Há uns anos, antes da internet, muitas pessoas acreditavam que os livros só continham verdades. Podiam admitir a hipótese de estarem desactualizados, mas criam que só a verdade, apenas ela, era publicada. Portanto, a boa-fé e a sabedoria, a do momento da impressão, imperavam. A literatura é doutro reino.
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Um dia, num grupo do Facebook, alguém, enlevado, floreava a sua paixão pela escrita publicada. Escreveu dos livros e das verdades – um poeta intalentoso, simultaneamente rococó e romântico – colhendo muitos aplausos, vivas e hurras. Não fui malcriado, nem tampouco brusco, quis somente ser um generoso contribuinte para a conversa. Disse que sempre houve erros, equívocos e mentiras. Exemplifiquei com o «Grande livro de São Cipriano» – tratado que possuo e que, por sortilégios, não sei onde pára. Por esta heresia, fui expulso da agremiação. Antes isso do que queimado na fogueira... seja o livro ou euzinho.
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Apareceu a internet e muito mais coisas surgiram escritas e publicadas – conteúdos, dizem alguns, o que me lembra os chouriços e os seus recheios. Se a publicação em livro não significa verdade, no ciberespaço acontece o mesmo e até para lá de. Só que agora publicar é rápido, barato, fácil e de muito difícil punição pelos abusos de ordem diversa.
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A democratização da publicação criou problemas. Não por acaso, Umberto Eco disse que as redes sociais deram voz aos imbecis – cito a ideia e não rigorizo o texto. As complicações com a sabedoria escrita e publicada em papel, ou noutro suporte físico, passaram para o ciberespaço. Portanto, a cautela tem de ser ampliada muitas vezes.
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O plágio também aumentou e aconteceu-me duas vezes ser confrontado com tal delito. Não digo isto só com tristeza, mas também com orgulho. Este crime tem encanto, porque é simultaneamente roubo e elogio. Tive a sorte e o azar.
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Claro que posso cair em inocência. Já me aconteceu mais do que uma vez. Diz-se que é bom haver cautelas e caldos de galinha. Se tombei por donzelice é, provavelmente, porque não gosto de canja.
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Os jornalistas são julgados bocadamente à parte. Alguns são cândidos e outros piratas. É bom ter presente que a notícia, publicada ou nada-morta, costuma agradar a alguém: um ganha porque se soube e outro vence porque não se revelou. Compete ao jornalista ter isso presente e usar uniformemente princípios justos. Acrescento que isentas têm de ser as novas e não o seu autor. Corneteiros feitos bombos, em todas as festas, mas as marteladas não fazem doer o lombo de quem tem a consciência asseada.
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Um dos meus bichos fabulosos preferidos é o Monstro do Lago Ness, sítio da landa mágica das Terras Altas da Escócia. Gostava muito que existisse – ainda além dos extraterrestres que se despenharam na Área 51 – e quero muito mais que não exista, porque o mito e a imaginação costumam estar encantadoramente à frente da verdade. Frequentemente olho-me nos espelhos, nos de vidro e no dos olhos fechados, sonhando-me o Barão de Münchausen, aventureiro avesso à verdade da ciência.
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Quem mente, Dorian Gray ou a pintura? Sei dum antigo jornalista que se tornou artista porque a realidade é muito desinteressante. Dizem que supera a ficção e talvez seja verdade, não criando nem trazendo ganho e inversamente, resultando igual, porque a imaginação faz o que quer. José Afonso cantou: «Só não mente quem não sente que o mistério não tem fundo».
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Não gosto de mentiras e a realidade é-me frequentemente desinteressante, até enfadonha e entediante. Gosto da arte, onde é e acredito estar. A fantasia permite tudo, vive discutindo com a verdade e amando-a.
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Perguntou Pilatos a Cristo: O que é a verdade?
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Na verdade, o plesiossauro escocês existe e não. Na década de 1930, depois de anos de polémicas, o The Daily Mirror – ou o The Daily Mail – prometeu uma pequena fortuna a quem conseguisse fotografar o Nessie. A obra de arte emergiu em 1934, pligrafada pelo cirurgião Robert Kenneth Wilson. Tornou-se no seu mais célebre clichê, o oficial e provavelmente foi emoldurado e ficou pendente em todas as paredes – ou pousado nas secretárias – das instituições públicas nessianas, empresas da zona, lojas de qualquer tralha e famílias empenhadas no bem-estar da sociedade local. Muitos anos depois, o resgatante do tesouro assumiu a autoria do retrato mentiroso. Ao que me constou – não investiguei, preguiçando-me e interpretando uma irrelevância, vi num documentário de televisão – passou o prazo para um processo judicial por fraude… mas a internet está cheia de informações confusas e contraditórias, todas elas apetitosas quanto amêijoas.
