posso saber tudo nem conhecer muitos bocadinhos de tudo, para que hei-de saber só uma parte ou ter muitas insignificâncias na cabeça? Por que escolher esta ciência e não outra? Porquê uma parte duma ciência e não outra parte? E, depois, como lhe disse, os cientistas duvidam, divergem, desmentem… prefiro as certezas, o resto – seja muito ou pouco, não me importa – é para os cientistas e para os doutores das letras.

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– …

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– …

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– O céu azul é lindo!

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– O azul é lindo, mesmo quando não é céu. É felicidade… não importa o que é, nada importa além de azul.

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– Digam o que disserem, os cientistas.

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– O dinheiro é indiferente para o pobre que não precisa mais do que tem.

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– Êee…

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– Uma limusina para ir ao jardim dar pão seco aos pombos? Uma cama com cinco metros de largura, quando o corpo tem menos dum de ombro ao ombro? Relógio de ouro que dá as horas como um de plástico e que se atrasa menos? Talheres de prata não tornam a carne mais macia nem a fruta mais doce. Uma gravata de seda sobre a camisa toca maciamente na pele como uma de poliéster.

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– Um apartamento com uma vista deslumbrante custa muito dinheiro…

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– Não espera que lhe diga que os ricos roubam os pobres e ficam egoisticamente com o belo. Não o direi… a abomino a beleza do trabalho esforçado, como glorificam os neorrealistas… nem disse que sou pobre nem que quero ser… nem que negligencio o belo. Disse do pobre que não quer mais do que tem, tal como estou satisfeito com a ignorância científica. Esse, da abastança monetária, é outro assunto.

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– O céu azul é lindo, não é?...

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– Digam o que disserem os cientistas.

A beleza do

 


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O neorrealismo é feio, não por elogiar quem vive em muito esforço nem por engrandecer o trabalho de suor. Mostrar a miséria como miséria é feiura concentrada e sem diluição possível.

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Revelar a pobreza é denunciar injustiças e não é, quase sempre, arte. Não há muitas imagens das lágrimas de pobreza e do suor laboral que tenham a virtude da beleza.

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O feio é feio tal como é errado o quadrado de linhas tortas, o qual se elogia por ter nascido da inesclarecida intuição matemática dum poeta.

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Os desgostos da transpiração oficiosa e a melancolia do pouco da troca não são de envergonhar. Ainda assim, a dignidade é maior se a crueza for desbastada do óbvio.

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A maioria rende-se à expressão, do rosto e do corpo, pensando revelar uma verdade invisível e, por isso, alcançar uma graciosidade na dor. Há quem conte tudo mostrando pouco.

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Quase todos só falam da matéria, alguns mostram a carne a tocar na alma.

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Nota: tive de escrever este texto por causa da força desta imagem. Depois descobri que já a mostrara. Contudo, a força da imagem justifica voltar a mostrá-la.

sábado, junho 07, 2025

Assim como

 

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Então, disse-me:

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– Sabe, o céu azul não me liberta da dor.

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Não lhe respondi, porque não percebi por que não e não o quis contradizer e magoar e, na verdade, pouco me importou, pois tinha a certeza que sim.

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Ficámos em silêncio. Naquele silêncio, que me incomodou, percebi que é verdadeiro o que acabara de me dizer.

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Olhámo-nos, como se estivéssemos parados contemplando uma estrada imensa que não se quer percorrer, mas que é obrigatória. Pensei na escola, como sinónimo.

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Incomodado comecei uma frase, que não passou da primeira sílaba, e fui interrompido.

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– O azul salva, porque é lindo, é o começo, a essência e o fim da arte.

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– Então, o azul…

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– O céu é outra coisa. Qualquer coisa, mesmo que seja azul, não salva.

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– Então…

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– É como a felicidade. O que é a felicidade? Dinheiro? Amor? A despreocupação? Existe. Existe em muitas coisas. Coisas e estados de alma são coisas e estados de alma. O azul é um reflexo de Deus invisível. É a diferença entre ser, estar e conter. Qualquer um desses verbos tem de ser percebido, mesmo inconsciente ou desmentido com desprezos céptico ou impertinente.

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– Se conseguir ver Deus... ou o seu reflexo… ou o que julga ser Deus ou seu reflexo… estará salvo.

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– Todas as regras têm uma excepção.

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– …

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– Há uns comprimidos azuis que são milagrosos. Mas o milagre não é serem azuis. O milagre é acreditar que são miraculosos porque são azuis.

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– Compra sempre desses?

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– Só desses. Há doutras marcas, mas não são azuis.

terça-feira, abril 22, 2025

Mandar ao azul

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– O azul é triste!

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Ouvi e respondi, afirmo e falarei:

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Quem disse, é estúpido. Triste é o negro e a inquietação, o roxo e a exéquia, e o vermelho e a euforia.

