Cinquenta anos de liberdade. Obrigado a quem lutou por ela e a tornou viva.
digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.
Serve de registo a duas datas. Uma é íntima e outra portuguesa. Ficam as minhas palavras de gratidão e de soberania. Se chegarei a ser polémico? Digam os juízes. Tomo a liberdade de ter liberdade.
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O meu pai faria hoje cem anos. Em casa não havia aniversário, a festa era a da alegria da liberdade. A data nasce dele e nele se encerra, por ser, provavelmente, quem mais me moldou.
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O Manuel Jorge disse sempre claramente que o melhor dia da sua vida foi o 25 de Abril de 1974, calhou-lhe no momento dos seus 50 anos. Mais do que o nascimento dalgum dos três filhos. A sua genuinidade, demasiadas vezes inoportuna, dava-lhe justificação das palavras e perdão dos outros.
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A minha memória do 25 de Abril, acontecido quando tinha quatro anos, não é a da data da revolução que veio a impor a democracia. É um ramalhete de momentos irmãos desse dia histórico. Sei que são lembranças, total ou parcialmente, equívocas e desacertadas no tempo, mas tenho-as.
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Guardo duas memórias – obviamente forjadas pela imaginação por só me narrarem – de manifestação de amor paterno, que não era dado a ternuras nem manifestações verbais de carinho. A primeira delas é a do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, em que não era nascido, e outra é a do 25 de Abril de 1974, quando certamente estive mais interessado em brincar com os carrinhos.
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O meu pai, sentindo o prédio a oscilar, foi buscar a minha irmã e o meu irmão, de catorze e nove anos, e fez um ninho na cama. Nesse tempo era viúvo e esse gesto enche-me de ternura, especialmente por causa do meu mano. Dizia:
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– Se fosse para morrer, morreríamos juntos.
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O meu pai era frontal, amigo do seu amigo e de ideais mas não era temerário. Ensinou-me que ter medo não é vergonha e não respeitar o perigo é irresponsabilidade. No 25 de Abril o país estava agarrado aos rádios e em alvoroço nas ruas. Segurou os meus manos, de 19 e 14 anos, e não os deixou ir para os festejos. Prudência alimentada pelas décadas de repressão política.
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A minha colecção de momentos do 25 de Abril tem certamente confusões, lapsos e invenções. Lembro-me duma vez, já de noite, em que houve um tarantantã qualquer e o meu pai saiu de casa com uma pistola. Foi numa data importante do processo.
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Não sei se saiu. Não sei se levou uma pistola. Não sei se tinha pistola. Não sei se era noite. Não sei se aconteceu. Na minha cabeça foi real e senti um grande orgulho no meu pai, como se fosse um herói.
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No 11 de Março de 1975 – data que cito sem qualquer rigor, por crença – ouvi tiros e lembro-me da minha mãe estar muito ralada. Não percebia nada do que se tinha passado, estava a acontecer ou poderia suceder, mas dalgum modo senti o frenesim dos grandes momentos.
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A saudade é um sentimento – na verdade um ramalhete de sentires – que frequentemente é irracional. Como sentir com apreço momentos terríveis, cuja razão se deve à idade que se tinha à época a que se reporta. É aí que se enraíza a nostalgia.
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Não tenho inveja das gerações anteriores nem posteriores à minha. Não daria nada para viver a euforia do 25 de Abril. Não cultivo as minhas datas e muito menos sou nostálgico dum tempo que não vivi. Isto não significa desinteresse nem desvalorizo a luta pela liberdade.
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Por não ser nostálgico é que me enfado com o passado e me irritam as repetições. Reviro os olhos cada vez que oiço o «Grândola, vila morena», porque cansado da linda música e generosos versos, e não uso cravo vermelho no peito – sabe quem sabe e tem rigor que a flor das ruas era de todas as suas cores, não apenas a rubra – nem doutra coloração. Nem rosas, orquídeas, lírios, jarros, gladíolos nem outra nem de papel.
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O 25 de Abril não é essa canção nem a doce e perfumada roda recortada. É um conceito e um conjunto de acontecimentos. Não me tomem por ingrato, só não aceito liturgias e rezas da tradição. Sou consciente e agradecido, mas não estive nesse momento, passado que não é meu.
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Valorizo o significado do 25 de Abril e respondo com desprezo aos salazarentos. Aliás, só entendo a raiva ao 25 de Abril daqueles que perderam alguma coisa com a chegada da liberdade. Os outros nostálgicos são ou ignorantes ou imbecis. O inculto, se tiver génio de curiosidade e boa-vontade, ilustra-se, lavando-se com estatísticas. O outro é bruto e tacanho como o Estado Novo.
