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A Manga chegou porque tinha de
chegar, embora eu não quisesse mais nenhum cão. Mas se veio é porque havia
razão, ninguém surge sem um motivo.
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Disse exigindo:
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– Um cão, só se não ladrar.
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Sou gatófilo. Adoro cães, mas criam-me
ansiedade – por várias razões. Os animais sentem o nosso estado de espírito e
não quero transmitir-lhes intranquilidade. O ladrar incomoda-me bastantíssimo.
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Sinceramente, acreditei que a
minha condição não iria ser tida em conta. Não esperava que a Ana procurasse um
cão que fosse silencioso. Estudou e descobriu que o épagneul breton não ladra.
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Nunca privilegiámos raças e, por
isso, a escolha não seria baseada em pedigree nem, muito menos, compraríamos um
animal. A procura seria feita em associações e com a condição explícita de não
ladrar ou de fazê-lo pouco.
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A condição era essa, tanto
fazendo se de raça ou rafeirice. Porém, encontrou uma épagneul breton para
adopção. Se achou, cumpri a minha parte: adoptar a bichinha.
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Fomos visitar a UPPA já decididos
a trazê-la. Tinha sido abandonada no canil de Sintra, resgatada com sete anos e
estava há um para adopção. Quem visitou a associação, antes de nós, dizia que
era linda, mas que «ia pensar». O «ir pensar» significa «é velha». Por isso, os
voluntários ficaram visivelmente felizes quando a viram no banco traseiro do
nosso pequeno carro.
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Saiu da Terrugem chamando-se
Manga-Rosa e chegou a Lisboa só com o nome de Manga. Com o tempo passei a
chamar-lhe Manga Maria e Mangalética.
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Veio o caminho todo a arfar. Compreendemos,
pois não nos conhecia, estava num automóvel – sem sabermos qual a sensação ou
memória que isso lhe causava – e entrou numa casa com soalho de madeira –
desconhecíamos se já vivera com esse chão.
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Durante uns dias arfava e dormia.
O sono é explicável pelo défice de descanso numa colónia de cães, onde o ladrar
é constante. Todavia, a respiração deixou-nos apreensivos, mas passou com o
tempo.
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Chegou a pensar que iria ficar
com o quarto lugar na hierarquia da casa, logo abaixo dos Homo sapiens sapiens, e corria atrás das gatas – o que, uma vez,
poderia ter sido fatal para a Valsa. A gata saltou a tempo e o prejuízo foi
apenas uma jarra ligeiramente lascada.
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Um dia vimo-la a olhar para a
Granita e a ganir. Portanto, a gata alfa deve ter-lhe explicado, com os
«garfinhos», que o gato tem estatuto superior ao cão.
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A Manga, de facto, não ladrava –
devo tê-la ouvido duas ou três vezes. Fazia, às vezes, um som parecido quando
dormia e nada mais.
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A doçura era outra das suas
características. Era muito mansa e dócil, gostava de crianças, mas era impiedosa
com pombos – assassinou um no jardim da Parada do Alto de São João. Um dia, uma
veterinária fez-lhe a patifaria de espetar uma agulha… não mordeu nem rosnou…
deu-lhe beijinhos.
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Com o tempo, o meu amor por ela
cresceu enormemente e ela retribuiu na mesma quantidade e qualidade. Uma relação
que até espantou a treinadora que a ajudou a ultrapassar uns comportamentos
indesejáveis. Passei a dizer:
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– Gosto mais de gatos do que de
cães. Mas a Manga é a Manga. A Manga não é um gato e também não é um cão. A Manga
é a Manga!
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A Ana tirou o Bobi da rua. Não sabíamos
se a Manga o iria aceitar ou, no mínimo, criar pequenas disputas. Não podia ter
corrido melhor, ficaram os melhores amigos, sem ciúmes ou qualquer azedume.
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Quando o Bobi morreu, em Abril de
2024, a Manga deprimiu e envelheceu, perdendo o interesse em ir passear à rua. Lentamente,
foi ficando menos ágil. Neste Verão foi connosco para o campo, melhorou
nitidamente o ânimo e passou a andar melhor, embora eu tivesse continuado a
ajudá-la a subir escadas. Conclusão:
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– Confirma-se, estava um pouco
desajeitada a andar por fazer pouco exercício.
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Errado.
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Numa tarde de final de Agosto começou
com espasmos. Dificilmente consegui acalmá-la e levei-a imediatamente à
Sociedade Protectora dos Animais. A Manga estava com uma doença neurológica. Resumindo,
o mal progrediu rapidamente e hoje.
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Direi sempre:
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– Gosto mais de gatos do que de
cães. Mas a Manga é a Manga. A Manga não é um gato e também não é um cão. A Manga
é a Manga!
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Nota: Gostava de pôr uma
fotografia mais humana do que esta, mas, devido a problema com o computador,
não tenho melhor.