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Ou com tamanha venda na frente que uma pesadíssima cortina negra de veludo não serviria melhor.

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Desconhece a cor do céu soalheiro e o mar tranquilo e infinito.

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Não entende de cores ou todas as suas entranhas são daltónicas ou até só uma.

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O azul mata a dor melhor que a bala de prata e a estaca de madeira, em união redundante, conseguem com o vampiro.

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Se te disserem que é triste, manda ao azul para curar as coisas tristes.

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O azul está na minha agenda. Todos os dias o escrevo para não me falte.

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Nota: o comprimido é de Lamotrigina.

domingo, janeiro 05, 2025

Agora é outro lugar

 

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Aceito o tempo e compreendo a morte. Não sou fértil em saudades e antes capaz de curiosidade para espreitar como está.

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Percorri a avenida, ao chegar ao largo virei à esquerda, depois sempre em frente, tive a dúvida, aconteceu-me a hesitação e decidi ir pela rua da esquerda. Não pela da direita por saber as ausências, o deserto e das lojas desaparecidas – optei e fui para uma recordação.

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A Rua General Justiniano Padrel, tão perto das duas primeiras casas, ficou sempre longe. Por quê? Porque havia o sentimento da transgressão, uma memória inquietante e o receio de castigo.

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O meu mano andou desalinhado e um dia levou-me Rua General Justiniano Padrel. Ele saiu do caminho certo, não calculo a minha idade, e deixou a casa tinha eu nove ou dez anos. Foi para a Armada, casou-se, descasou-se, juntou-se, fugiu de Lisboa e mudou-se para mais longe.

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Cresci no quarto que deixou e que eu adorava pelo seu exotismo: gira-discos, músicas diferentes, divã, painéis artisticamente pintados, luzes coloridas para se acenderem à noite e um frasco verde, em forma de pinha, com perfume misterioso.

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Ele ia a casa de alguém ou para se encontrar com gente e levou-me. A minha mãe não deve ter gostado ou não tivesse eu o sentimento de transgressão e o receio de sermão.

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Qual a razão da sua censura? Provavelmente por aflição por ele ter ido comprar droga. Contudo, não creio que me levasse a tal lugar…

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Nunca precisei de ir à Rua General Justiniano Pardel, nem para estacionar – quanto muito, em número de vezes igual aos dedos duma mão, à Rua Barão de Monte Pedral que a antecede. Saí do Bairro América quando tinha vinte e oito anos, sem razões para voltar.

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Tive uma namorada que dizia não namorar comigo. Éramos felizes, apesar os meus dias complicados, até que fizemos transbordar o sentimento para o lado errado, inundando de vazio o que nos envolvia e guardávamos. Queria mudar-se, pediu-me que a ajudasse a encontrar casa e visitámos uma na Rua Justiniano Pardel.

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Quando regressei à Rua General Justiniano Pardel, em 2006 e certamente mais de vinte anos após a última vez, estava na mesma: o sentimento da transgressão, uma memória inquietante e o receio de sermão.

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Agora, há dias, fui com o desejo de sentir o esquisito, esperar a desaprovação e conseguir algum remorso. Não estavam lá… possivelmente a morte da minha mãe, vai fazer oito anos, dissipou a magia.

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O que posso fazer para recuperar o feitiço? Nada. Confuso, mesmo sem saudade, tenho de aceitar o tempo.

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Como se eu fosse um fantasma e não encontrasse a casa que me assombrou.

 

 

Agora é outro lugar.

sexta-feira, outubro 25, 2024

Cor de expirar


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Há uma cor só de dois dias, não mais de quatro, íntima e infantil. Os anos esconderam-me o momento anual, mas um asterisco cola-o na altura em que se vê o vapor expirado.

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Abria os olhos matinalmente e admirava-a pela pequena janela quadrada do tecto. Tinha-a como a certeza da mãe. Como ave migratória, nunca duvidei da sua chegada e sabedor dos poucos dias do ninho feito no céu.

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Quando vinha, queria estar na rua para ainda a ver, apesar da sua decadência e desvanecimento.

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O tom lilás-azul existe, embora a memória da última vez que a vi esteja deserta. Não a irreconhecerei, se assomar, sei.

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Há umas noites surgiu-me uma outra, ao modo da pessoa velha-conhecida quando nos é apresentada. Estava deitado, esperando o sono, e olhei para a janela.

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O tom tardio é longe do matinal, ainda assim infantilmente agradável. Se não vier breve, venha nos mesmos dias doutros anos ou, pelo menos, seja aneiro.

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Uma pomada macia untada nas asperezas da minha alma ubérrima de ansiedades e tristuras. E morna, bálsamo quando se vê o vapor expirado.

segunda-feira, setembro 23, 2024

Balanço breve de pouca coisa e alguma esperança

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Aos dezasseis anos acreditamos que seremos o que quisermos. Gosto das  noites de negro e azul e via-me a caminhar para onde sabia chegar. Contudo. O tempo apaga certezas.

