digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sábado, outubro 03, 2015

Jardim de Outono

.
Disse, no deserto desta casa grande, como se estivesse alguém ali, além dos espíritos inquietos ultimamente sossegados, que era uma janela para o Outono. Conversava num tom calmo, apesar do suspiro que apertava o coração.
.
– Lá fora há jardim onde tudo pode acontecer e nada acontece.
.
O vazio respondeu-lhe. Não era espírito, mas uma voz das questões.
.
– O caixilho de talha… não caem folhas?
.
– Sim. É o Outono, e aves que chegam para o ameno e as que partem para o ameno.
.
– Cada pássaro seu ameno.
.
– Sim, cada pássaro…
.
– Nos outros dias do ano, os do Inverno, Primavera e Verão… como está o jardim?
.
– É outro, são outros. No mesmo sítio. Para esses há outros vidros e portas. Também para os dias esquisitos, os de fora de época, de indecisão… sobretudo se de solidão e de melancolia.
.
– Onde ficam?
.
– Lá fora. A toda a volta da casa. A quase toda a volta da casa. A casa fecha o jardim, fecha-lhe a saída para a rua. Há o muro e a floresta densa, duma só linha de árvores de copa compacta, sem ramagens para intrusos, alinhada como uma paliçada. A rua é real, muito maçadora.
.
– A casa é uma ilha.
.
– A casa é um istmo. O jardim é uma península. Um continente, jardins como nações. Ligados e separados.
.
– Descobrem-se bem?
.
– Se quiseres perder tempo.
.
– Perder tempo?
.
– Não importa como mudam, como se vão juntando. Na verdade mal se vê duns para os outros. As árvores são montanhas e os ribeiros, alguns gargarejam todo o ano, e os canais de tijolo-burro ou de ladrilhos são também acidentes. As fronteiras são imaginárias, estas e as outras.
.
– Costumas ir duns para os outros?
.
– Nem embrenhado e distraído. A paz ou a guerra em mim ocupam-me. Se melancólico se suicidário se alegre se entediado se.
.
– Uma porta ou uma janela para cada jardim?
.
– A casa é grande. Não sei se a conheço toda ou se me lembro dela toda.
.
– Costumam chegar para falar ou estar?
.
– Prefiro que não, para me ter puro, só de mim. Falo contigo porque és em mim e ainda assim não me sabes nem te sei.
.
– A solidão? A melancolia?...
.
– Bastam-me, mas tenho mais.
.
– Como sabes qual o jardim do dia ou da hora?
.
– Como os passarinhos sabem onde está ameno.

Sem comentários: