digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, janeiro 05, 2025

Agora é outro lugar

 

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Aceito o tempo e compreendo a morte. Não sou fértil em saudades e antes capaz de curiosidade para espreitar como está.

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Percorri a avenida, ao chegar ao largo virei à esquerda, depois sempre em frente, tive a dúvida, aconteceu-me a hesitação e decidi ir pela rua da esquerda. Não pela da direita por saber as ausências, o deserto e das lojas desaparecidas – optei e fui para uma recordação.

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A Rua General Justiniano Padrel, tão perto das duas primeiras casas, ficou sempre longe. Por quê? Porque havia o sentimento da transgressão, uma memória inquietante e o receio de castigo.

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O meu mano andou desalinhado e um dia levou-me Rua General Justiniano Padrel. Ele saiu do caminho certo, não calculo a minha idade, e deixou a casa tinha eu nove ou dez anos. Foi para a Armada, casou-se, descasou-se, juntou-se, fugiu de Lisboa e mudou-se para mais longe.

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Cresci no quarto que deixou e que eu adorava pelo seu exotismo: gira-discos, músicas diferentes, divã, painéis artisticamente pintados, luzes coloridas para se acenderem à noite e um frasco verde, em forma de pinha, com perfume misterioso.

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Ele ia a casa de alguém ou para se encontrar com gente e levou-me. A minha mãe não deve ter gostado ou não tivesse eu o sentimento de transgressão e o receio de sermão.

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Qual a razão da sua censura? Provavelmente por aflição por ele ter ido comprar droga. Contudo, não creio que me levasse a tal lugar…

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Nunca precisei de ir à Rua General Justiniano Pardel, nem para estacionar – quanto muito, em número de vezes igual aos dedos duma mão, à Rua Barão de Monte Pedral que a antecede. Saí do Bairro América quando tinha vinte e oito anos, sem razões para voltar.

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Tive uma namorada que dizia não namorar comigo. Éramos felizes, apesar os meus dias complicados, até que fizemos transbordar o sentimento para o lado errado, inundando de vazio o que nos envolvia e guardávamos. Queria mudar-se, pediu-me que a ajudasse a encontrar casa e visitámos uma na Rua Justiniano Pardel.

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Quando regressei à Rua General Justiniano Pardel, em 2006 e certamente mais de vinte anos após a última vez, estava na mesma: o sentimento da transgressão, uma memória inquietante e o receio de sermão.

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Agora, há dias, fui com o desejo de sentir o esquisito, esperar a desaprovação e conseguir algum remorso. Não estavam lá… possivelmente a morte da minha mãe, vai fazer oito anos, dissipou a magia.

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O que posso fazer para recuperar o feitiço? Nada. Confuso, mesmo sem saudade, tenho de aceitar o tempo.

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Como se eu fosse um fantasma e não encontrasse a casa que me assombrou.

 

 

Agora é outro lugar.