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Depois de dois anos a estudar artes, no secundário, mudei-me para humanidades. Fora das aulas escrevia, desenhava e fotografava. Comecei no Diário Económico, em Janeiro de 1990, e jornalismo tornou-se a árvore que sorve toda a água da floresta.

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Cansado do quase ócio na escrita profissional – embora não duvide do meu talento criativo e estilístico nem da competência – pensei que voltar ao estirador pode ser uma opção profissional complementar séria e desanuviador da mente. Nas palavras sou João Barbosa, nas artes João 25.

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Em 2022 soube do concurso Luxembourg Art Prize e concorri. Recuperar totalmente a mão direita, a outra não tem remendo porque foi sempre nula, levou algum tempo. Por isso, a quantidade de obras foi pequena e não me senti confiante nos trabalhos mais recentes.

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Senti uma coisa, uma sensação muito íntima, distante há mais de trinta anos: o prazer de pensar, conceber e fazer. Daí para cá, tenho o sentimento juvenil, do tempo um pouco antes da primeira namorada até à entrada no jornalismo. Uma felicidade de libertação.

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Na minha primeira candidatura ao Louxembourg Art Prize apresentei três desenhos e duas pinturas, a mais antiga de 1987 e a mais recente de 2008. Prometi-me, consciente que cumpriria, repetir no ano seguinte. Decisão reforçada por me ter sido concedido reconhecimento de mérito artístico.

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Em 2022 concorri com este desenho de 1987.

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É estimulante, mas. Quando as artes plásticas eram a minha vida, ganhei vários prémios de fotografia e consegui ser selecionado para a Bienal de Artes Plásticas da Festa do Avante, quando a mostra era uma verdadeira referência nacional – era miúdo e acreditava ser comunista, mas a crença durou pouco, pois reparei que não tenho nada a ver com essa ideologia. O Luxembourg Art Prize é milhares de vezes mais difícil, sou humilde ainda que sonhador.

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Catálogo da VI Bienal de Artes Plásticas da Festa do Avante, 1989.
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No ano seguinte, ainda com algumas inseguranças, concorri ao Louxembourg Art Prize com nove desenhos e quarenta e três fotografias. Os rabiscos datam de 2023, mas as fotos foram antigas, a mais velha reportando a 1987. Novamente, recebi a distinção de mérito artístico.

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Em 2023 concorri com esta fotografia tirada em Coimbra, em 1989. Adorava a minha Lomo, que infelizmente está espatifada.
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Gosto de monstros, mostrengos, fabulosos, fantásticos e bestas-feras.
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Pensei em apostar mais na fotografia, quase jurei. Comprei rolos para as duas Canon e para a Rolleiflex, mas não correu como desejava. Foram muito poucas e, mais dum ano depois, ainda não as mandei revelar. Juntei um conjunto de inseguranças – confusões técnicas, dioptrias, receio em riscar os óculos e  sensação de que uma das câmaras está com problemas.

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A segurança viria, teoricamente, com uma câmara digital. Porém, não tenho dinheiro, nem disponibilidade mental, para comprar. A isso acresce a incerteza de que quero realmente fotografar e de ter tempo, porque continuo a escrever, não deixei o jornalismo. A liberdade juvenil passou, estou na meia-idade e vejo o mundo diferentemente.

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Voltei claramente aos desenhos, ainda que tenha pintado alguma coisa. O número de obras de traço chegou às dezenas e preenchi dois cadernos. Esses livros permitiram-me ocupar a cabeça, estimular o pensamento e exercitar a mão direita.

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No momento em que escrevo, apresentei a concurso Luxembourg Art Prize uma pintura e oitenta e três desenhos. Hesito em entregar mais ou poupar alguma coisa para o ano. Entalada na indecisão está uma obra digital que publiquei aqui. https://infotocopiavel.blogspot.com/2024/01/pergunta.html

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O processo de candidatura é monótono e trabalhoso, mas vale-me a empolgação. Sem câmara digital de qualidade, sem scanner e receoso de que a digitalização em loja possa amolgar o papel, fotografei os trabalhos com o telemóvel.

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Este ano apresento sobretudo criptideos de caudas gigantescas.

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Queda de Ícaro, por João 25, a partir da Pieter Bruegel, o Velho. Aguarela, guache e lápis sobre papel.
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A qualidade dos registos fotográficos é fraca: não consegui rectângulos perfeitos – é o problema maior porque distorce –, a focagem é incerta e a luz pode atrapalhar. Por isso, repeti imensamente. Além dessa trabalheira houve o aborrecimento da escolha dos trabalhos. Finalmente introduzir os dados… ano, título, género, técnica, dimensões e descrição.

