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Nado-morto nasceu,
e morto viveu. Deixou de mamar, de arrotar e bolsar. Foi o bebé mais bonito que
viram. Havia colos e a avó era outra mãe e a outra mãe era a outra mãe. Ria-se
e fez birras, e como sempre essas lembranças apagam-se do pensamento da mãe – de
todas as mães.
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Usou calças-à-boca-de-sino
e foi fotografado a preto-e-branco e a cores na praia, no campo na cidade e no
Carnaval. Acreditou no Pai Natal até tarde, até depois dos colegas lhe terem
assassinado o amigo das barbas. Tinha um olhar doce e a doçura não o defendeu
dos pontapés dos colegas de turma, as canelas estavam sempre negras e não se
queixava à professora nem à mãe, mas a mãe via e contava à professora que não
via nada nem fazia nada para ver.
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Gostava da
praia e teve de engordar por causa do mar, porque uma bactéria dizimara
milhões. Era o campeão dos carrinhos-de-rolamentos e jogou mal futebol, mas com
os nabos da turma fez uma equipa vencedora e por fim perdeu. Um dia disse mal
do melhor amigo e o venerando mais pequeno assinou a declaração com palavras de
assentimento, e reconciliado espancou o pobre-diabo, e ficou com dores de
arrependimento para o resto da vida. Depois odiou a escola preparatória, um
lugar de vómito, e ingressou na secundária, onde continuava gordo e foleiro,
embora ténis de marca e roupa com etiqueta, e cresceu em altura, ficou esbelto,
bonito e dandy.
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Namorava e
não namorava ninguém e à noite os demónios desengaiolavam a líbido e acontecia
sempre qualquer coisa que se poderia chamar de namoro, que durava umas horas,
talvez três dias ou até um mês, mas aconchegado em mais afectos e desejos. Na
escola decidiu trair a vocação e encontrar passagem noutra coisa, noutras
coisas que até gostava. Adeus às artes, veio a história e ainda antes as
notícias. Tão imaturo, o jovem adulto dos mais palermas. Tão infantil que
mimetizou nos cigarros e whisky.
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Sempre os
demónios à solta, desprendendo a líbido, fazendo dele um crocodilo manso, que
magoou sem perceber nada, chame-se-lhe egoísmo ou imaturidade, e ficou com
dores de arrependimento para o resto da vida. Tão infantil que um dia acreditou
no amor eterno vivido na carne.
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Tão infantil
que acreditou na subida permanente e na satisfação no trabalho. Um dia caiu e
houve poucas mãos. Respirou e um dia perdeu quase tudo e o amor, e uns dias
mais um grande amigo matou-o sem explicação, e matou-se depois e sobreviveu
para continuar a morrer, suicidando-se por teimosia, e ficou com dores de
arrependimento para o resto da vida.
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Felicidades breves
e pela líbido conquistou relampejante um amor, dois amores, três amores, quatro
amores, cinco amores, seis amores, todos desamores e ficou com dores de
arrependimento para o resto da vida.
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Dinheiro. Uma
risada de tristeza e de lágrimas rasas nos olhos, mas em repuxo na intimidade.
Trabalho? Incontratável, imprestável, evitável – quando um patrão perguntou, a amiga
disse que era complicado. A outra empresa e contratar e o amigo calou-se, não
se sujaria recomendando, pois o afecto para uns é cunha e para outros cruz e
nem vale a pena falar de competências. Podia ter sido e ter sido depois ainda,
mas o amigo calou-se e ele culpando-se ficou com dores de arrependimento para o
resto da vida.
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Sentido
remorsos do que não fez nem deixaram fazer. Inviável sentou-se em tédio e
insónia, e em insónia prolongada viu e viu que pouca coisa valera a pena.
Incomodado no tédio morreu constantemente nos intervalos em que se não tentou
matar ou esteve dormindo. O sono – é antecâmara da morte – o melhor remédio
para presente, passado e desejo, e culpando-se ficou com dores de
arrependimento para o resto da vida.
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O sono quando
não aleijou foi aliviando e os minutos tornaram-se balas à queima-roupa, e
foram anos e anos e anos e anos e outros virão. Depois um amor e de tanto
imerecimento acordou com vontade de adormecer, mas queria apanhar o
navio-fantasma. Ficou com dores de arrependimento para o resto da vida, com
dores alheias, desejando a morte, mas preferia inexistir, porque inconseguiu
muito.
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Dos pontapés
na escola, à traição inexplicável, às quedas e às poucas mãos da ajuda, e
outras poderiam ter estado, mas ele era complicado e o melhor foi não recomendar,
e outras poderiam ter estado se o silêncio não lhe tivesse sido mais útil do
que o afogamento em pestilências do náufrago, que ficou com dores de arrependimento
para o resto da vida.
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E dos seus defeitos,
erros e falhanços, que foram tantos, ficou ainda com mais dores de arrependimento
para o resto da vida.
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Quarenta e
cinco anos e meio escrevem-se com as oito letras do falhanço. É o que acontece
quando nasce um nado-morto que ficou para viver. As coisas boas são poucas, talvez dez e por pudor não conta para que não tenha mais dores de arrependimento para o resto da vida.
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Para repousar
dorme e às vezes tem descanso e outras calvário, é melhor do que. Pergunta-se
se a vida existe e se está vivo. Distrai-se inventando-se actor num teatro
vazio, onde as cortinas de flanela negra têm buracos das traças e fantasmas de
corvos observam e fantasmas de gente observam, dizem e gritam. É de arame, o
veludo. A sala negra é de negrum, porque negrume é mais claro. Aí se esconde e
lambe as feridas das dores de arrependimento, que viverá para o resto da vida.
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A Terra é
redonda e dentro só há negro e fora também.
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