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Tenho pena de ter deitado fora uma pintura minha de quando tinha quatro ou cinco anos, ainda frequentava no jardim-infantil. No papel de cenário pintei uma pessoa, uma metralhadora da sua altura e outra coisa que não tinha nada a ver – teria no entender da criança.
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Na escola pintei helicópteros a despejarem cravos e metralhadoras com cravos, como todos os miúdos. As flores a tombarem do céu era um momento real e obrigatório em nós, certo como o amor materno.
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Ando há mais dum mês a escrever este texto. Ando com a certeza de que não conseguirei expressar claramente o meu sentimento. Recorri ao meu pai como ferramenta e saiu pobre, a obra. Perdido, resumo:
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O 25 de Abril é muito importante para mim! Viva a liberdade!
A Paraquedas completou ontem dezanove anos. O que se diz a uma gata desta idade?
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Digo-lhe tudo o que disse durante todos os anos da nossa vida comum.
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Por alturas do Entrudo, a família estremeceu quando, ronronando baixinho, por duas vezes se escondeu. Só com um quilo e meio, desatenta e de olhar vago. Esteve com três patinhas no Outro Mundo. Porém, a Paraquedas não quis ir, não sei quantas das suas sete vidas gastou, pesa dois quilos e cem.
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Parabéns, Paraquedinhas.
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A adopção do Bobi é dos momentos mais importantes da minha vida e enche-me o coração de orgulho-bom e de gratidão por tudo que me deu – nos deu. Um cão feliz, possivelmente o mais feliz do mundo.
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De idade incerta, viveu à volta de vinte anos, para mais. Teve uma vida dura. Sofreu violência física que lhe custou dentes da frente, a fractura do maxilar e um olho para fora. Suportou um banho de água quente – embora não ao ponto de pelar. Foi envenenado. Por pouco não perdeu uma perna – derivado duma ferida causada pela corda com que o prenderam por maldade. Abandonaram-no para morrer, com pouca água e nenhuma comida. Além de doente cardíaco, com efisema pulmonar e portador leishmaniose.
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Porém, foi o cão mais feliz do mundo e o mais grato. Tão doce que podia causar diabetes a quem lhe dava festas. Tinha um olhar muito meigo, pedia constantemente mimos, sempre carente, mas ciente que não lhos negariam.
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Sempre a dar à cauda quando via um dos seus três humanos, a Manga, a Paraquedas ou a Valsa. Muitas vezes não vendo nem ouvindo ninguém, de costas, para nós e amigas, e olhando para a frente, continuava a agitá-la. Não lhe faltava motivo para o fazer, estava feliz. Estava sempre feliz.
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Meigo e feliz mesmo quando a Valsa aparvatava e se armava em gata, dando-lhe patadas ou até o perseguindo para judiar. Fugia com a cauda entre as pernas, mas a dar-a-dar como se ela o estivesse a mimar.
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Ganhou cuidados de saúde, carinho, chão quente, almofadas, uma matilha – contando com as gatas – e um nome. Um nome ou mais. Por tão carente respondia também por Bibope, Bigode e Manga. Ganhou a alcunha de Cão do Demónio, porque uma vez, no segundo dia de estar connosco, se desenvencilhou da coleira e desatou a correr pelo centro de Lisboa. Desconfiava dos humanos e desdenhava do odor dos consultórios veterinários. Velho, doente cardíaco e só com três pernas funcionais corria como um jovem atleta.
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Precisámos de quase duas horas para o apanharmos, o que só possível com a ajuda de duas outras pessoas. Fantasiando, quando nos via olhava-nos, com olhos vermelhos e expressão diabólica, e fugia.
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É conhecida a generosidade dos cães e o Bobi ofereceu-me uma surpresa de molhar os olhos: Custa-me a suportar o ladrar, cria-me ansiedade. Ainda distante do momento da partida, foi deixando do fazer.
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Tendo em atenção a proporção, tinha uma bexiga considerável. O tratamento da leishmaniose obrigou a ida diária ao veterinário para receber uma injecção. A casa e o consultório distam um quilómetro e meio, na ida e volta levantou 52 vezes a pata para urinar, de tão impressionados decidimos contar.
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Lido bem com a morte, mas um cão triste entristece. A Manga está triste. Por vezes fica com a respiração de ansiedade e o seu olhar aperta o coração.
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Hoje pensava festejar os dezanove anos da Paraquedas. A celebração fica adiada para amanhã.