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Já que fotografei todos os trabalhos, resolvi fazer o mesmo com os cadernos de desenho. Esses livrinhos, através da datação, atestam os anos em que andei distante do estirador e do cavalete.

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O meu pai dizia que desenho como respiro. É verdade: um papel e um lápis ou caneta obrigam-me a rabiscar compulsivamente, uma espécie de vício. Sempre foi assim. Porém, uma coisa são uns bonecos e outra é trabalhar com objectivo.

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Antes dos dois cadernos recentemente preenchidos, tive um primeiro álbum em 1991 e que só o terminei em 2016. O segundo foi preenchido em 2023, tinha apenas um desenho feito em 1993. Comecei o terceiro no ano passado e terminei-o há poucos meses. O quarto está fazendo-se.

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Primeiro caderno: o meu grande amigo Sérgio.
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Segundo caderno: um trengo e o seu habitat.
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Terceiro caderno: répteis criptideos e um gato.
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Há um outro elemento que traduz o meu afastamento das artes visuais: o género. Gosto muito de heráldica e teimosamente desenho brasões, parafernália acompanhante e mais umas coisinhas. Sinceramente, não me dá grande trabalho… é rápido e graficamente simples de colorir sem tinta.

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Comecei um armorial. Todos os meus amigos e pessoas por quem tenho estima receberam um brasão particular. Há uma regra de ouro: não pode existir qualquer relação com armas familiares existentes.

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Esse primeiro caderno está ocupado sobretudo com heráldica. Muito do que lá está nem foi criado por mim, há igualmente desenhos de registo, como, por exemplo, do «emblema» da Baviera – faço recolha de heráldica de domínio e a tarefa é trabalhosa, basta dizer que o Sacro Império Romano-Germânico era formado, em 1806, por mais de quatrocentos «países»

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Os meus desenhos heráldicos iniciais eram conservadores, embora com liberdades. Fartei-me da ortodoxia despreocupada e criei um formato único. Reconheço que o escudo e o ordenamento são muito feios e demasiadamente-extremamente-inacreditavelmente heterodoxos. Um dia terei paciência para redesenhar em papel, por agora estou quieto nesse assunto, ocupo-me com o trabalho profissional.

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Quis ser original, mas a novidade não correu bem. Na fotografia o púrpura ficou assim. Tive a ousadia de usar o proibido laranja.
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A minha imaginação e a necessidade de matar o tédio foram maiores do que o número de amigos. Assim, os mais chegados receberam vários novos desenhos, formando armas complexas.

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Destravado, continuei criando e cheguei a um momento em que tive de trazer ao mundo dos vivos uns países imaginários. Vim a descobrir que não sou o único biruta e aprendi a palavra geoficção.

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E, basicamente, é isto que quis partilhar.

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Descobri, há poucos dias, que aos 18 anos já gostava de vodka com limão.








terça-feira, setembro 17, 2024

Ícaro queixou-se menos

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Não voarei no Concorde, mas não faz mal, nem no Caravelle, e isso já dói.

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Nem no Super Constellation nem no Electra nem no Tristar.

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Nem no DC-8 nem no DC-9 nem DC-10 nem no MD-11. Vou suspirando, qual menina adolescente vendo o cartaz da banda, pelo DC-3, que já aterrou sozinho. Largaram-no e lá foi ele, trabalhador humildemente arrogante. Velho e teimoso, aterrou sozinho.

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O 707, às vezes, fazia vibrar os vidros da minha janela. Ainda estava sobre o Tejo e já o ouvia no outro lado da casa. Corria para o ver chegar e corria para o ver ir embora. Não voarei.

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Voei no 727 e no Tu-154, que têm parecenças. No Boeing entrei pela traseira, sob o motor do meio e no soviético foi pela frente, sentei-me mesmo ao fundo, sob o engenho central.

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Gosto do 737… há tantos. É como as louras na Escandinávia, por tantas, prefiro as morenas mediterrânicas, e metade das vezes ao contrário.

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Infeliz, não melancólico, pensando no 747, que já não se faz. Devia ser proibido deixar de construir a Rainha dos Céus… por que não um fundo, das Nações Unidas ou da União Europeia, para proteger o passarinho cabeçudo?

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Nem no VC-10 nem no Il-62. Há tantos… a mim, que não tenho cagufas de voar, não me apanham num Comet. Como se houvesse um Comet para apanhar. Não voarei.

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Havia tantos e agora há tantos que não voarei… lembrei-me do VFW-F 614, esquisito como… escaganifobético, esdrúxulo, com aquelas asas… um zingarelho, uma mofamagarifamafofinha, que tem um ninho com sete mafamagarifamafofinhos. Voava cuncatoriamente, quase de certeza. Tão feio que não há foto de jeito para mostrar.

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Sim, o 787 é bonito, mas eu, sem dinheiro, não tenho o outro lado do mundo para ir. Só este, porque o Boeing são iguais aos Airbus e os Airbus são todos iguais. Rezo tanto.

