digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, novembro 11, 2020

Órfão de mano

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Fiquei muito contente quando o meu irmão saiu de casa. Tinha eu dez anos, menos onze do que ele. A minha felicidade não era por ele ter saído, mas por ter ficado com o seu quarto.

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A minha casa era, de aspecto, quase monótona, exceptuando o facto de ter paredes cheias com quadros pendurados. Era desconfortável, não havia assento fofo naquela casa. Nem isso, nem música, apenas a da rádio.

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O quarto do meu irmão era diferente. Havia um estrado ou divã onde se podia estar para além de dormir. Para um puto de dez anos, as paredes pintadas de cinzento escuro era uau. Tinha uns projectores coloridos – pelo menos um azul e outro vermelho. Havia uns contraplacados com umas pinturas. Tinha um gira-discos e auscultadores. Além dum bricabraque de objectos incomuns.

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Na verdade, quando saiu já parava pouco lá por casa, pelo que pude usufruir das suas coisas e dos discos sem que ele me mandasse dali para fora. O mano saiu, ganhei o quarto, mas não restou a magia daquele espaço.

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Dos discos do meu irmão, gostava particularmente do álbum «New boots and panties!!», do Ian Dury, por causa do «Sex and drugs and rock n’ rol», e de três álbuns do Frank Zappa – o «Chunga’s revenge», «Studio tan» e outro de que não me lembro o nome.

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Sabendo que se iria embora, tratei de moer-lhe a cabeça para me dar o disco do Ian Dury e o «Studio tan»… consegui o do Zappa. Um dia – obviamente equivocado – ofereceu-me um disco de estórias infantis. Aquilo era para os quatro a seis anos e eu tinha onze ou doze. Fiquei zangado! Ele ria-se. Isso arreliava-me… mais se ria! Muitos anos depois, sempre que lhe falava nisso, sorria e dava uma pequena gargalhada.

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Era muito protector. Ferozmente maternal. Ai de quem tocasse no maninho. Não me lembro de alguma vez se ter zangado comigo. Já, eu, zanguei-me duas vezes com ele: a afronta do disco infantil e por causa dum bonequinho que me partiu a brincar comigo – coisinha de menino mimado.

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Como muitos miúdos – talvez todos – tive a fase de morder. Ninguém gosta de ser mordido. Um dia, avançava para o trincar, deu-me uma volta e reviravolta e mordi-me. Ainda hoje não sei como fez aquilo. Nunca mais mordi.

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O Fanã sofreu bastante com o meu pai. Porém, nunca lhe ouvi um queixume nem censura. Falava dele como exemplo, filtrando toda a negatividade, e mestre – admirava a sua opção pela arte, adorava as suas pinturas e queria a sua aprovação.

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Para o meu mano, ser-se artista era um elogio. Por isso, quando lhe chamei artista, pela primeira vez, disse que não era e relutantemente foi aceitando que lho dissesse. Era, era. Puro e genuíno. Não apenas de desenho e pintura, qualquer modo de exprimir sentimento e criatividade.

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O meu mano teve uma infância dura, com a morte da mãe quando tinha nove anos – acho que era essa a idade. Talvez aí esteja a razão da sua ternura maternal para comigo.

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O que adoro aquela expressão vagamente trocista, o olhar terno e o sorriso de miúdo… um riso único e claro.

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Ontei fiquei órfão de mano, mas não acredito na morte. Não somos o corpo, que é de matéria e se transforma. Somos espírito e imortais. Claro que vou ter saudade. Um dia lá estaremos os dois a fazer qualquer coisa de manos.

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– Está tudo fixe, puto?

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– Está tudo fixe, mano.