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Nem todos os dias será hoje nem sempre é para sempre
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Já se inventou tudo e ainda o vazio que se agarra ao
coração-cabeça, tenho-o nas mãos e sem o poderem segurar, e seguram.
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Já se inventou tudo, infelizmente, e infelizmente não o fim,
nem o fim apenas para mim.
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Sem fim e sem dias, os meus, sem futuro, virão pesados.
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Não temo a loucura nem receio o abismo dos nervos. Este
vómito do coração-cabeça é o oitavo passageiro, a crise de
mil-novecentos-e-vinte-e-nove, o monstro de Mary Shelley, o lobisomem do
caminho entre a aldeia e a cidade, a cabra velha medieval e os deuses dos
castigos.
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Sei da sua surdez como não ser mudo, as suas orelhas ouvem
como se as minhas palavras passassem noutra rua.
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Cortinas pesadas de veludo teatral espaldam o drama, ocultando
a pulsão trágica.
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O coração-cabeça sorve-me como o mendigo a sopa numa noite de
caridade.
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Se ninguém é recluso, se depois dos muros há uma cidade
livre, se vivem próximos, estou de sentido, imóvel como a estátua na praça
deserta, no lado de fora.
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Não, não é tragédia. Não, é o meu drama, comédia para alguém.
Visto de longe, sou patético como se bradasse verdades na ágora, vestindo
ceroilas e na cabeça o elmo de Quixote.
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A maior parte de mim é remorso.
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O remorso é pior do que a saudade e diferente o
arrependimento, um alívio. Cada suspiro de remorso é um fantasma num lugar a
preto e branco. O remorso é não ter as vítimas para lhes dizer do
arrependimento.
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O sangue do coração-cabeça é a septicémia do
coração-cabeça-estômago-fígado-pulmão, é castanho e amarelo, fervendo de frio, a
vida acabada no corpo teimoso.
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Tanto faz diante dos cegos e dos surdos.
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Sou invisível, sou mudo, sou fantasma, tanto faz que
urine contra o vento.
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Além há um rio de rosas.
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