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Não me falem no A380, que também é diferente. Pois é. Pois é um trambolho grande, mais feio do que uma francesinha a transbordar do prato.

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Já que falei numa mixórdia do Porto… ou dos arredores… fui para lá na barriga da minha mãe, num Caravelle.

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A minha primeira vez foi de Faro para Lisboa e do alto percebi que o Algarve é talqualmente no mapa, definido pelo Guadiana, o Atlântico e as serras.

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Do Porto, do FCP, não sei. Sei que não verei jogar o Peyroteo, o Eusébio nem tampouco o Matateu.

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Já ouvi:

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– Lisboa tem a águia, o leão e a cruz de Crist’e, o Porto tem a pantera e o dragão, animal que não existe.

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Tantas lamentações e mais o calor tardio que está lá fora e também cá dentro. Cerveja? Não beberei nem irei a lado nenhum.

segunda-feira, setembro 16, 2024

Não há eléctricos em Braga

 

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O que é a mentira?

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A pergunta faz pouco sentido, porque notável é a verdade. Por precaução, perguntamos pela veracidade, é isso. Contrariamente, afirmamos:

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 – É mentira!

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Ou artificialmente contornamos, falando o mesmo.

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Levo anos, frequentemente, até perceber evidências. Não sei se é por falta de inteligência ou pouca atenção, mas arrogantemente posso proclamar-me prudente. Espero, contudo, que colha sabedoria por essas pausas.

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Passei por tolo muitas vezes – ninguém mo disse, directamente ou, se o fez, não entendi ou olvidei – desdizendo essas provas. Sinto-me idiota, não pelo que não entendi, mas pelo que desdisse.

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– E se Pilatos tivesse dito:

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– O que é a mentira?

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O que seria de nós? Em que estado estaríamos se o episódio bíblico fosse doutro modo? Que debatam os doutores do pensamento, mas não haverá nem zero nem infinito.

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O meu apatetamento amplia-se dentro de mim, sentindo os castigos dos outros, mais brandos, e os meus. Talvez os outros nem tenham.

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A palavra da hora é a «inverdade», o seu estuário e donde desagua. Conversava, pensava eu estar ensinando, com um miúdo, a quem tenho por obrigação entregar conhecimento, sobre o significado de mentira.

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Dizia ele que se não é verdade é porque é mentira. Não tão claramente, desmentia-lhe e explicava. Ele, por teimosia de sono ou contrariedade infantil, não desistia. Cito-me nas próximas vezes, as suas respostas não importam, porque foram iguais.

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– Mentira é quando se diz, conscientemente, uma coisa que não é verdade.

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– Mentira é quando se diz, com maldade, uma coisa que não é verdade.

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– Se dissermos uma mentira porque alguém nos disse, e acreditarmos, não estamos bem a mentir.

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Estou perplexo por ter conseguido segurar uma afirmação imprecisa, em que as coisas são absolutas, e tornar tudo mais complicado. Como se tivesse aberto um relógio para explicar como funciona, não o tendo conseguido e ficado com peças de sobra ao remontá-lo.

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A «inverdade» ocorreu-me quando vi uma imagem datada, dum episódio ocorrido antes do meu nascimento e que julgara, de algum modo, ter sido coevo. Em instantes chegaram-me situações diversas do uso das palavras «verdade» e «mentira».

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Os políticos são mestres em retórica e se acumularem com conhecimento jurídico fazem naperões com artifícios linguísticos – mestre deve ler-se sábio, mas sabe-se que nem todos os mestres são mestres, se digo mestre é para facilitar. Na oratória repete-se a palavra «inverdade» – recurso abusado quando há pouco de substantivo e quase tudo de partida de ténis, possivelmente o desporto mais enfadonho.

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– O que vossa excelência disse é uma inverdade!

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Quem sentencia chama mentiroso ao outro e todos entendem. Na resposta, o visado não acusa a estocada que o opositor deu não dizendo. No espelho o direito é esquerdo, verdade e mentira.

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Aprecio o texto complexo e o virtuosismo do escrever, mas não é por gostar da pintura barroca flamenga que tenho de me deleitar com a escultura barroca portuguesa. A palavra «inverdade» tem-me agoniado até às veias.

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No entanto, a inverdade não é afinal só perversa, como a tenho avaliado. Quem a criou merece um Nobel qualquer – talvez a tenha gerado malignamente, mas tem uso bondoso, como a nitroglicerina serve para partir a rocha das minas, matar e dilatar as veias do cardíaco.

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O que me faltou, essa palavra, naquela conversa avessa.

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– A mentira que dizemos julgando ser verdade é uma inverdade.

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É brilhante! Não a minha descoberta, mas a invenção.

