Tenho cansaço suficiente para mais duas vidas. Deram-me
desprezo para mais três. O tédio é tanto que temo ter a eternidade para o
gastar. Não fosse a dor, diria que não tinha alma.
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A alma serve para quê, afinal? Talvez seja como o apêndice
intestinal, cuja função é mandar gente com dores para o hospital. O apêndice
dói uma vez na vida. A alma pode doer a vida toda.
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Se formos a alma... o que é o mais provável... viver pode
ser uma dor. Uma dor invisível que puxa tendões, arranha nervos, soca órgãos,
massacra a cabeça, derruba tudo, ensona doentiamente ou gera vigílias violentas. Pura retórica. Bem
sei que somos alma e o corpo a veste.
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Tenho esperança, murcha e triste, que a morte exista. Bem se
vê que não falo do corpo. Morrer, morrer mesmo... a alma consumida, incinerada,
fulminada, degolada, qualquer coisa...
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Já o corpo ilude a certeza de ter alma e a cabeça diz.
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Sim, esperança que a morte exista. Que a desistência
espiritual seja possível, não haja eternidade nem reincarnação.
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Os afectos são um pedúnculo que liga corpo e cabeça à vida
terrena. Afectos? Que afectos?
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Gostava que Deus me desse a bênção de desexistir. Puf! Estar
aqui ou lá e... puf! Nem memória restar ou quem quiser que a tenha.
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Que afectos? Pessoas que se acredita poderem dar ombro,
afago e ouvição. A convicção de afectos torna tão difícil engolir comprimidos
como saltar para a linha férrea ou mergulhar.
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Afectos? Quais... afectos?
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Uma matilha faminta devora-me os dias. Matilha de bichos
maus, escuros de olhos de farol, da cor do sangue... que me devorem então e
possa partir. Uma matilha de medos.
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Afectos? Que afectos?
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