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A imagem é igual para todos. As gentes acreditam no que querem crer – hoje, tanto quanto sempre. Uns verificam e confirmam a ausência de pontos de referência e de escala, o que só pode significar a mentira, pela arte, alimentando o gozo e, provavelmente, a ganância. Outros observam o que sempre viram: um animal passeando-se, indiferente ao Homo sapiens sapiens que o observa indiscreto, na água doce do Ness. Se a luz iluminou e alguém insiste em ver é porque existe algures.
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Pela facilidade de publicação, abundam escrituras. Por natureza, há sabedoria, erramento e dolo. Na internet há sítios onde a mentira é sabiamente cultivada – agora chamam-lhes fake news, antigamente designavam-se notícias falsas. O engano mais eficiente é aquele que está num mar de verdades. Conheço pessoas sérias, inteligentes e cultas que tombaram pelas balas da realidade inventada e maliciosa. Refiro, novamente e sem favor, a popular recomendação de que a cautela e os caldos de galinha são bondosos.
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Como gosto de cautela, contrariamente a caldos de galinha, sou chato e não gosto de motores de deslealdades, teimo em verificar o que não creio… ainda assim volta-e-meia descubro ilusões por mim cultivadas e manjadas. Perante uma patranha, que tresandava a cabeça de pescada cozida, fui tentar pescar a verdade. Agarrada ao anzol veio, sem surpresa, a aldrabice. Escrevi, ao supostamente inocente proprietário da página onde tinha assoprado o logro, a contar a verdade. A resposta:
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– Não é verdade, mas podia ser.
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Não tirou a bestialidade. Acreditava na mentira, queria crer ou era tão mentiroso quanto os prosadores?
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A verdade existe, e embuste e o engano também. Escolher a verdade é um direito como, para tudo, optar pelo oposto. Há clarividentes, crentes e militantes. «Dois olhinhos tem o cego, quando anda a fazer que é manco», canta o Sérgio Godinho.
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Tudo isto por causa das amêijoas à Bulhão Pato. A receita é do chefe João da Matta, que a dedicou ao poeta, e seu amigo, Raimundo Bulhão Pato. Leva, além dos bivalves, alho, azeite e coentros. Só. Só e basta. A genialidade – raridade que abunda nos considerandos da multidão – mora muitas vezes na simplicidade, e acontece nisto. Exagero? Poderá não ser genialidade, mas é, pelo menos, uma jóia.
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Há quem queira acreditar que a poção leva uma data de coisas inexistentes na formulação verdadeira e assinada por homem conhecido.
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Incrédulos, cépticos, infiéis, ateus e crentes, por vocação e missão, admitem os ingredientes genuínos – nos relatos todos que li, valha isso. Os iconoclastas acrescentam e não subtraem. Que sejam temperados com uma expressão culinária: verdade q/b.
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Por ser de água doce, mais depressa o Ness tem um monstro do que uma amêijoa – digo eu, assumido inocente zoólogo. Um peixinho é um peixinho, um passarinho é um passarinho, um cão é um cão e o gato é uma pessoa. Fantasio? Só desmente quem não foi servo de felino ou perdeu a lembrança. Que coma a dita cabeça de pescada cozida, incluindo os olhos, se não falo verdade. Uma clareza válida para alguns – não minto!
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Contrariamente a pescados e canja, gosto do monstro do Ness, do chupa-cabras, dos grey, do lobisomem e do sasquatch, cujo tamanho de pé coincide com o meu… doutros e muitos. Acredita quem quer e eu era menino quando vi um extraterrestre com um dedo que acendia uma luz.
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A verdade é a verdade. Não serve crer ou querer para desmentir. Não há metade nem ilusão. Pode a curgete parecer um pepino, nunca será um pepino. Um gémeo verdadeiro não é verdadeiramente o irmão.
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De qualquer outra maneira, chamem-lhe «Bolhão Pato».
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À Bulhão Pato: Amêijoas, azeite, alho e coentros. Só e basta!
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Como se percebe, se leu o texto até ao fim, nem todas as palavras, deste texto, existem. Ou passaram a viver, porque alguém as inventou.