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Nota: na memória tenho um passeio por Braga, na década de oitenta, em que viajei de eléctrico. Afinal, estão parados desde 1963.

sexta-feira, setembro 13, 2024

Arestas

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Amaina e volta e retorna e regressa desatinado, o mar. Maravilhado numa angústia de amor, a que se obedece por não poder outra.

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Não sei se lhe gabe as ondulosas virtudes femininas ou lhe tema a ira do marido contrariado.

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Olho-o aprisionado, como os antigos. Tal faria eu se tivesse o céu nocturno inteiro, com todas as estrelas, as mortas e as vivas, como no tempo dos velhos.

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Não sei se o mar é verdadeiro ou um teatro e não sei o mesmo dos luzeiros celestes. E são diferentes.

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O camponês, ignaro da letra, lia o céu e não há vidente que saiba de mar. O firmamento é verdade e o corpo marítimo é a contradição repetente e irrepetitiva.

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O mar, o que é? A verdade é verdade e se o não é, é porque se permite. A fotografia não me elucida, nem a sisuda nem a fingida.

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Vemos o mar, o que deixa. Seja na claridade barroca ou na taciturna melancolia da névoa – dos mesmos modos nas noites, nas suas diferenças.

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Do céu? Se a nuvem se afastar e à noite ainda mais, com a permissão das lâmpadas.

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As estrelas desenham-se com poucos traços e as ondas com muitos riscos. Contudo, o céu e o mar não têm arestas.

domingo, setembro 08, 2024

Azul, azul de azul tão azul

 

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Receio tocar no assunto, porque ao fazê-lo sei que a porta se abre e voo para baixo, e a queda não finda.

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Penso em madeira: o caixilho da janela, o soalho como mosaico ou o piano.

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Poderei sair e ver o céu que prevejo azul, azul de azul tão azul.

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Do chão não passo e o teclado dar-me-á. Dará ao dará, o que for, voto por azul.

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Contemplo as teclas, adianto a direita, a esquerda enjeitou-me, hesito como num salto. Não sei tocar nem cair.

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Da fenestra para dentro há luz escurecente do ânimo. Claridade feia, podia calar-se a revelar-me o estado da minha alma, conheço-a da sentir.

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Escolho uma cadeira para ver o azul.

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Nesse meu sonho as pernas esticam-se correndo para a pedra da janela onde deixo os pés libertos.

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Estou na prisão, por não saber fazer mais nada.

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Não quero saber, se dizem amavelmente haver azul, tomo o rebuçado dessa cor, apago a luz da sombra e, sem olhar, contemplo os destroços como uma obra de arte.

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Resto de olhos fechados com o sorriso mais azul. Ninguém mo roubará. Lá fora é azul e esconjuro bicho.

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Azul, azul de azul tão azul.

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Não volto a tocar no assunto! A arte é o que se quiser e quero que seja.

quarta-feira, setembro 04, 2024

O branco, se devaneio, sonhei ou minto

 

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Foi um branco de dourado barroco, numa sala ambarina – um templo consagrado pelas chamas dos círios, onde vozes dos ausentes não entram e dos presentes se cativam  – verteu-se com cerimónia, silenciosa reverência e ansiedade infantil.

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Regrando silêncio casto, pecando por vontade boateira, em custo liberto duas verdades amplas e opacas. Genéricas para esconder e obscuras por desconhecer palavras de justiça, sou mero iniciado, e não virtuoso pudor.

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Aromas raros e paladares de mistérios.

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Um vinho de biblioteca restrita e regiamente nocturno. Sugeri conhecer o claviculário e a tranca da estante invisível e bebi-o fingindo saber carolíngio.

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Tocou-me a boca como o fantasma se encosta na vidente. Deixei-o ficar e em segundos de paz alvoroçou-me, como a dor do orgasmo. Engoli-o e fez-me seu escravo. Por ele recebi a bondade magnânima de Deus e a maldade rechonchuda do Diabo.

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Subi a escada celeste e numa nuvem… conte o quiser quem quiser, resto em silêncio cartuxo.

terça-feira, setembro 03, 2024

Astronauta

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Tenho de ir a Wuppertal, porque tenho de ir. Prevejo-me homem-do-futuro reconhecendo a casa dos seus distantes avós. Não vou procurar o passado, sou quase alérgico à saudade, sinto que preciso de fazer as pazes comigo. Contudo, não matei e fui feliz.

 

sexta-feira, agosto 23, 2024

quinta-feira, agosto 22, 2024

Barbas e bigodes

Irei sempre lembrar-me dos meus mestres. Escrevo o que pretende ser um agradecimento aos três que partiram do mundo material.

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Um dia um amigo podia ter-me ensinado a escrever, fê-lo não fazendo. Não foi um bê-à-bá. As conversas que partilhou, desde a minha tenra adolescência até ao meu adultecer, ensinaram-me mais do que se tivesse estado sentado comigo à mesa do estudo.

