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– Quem te oiça… gostas de alguma coisa?
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– Alguma coisa, como?
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– Assim, tipo… arte, por exemplo.
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– O que tem? Gosto de arte.
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– Sim, mas tens umas espécies de rancores…
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– Queres tu dizer que abomino umas coisas, coisinhas…
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– «Coisinhas», como o trabalho de grandes artistas.
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– Seja lá o que for. Supondo que consagrados, certo?! E ao
que te referes?.
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– Pode ser, pode ser…
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– Posso reconhecer talento, imaginação, trabalho,
pioneirismo, conceitos bem estruturados, mas.
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– Mas?!
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– A estética!
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– (…)
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– Como tudo, a estética discute-se.
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– Como tudo na vida.
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– (…)
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– Afirmas, como um terrorista, o que abominas, quase fazes
sangue… há pessoas susceptíveis, capazes de levar a mal…
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– Levar a mal, porquê?! Porque foram elas a fazer? Também
não sou um talibã. Agora, há coisas intragáveis, ainda que o autor possa ter
tido um papel relevante no seu tempo ou pertencido a uma linha de vanguarda.
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– Um exemplo.
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– Os surrealistas… Magritte era genial, mais ainda porque
levava uma vida íntima, do tédio da classe média. Casado, pacato… há atitude
mais surrealista do que esta, para alguém que é surrealista?
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– Percebo… não sei se concordo. Tens o exemplo de Dalí.
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– Vou esquecer que foi corrido do grupo, isso até nem
importa. Genial, com trabalhos óptimos e resmas de telas, e mais tralha, de
pura técnica, docinhos numa loja para crianças.
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– Um outro período muito apreciado é o impressionismo. O que
me dizes?
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– Teve uma função, rasgou. Mas, tirando Cezanne… O impressionismo
foi um caminho, mas olhando para há cento e trás anos, qual é o interesse?
Encaixam muitos impressionistas em gavetas mais pequeninas, quase uma corrente
por cada paleta.
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– Dá-me um exemplo.
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– Camille Pissaro, Van Gogh, Toulouse-Lautrec… Van Gogh é um
caso à parte, é muito bom!
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– Um mau exemplo, por favor.
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– O pior de todos! Renoir! Há alguma coisa pior do que
Renoir?! Só as pinturas de palhaços e do menino da lágrima.
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– Em contraponto, preferes o realismo?
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– Acho mais interessante, uma espécie de último grito para a
salvação do afogamento, quando a fotografia parecia uma ameaça capaz de matar a
pintura. Mas não morro de amores.
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– E o romantismo?
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– Tem a imaginação quase insana. Na pintura, na escrita é
medonho, há uma espécie de contradição ao mundo da ciência.
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– E os pré-rafaelistas?
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– Coloco-os no armário dos românticos. E é conceptualmente
melhores.
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– Para trás?
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– Não há corrente estética em que seja peremptório na
aversão... há outra, mas vais chegar lá.
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– Vês algum interesse no da-da? Não são uma coisa quase
qualquer coisa?
– Os da-da também tiveram o seu tempo. Muito mais úteis do
que os surrealistas – com que muitas vezes são confundidos. Um rasga,
reescreve, experimenta, provoca e o outro, exceptuando o genial Magritte, é
mais cordato e burguês, num sentido não muito elogioso. Penso que na
actualidade se bebe mais na fonte dos da-da do que em qualquer outra corrente
anterior… mas tenho de pensar melhor acerca do que disse agora.
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– Provocaram o burguês, pequeno-burguês, como o Magritte…
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– Exactamesmo!... Como dizia o meu pai… e os academistas,
que têm a particularidade de estarem duzentos anos atrasados… ou tinhamm
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– O fauvismo?
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– Bem interessante, sem que me comova…
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– (…)
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– Nas artes decorativas, a arte nova é um suplício e a arte
deco tem a vantagem de pressagiar a estética modernista.
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– Quanto ao cubismo?
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– Bem rasgado e provocador. Generalizando, mas não muito,
penso que, tal com os da-da, é o grande movimento do século vinte… houve a
Bauhaus, mas é outra coisa, é só, ou quase só, arquitectura.
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– Haverá mais correntes, mas uma incontornável: o
neo-realismo.
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– É quase tudo um vómito. Tenho horror ao feio, à miséria,
ao panfleto…
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– Movimento de oposição aos regimes totalitários e que
denunciou injustiças. Isso demonstrou coragem!
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– Demonstrou no Ocidente. Na esfera soviética foi o género
do regime, até um pouco no movimento nazi – mas isso dá para muitas horas de
teimas. O neo-realismo é quase sempre piroso e miserabilista… Na fotografia
tens excelentes fotógrafos – ainda assim, vários são medonhos. Mas, lá está, o
realismo e o neo-realismo têm um papel quase irrelevante, pois existe a
fotografia, que é mais real e crua, eficaz na denúncia da pobreza, das dificuldades
da vida, das injustiças, generalizando muito.
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– Vamos ficar só na pintura. O que aconteceu após a Segunda
Guerra Mundial é, para ti, positivo ou negativo?
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– Muitíssimo positivo, apesar das muitas merdas que se têm
feito – aliás, ao longo da história sempre houve mais banalidades do que
obras-primas e medíocres do que génios, até mais do que merdosices. A liberdade
trouxe do passado anacronismos, inovações, rupturas, inspirações, experiências
e «o rei-vai-nu»… o que, aliás, não aconteceu só no tempo do pós-guerra.
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– Quem te marca?
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– Ninguém em especial. Porém, sou conservador na técnica e
terrorista nos conceitos. Até abro muitas excepções às questões da estética.
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– Como assim?
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– A pintura – a arte – não é o pintadinho, em que o visto é
igual à tela. Os mimetismos, as cópias e os suflês sempre existiram. Para mim,
arte tem de ter ideia, conceito, ponderação na forma como se expressa, tudo
isso depende do talento, trabalho e competência de quem o faz.
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– Preferes as correntes contemporâneas?
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– Não disse isso. Disse que gosto da liberdade e da
libertinagem – esta não tinha referido.
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– Voltando atrás. Pavor! O que nunca terás pendurado numa
parede de casa, partido do princípio de que tens dinheiro para tudo…
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– Renoir! Renoir é insuportável! Teria algum
neo-realismo, por homenagem ao meu pai, que passou um tempo por lá. Mas só do
meu pai.
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Nota: Quem souber o nome do autor desta fotografia, por favor informe-me, para que o possa assinalar.
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