digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, novembro 08, 2015

Para quê a realidade?

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– Quem te oiça… gostas de alguma coisa?
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– Alguma coisa, como?
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– Assim, tipo… arte, por exemplo.
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– O que tem? Gosto de arte.
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– Sim, mas tens umas espécies de rancores…
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– Queres tu dizer que abomino umas coisas, coisinhas…
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– «Coisinhas», como o trabalho de grandes artistas.
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– Seja lá o que for. Supondo que consagrados, certo?! E ao que te referes?.
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– Pode ser, pode ser…
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– Posso reconhecer talento, imaginação, trabalho, pioneirismo, conceitos bem estruturados, mas.
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– Mas?!
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– A estética!
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– (…)
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– Como tudo, a estética discute-se.
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– Como tudo na vida.
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– (…)
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– Afirmas, como um terrorista, o que abominas, quase fazes sangue… há pessoas susceptíveis, capazes de levar a mal…
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– Levar a mal, porquê?! Porque foram elas a fazer? Também não sou um talibã. Agora, há coisas intragáveis, ainda que o autor possa ter tido um papel relevante no seu tempo ou pertencido a uma linha de vanguarda.
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– Um exemplo.
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– Os surrealistas… Magritte era genial, mais ainda porque levava uma vida íntima, do tédio da classe média. Casado, pacato… há atitude mais surrealista do que esta, para alguém que é surrealista?
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– Percebo… não sei se concordo. Tens o exemplo de Dalí.
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– Vou esquecer que foi corrido do grupo, isso até nem importa. Genial, com trabalhos óptimos e resmas de telas, e mais tralha, de pura técnica, docinhos numa loja para crianças.
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– Um outro período muito apreciado é o impressionismo. O que me dizes?
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– Teve uma função, rasgou. Mas, tirando Cezanne… O impressionismo foi um caminho, mas olhando para há cento e trás anos, qual é o interesse? Encaixam muitos impressionistas em gavetas mais pequeninas, quase uma corrente por cada paleta.
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– Dá-me um exemplo.
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– Camille Pissaro, Van Gogh, Toulouse-Lautrec… Van Gogh é um caso à parte, é muito bom!
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– Um mau exemplo, por favor.
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– O pior de todos! Renoir! Há alguma coisa pior do que Renoir?! Só as pinturas de palhaços e do menino da lágrima.
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– Em contraponto, preferes o realismo?
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– Acho mais interessante, uma espécie de último grito para a salvação do afogamento, quando a fotografia parecia uma ameaça capaz de matar a pintura. Mas não morro de amores.
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– E o romantismo?
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– Tem a imaginação quase insana. Na pintura, na escrita é medonho, há uma espécie de contradição ao mundo da ciência.
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– E os pré-rafaelistas?
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– Coloco-os no armário dos românticos. E é conceptualmente melhores.
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– Para trás?
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– Não há corrente estética em que seja peremptório na aversão... há outra, mas vais chegar lá.
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– Vês algum interesse no da-da? Não são uma coisa quase qualquer coisa?
– Os da-da também tiveram o seu tempo. Muito mais úteis do que os surrealistas – com que muitas vezes são confundidos. Um rasga, reescreve, experimenta, provoca e o outro, exceptuando o genial Magritte, é mais cordato e burguês, num sentido não muito elogioso. Penso que na actualidade se bebe mais na fonte dos da-da do que em qualquer outra corrente anterior… mas tenho de pensar melhor acerca do que disse agora.
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– Provocaram o burguês, pequeno-burguês, como o Magritte…
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– Exactamesmo!... Como dizia o meu pai… e os academistas, que têm a particularidade de estarem duzentos anos atrasados… ou tinhamm
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– O fauvismo?
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– Bem interessante, sem que me comova…
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– (…)
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– Nas artes decorativas, a arte nova é um suplício e a arte deco tem a vantagem de pressagiar a estética modernista.
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– Quanto ao cubismo?
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– Bem rasgado e provocador. Generalizando, mas não muito, penso que, tal com os da-da, é o grande movimento do século vinte… houve a Bauhaus, mas é outra coisa, é só, ou quase só, arquitectura.
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– Haverá mais correntes, mas uma incontornável: o neo-realismo.
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– É quase tudo um vómito. Tenho horror ao feio, à miséria, ao panfleto…
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– Movimento de oposição aos regimes totalitários e que denunciou injustiças. Isso demonstrou coragem!
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– Demonstrou no Ocidente. Na esfera soviética foi o género do regime, até um pouco no movimento nazi – mas isso dá para muitas horas de teimas. O neo-realismo é quase sempre piroso e miserabilista… Na fotografia tens excelentes fotógrafos – ainda assim, vários são medonhos. Mas, lá está, o realismo e o neo-realismo têm um papel quase irrelevante, pois existe a fotografia, que é mais real e crua, eficaz na denúncia da pobreza, das dificuldades da vida, das injustiças, generalizando muito.
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– Vamos ficar só na pintura. O que aconteceu após a Segunda Guerra Mundial é, para ti, positivo ou negativo?
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– Muitíssimo positivo, apesar das muitas merdas que se têm feito – aliás, ao longo da história sempre houve mais banalidades do que obras-primas e medíocres do que génios, até mais do que merdosices. A liberdade trouxe do passado anacronismos, inovações, rupturas, inspirações, experiências e «o rei-vai-nu»… o que, aliás, não aconteceu só no tempo do pós-guerra.
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– Quem te marca?
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– Ninguém em especial. Porém, sou conservador na técnica e terrorista nos conceitos. Até abro muitas excepções às questões da estética.
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– Como assim?
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– A pintura – a arte – não é o pintadinho, em que o visto é igual à tela. Os mimetismos, as cópias e os suflês sempre existiram. Para mim, arte tem de ter ideia, conceito, ponderação na forma como se expressa, tudo isso depende do talento, trabalho e competência de quem o faz.
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– Preferes as correntes contemporâneas?
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– Não disse isso. Disse que gosto da liberdade e da libertinagem – esta não tinha referido.
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– Voltando atrás. Pavor! O que nunca terás pendurado numa parede de casa, partido do princípio de que tens dinheiro para tudo…
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– Renoir! Renoir é insuportável! Teria algum neo-realismo, por homenagem ao meu pai, que passou um tempo por lá. Mas só do meu pai.
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Nota: Quem souber o nome do autor desta fotografia, por favor informe-me, para que o possa assinalar.

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