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O Eduardo Guerra Carneiro deu-me, numa generosidade que ele próprio talvez não soubesse, transfusões de conhecimento e de sensibilidade. Sabedoria de poeta, mesmo quando não estava a poemar. Confesso que li pouco do que escreveu, mas o que me passou pelos olhos é grande.

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Não me tornei jornalista por causa do Eduardo. Contudo, a visita guiada ao Diário Popular é, ainda hoje, maravilhosa e a memória tem uma distância de quarenta anos. O jornal tinha uma dimensão enorme, da vida dos telefonemas e do teclar nas máquinas-de-escrever à vida dumas máquinas muito maiores que ruidosamente coloriam o papel com as palavras que seriam lidas pelo público.

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Fui parar ao jornalismo por causa dum desgosto de amor. Não sei se o consolo não deu em castigo… a desgraça original já não me dói e a moça ficou sempre amiga. A outra? Enfim. Assunto terminado.

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Em meados da década de noventa achava-me maduro, consciente que aprendera com bons mestres e amigos: o Goulart Machado, o Maurício de Carvalho e o Mário Rosendo. Os dois primeiros foram muito pragmáticos: diziam o que pretendiam, liam a minha escritura, explicavam e mandavam-me alterar o entendiam. Além do Eduardo, que foi mestre sem nunca ter trabalhado com ele.

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O Mário quase me dava reguadas. Eram castigos e gargalhadas. Não foi com bê-à-bá, ensinou-me com o riso e o açoite, desde o picar-o-ponto até ao apanhar o táxi após uma noite de copos.

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O Eduardo, o meu primeiro mestre, não era dado a graças, embora se risse sempre com as minhas anedotas e disparates, mesmo quando não gostava. Nessa vezes comentava curta e amistosamente:

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– Oh Barbosa!...

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Penso ter sido humilde, no início… possivelmente até mais uns aninhos. A realidade pode ser parede ou almofada, ou pedra almofadada. Volto atrás: em meados da década de noventa achava-me maduro, consciente que aprendera com bons mestres.

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Estava no Diário Económico e um dia sentou-se à secretária à frente da minha um homem de meia-idade com um bigode anacrónico. Pareceu-me seco, quase sisudo, e aborrecidamente chefe. Essa impressão durou «cinco minutos».

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O João Paulo Guerra ensinou-me que nunca se sabe escrever, vai-se aprendendo, permanentemente, a grafar e a pontuar o que se vai pensando, exigindo cogitar melhor. Não me disse como bê-à-bá, bastou-me despachar trabalho com ele e receber transfusões de humor.

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Portanto, deu-me com uma pedra almofadada. Ainda hoje me dói essa felicidade.

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Um dia o João apareceu sem bigode. Pareceu-me bem, mas esquisito. A impressão durou «cinco minutos». Comentei, a depilação, com o Eduardo, que usava barba. Uns tempos depois, num jantar, disse-me que se tinham cruzado.

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– Tens razão, ficou esquisito.

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A impressão deve ter-lhe durado os mesmos «cinco minutos».

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Só para memória futura: o Mário, igualmente amigo do Eduardo, também usava bigode. Era um aristocrático à moda de Eça de Queiroz. Aliás, tinham parecenças fisionómicas. Porém, essa cabeleira facial, esteticamente mais antiga, parecia-me menos anacrónica do que a do João… sei lá... que mais tarde deixou crescer a barba.

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O Eduardo tem razão: isto anda tudo ligado.

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O Mário partiu há trinta anos e o Eduardo há vinte. O João foi, há dias, ter com eles. Porque acredito que a morte não existe, suspeito que estejam os três à conversa.

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Na lista dos meus defeitos não consta a ingratidão. Estou grato ao Mário, ao Eduardo e ao João, não pelo que me ensinaram, mas pelas suas amizades. Apesar da amizade não se agradecer.

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Como não acredito na morte, reafirmo que, provavelmente, estão os três à conversa.

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Nota: Guardo, obviamente, gratidão ao Goulart e ao Maurício. Espero encontrar-me com eles, sempre para um curto prazo. Mas a recente partida do João obrigou-me a elogiar os que fecharam a edição na Terra.

quinta-feira, abril 25, 2024

A besta da ditadura contra todas as flores

 

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Cinquenta anos de liberdade. Obrigado a quem lutou por ela e a tornou viva.

Cinquenta anos de liberdade

 

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A besta da ditadura contra todas as flores
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Serve de registo a duas datas. Uma é íntima e outra portuguesa. Ficam as minhas palavras de gratidão e de soberania. Se chegarei a ser polémico? Digam os juízes. Tomo a liberdade de ter liberdade.

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O meu pai faria hoje cem anos. Em casa não havia aniversário, a festa era a da alegria da liberdade. A data nasce dele e nele se encerra, por ser, provavelmente, quem mais me moldou.

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O Manuel Jorge disse sempre claramente que o melhor dia da sua vida foi o 25 de Abril de 1974, calhou-lhe no momento dos seus 50 anos. Mais do que o nascimento dalgum dos três filhos. A sua genuinidade, demasiadas vezes inoportuna, dava-lhe justificação das palavras e perdão dos outros.

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A minha memória do 25 de Abril, acontecido quando tinha quatro anos, não é a da data da revolução que veio a impor a democracia. É um ramalhete de momentos irmãos desse dia histórico. Sei que são lembranças, total ou parcialmente, equívocas e desacertadas no tempo, mas tenho-as.

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Guardo duas memórias – obviamente forjadas pela imaginação por só me narrarem – de manifestação de amor paterno, que não era dado a ternuras nem manifestações verbais de carinho. A primeira delas é a do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, em que não era nascido, e outra é a do 25 de Abril de 1974, quando certamente estive mais interessado em brincar com os carrinhos.

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O meu pai, sentindo o prédio a oscilar, foi buscar a minha irmã e o meu irmão, de catorze e nove anos, e fez um ninho na cama. Nesse tempo era viúvo e esse gesto enche-me de ternura, especialmente por causa do meu mano. Dizia:

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– Se fosse para morrer, morreríamos juntos.

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O meu pai era frontal, amigo do seu amigo e de ideais mas não era temerário. Ensinou-me que ter medo não é vergonha e não respeitar o perigo é irresponsabilidade. No 25 de Abril o país estava agarrado aos rádios e em alvoroço nas ruas. Segurou os meus manos, de 19 e 14 anos, e não os deixou ir para os festejos. Prudência alimentada pelas décadas de repressão política.

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A minha colecção de momentos do 25 de Abril tem certamente confusões, lapsos e invenções. Lembro-me duma vez, já de noite, em que houve um tarantantã qualquer e o meu pai saiu de casa com uma pistola. Foi numa data importante do processo.

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Não sei se saiu. Não sei se levou uma pistola. Não sei se tinha pistola. Não sei se era noite. Não sei se aconteceu. Na minha cabeça foi real e senti um grande orgulho no meu pai, como se fosse um herói.

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No 11 de Março de 1975 – data que cito sem qualquer rigor, por crença – ouvi tiros e lembro-me da minha mãe estar muito ralada. Não percebia nada do que se tinha passado, estava a acontecer ou poderia suceder, mas dalgum modo senti o frenesim dos grandes momentos.

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A saudade é um sentimento – na verdade um ramalhete de sentires – que frequentemente é irracional. Como sentir com apreço momentos terríveis, cuja razão se deve à idade que se tinha à época a que se reporta. É aí que se enraíza a nostalgia.

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Não tenho inveja das gerações anteriores nem posteriores à minha. Não daria nada para viver a euforia do 25 de Abril. Não cultivo as minhas datas e muito menos sou nostálgico dum tempo que não vivi. Isto não significa desinteresse nem desvalorizo a luta pela liberdade.

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Por não ser nostálgico é que me enfado com o passado e me irritam as repetições. Reviro os olhos cada vez que oiço o «Grândola, vila morena», porque cansado da linda música e generosos versos, e não uso cravo vermelho no peito – sabe quem sabe e tem rigor que a flor das ruas era de todas as suas cores, não apenas a rubra – nem doutra coloração. Nem rosas, orquídeas, lírios, jarros, gladíolos nem outra nem de papel.

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O 25 de Abril não é essa canção nem a doce e perfumada roda recortada. É um conceito e um conjunto de acontecimentos. Não me tomem por ingrato, só não aceito liturgias e rezas da tradição. Sou consciente e agradecido, mas não estive nesse momento, passado que não é meu.

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Valorizo o significado do 25 de Abril e respondo com desprezo aos salazarentos. Aliás, só entendo a raiva ao 25 de Abril daqueles que perderam alguma coisa com a chegada da liberdade. Os outros nostálgicos são ou ignorantes ou imbecis. O inculto, se tiver génio de curiosidade e boa-vontade, ilustra-se, lavando-se com estatísticas. O outro é bruto e tacanho como o Estado Novo.

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Tenho pena de ter deitado fora uma pintura minha de quando tinha quatro ou cinco anos, ainda frequentava no jardim-infantil. No papel de cenário pintei uma pessoa, uma metralhadora da sua altura e outra coisa que não tinha nada a ver – teria no entender da criança.

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Na escola pintei helicópteros a despejarem cravos e metralhadoras com cravos, como todos os miúdos. As flores a tombarem do céu era um momento real e obrigatório em nós, certo como o amor materno.

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Ando há mais dum mês a escrever este texto. Ando com a certeza de que não conseguirei expressar claramente o meu sentimento. Recorri ao meu pai como ferramenta e saiu pobre, a obra. Perdido, resumo:

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O 25 de Abril é muito importante para mim! Viva a liberdade!