digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, agosto 13, 2014

Por tudo e por nada e isso também

Levei tempo a aceitar que me deveria assumir como escritor, aliás poeta.
.
Não sou dado a idolatrias. Não por prosápia ou ego inflacionado. Gosto mais ou menos, admiro técnica, engenho e arte. Quase nunca – garanto que não por vaidade – digo que gostaria de ter sido o autor deste ou daquele texto.
.
A minha psicóloga perguntou-me várias vezes se eu era homossexual. Disse-lhe que não. Nunca me senti atraído sexualmente, ou platonicamente, apaixonado por alguém do mesmo sexo. Sou heterossexual por natureza, sem preconceitos, sem preocupações nem justificações.
.
Contudo há dois textos – um grande e outro pequeno – que gostaria de ter sido o autor. Quando digo autor tenho de dizer escritor-actor, pois só nessa condição os gostaria de cunhar. Há mais obras, claro... agora só digo estas duas:
.
«O retrato de Dorian Gray», de Oscar Wilde, em que o que me fascina não é a ambiência homo-erótica, mas o pacto com o Diabo, a escravidão da beleza e da juventude. Não é prático passar o texto para o blogue, penso ser um livro que qualquer pessoa inteligente deve ler.
.
O outro é absolutamente perverso, horrorosamente bonito, nojento na essência e delicioso de contemplar o quão belo pode ser um asco. É pequeno e citarei na íntegra. O autor é António Botto, poeta pederasta.
.
Cito:
.
.
Nunca te foram ao cu
.
nem nas perninhas, aposto!

.
mas um homem como tu,

.
lavadinho, todo nu, gosto!

.
sem ter pentelho nenhum

.
com certeza, não desgosto,
.
até gosto!

.
Mas... gosto mais de fedelhos.

.
Vou-lhes ao cu

.
dou-lhes conselhos,

.
enfim… gosto.

.
.
Fim de citação.
.
É duma loucura que só um louco, um joker, que tanto é como não é parte do baralho, pode escrever de forma sóbria.
.
São dois extremos; um fora da norma e outro participante duma realidade pouco escondida da Lisboa pobre e faminta, da primeira metade do século vinte, e de vícios privados, perdoados na confissão dominical.
.
Claro, o Fernando Pessoa... e o seu fingidor... e o Bocage que não fingia nada. O Camões que queria mostrar ser quem não era e é tão genial que se pode ler em prosa o que escreveu em rima e em versos decassilábicos.
.
O que vou dizer não é da minha autoria:
.
– Camões escreveu todos os poemas de amor que podiam ser escritos em língua portuguesa.
.
Quem o disse ajustou a afirmação ao que terá dito Richard Wagner, que só compôs uma única sinfonia – Sinfonia em C maior WWV 29. Conta-se que terá dito que não valeria a pena escrever sinfonias, porque Beethoven as tinha escrito todas.
.
Não me apanham na triste e miserável figura de desafiar génios. Todavia tenho clarificar que Luís de Camões escreveu os melhores poemas de amor de língua portuguesa, mas falhou o melhor.
.
O quase obscuro João Ruiz de Castel-Branco uniu as melhores palavras para um encantamento amoroso. Não é um seguidor, imitador ou usufrutuário do talento de Camões, pois desencarnou nove anos antes do maior poeta português nascer – esqueçam lá o Pessoa...
.
Cito:
.
.
 Senhora, partem tão tristes
.
meus olhos, por vós, meu bem,

.
que nunca tão tristes vistes

.
outros nenhuns por ninguém.
.
tão tristes, tão saudosos,
.
tão doentes da partida,
.
tão cansados, tão chorosos,
.
da morte mais desejosos
.
cem mil vezes que da vida.
.
Partem tão tristes os tristes,
.
tão fora de esperar bem,
.
que nunca tão tristes vistes
.
outros nenhuns por ninguém.
.
.
Fim de citação.
.
São seis horas e trinta e quatro minutos e o Sol já se mostra. Canso-me nesta escrita como se tivesse medo de morrer antes de vomitar o que penso acerca de.
.
Tudo começou enquanto esperava pelo Pedro BB na Brasileira do Chiado – não foi de propósito – quando magiquei no que terá escrito o poeta que dá o nome à mais nobre zona de Lisboa.
.
Do Chiado só conheço a beleza da área; dos estragos que o arquitecto Siza Vieira abateu depois da tragédia (maior) do incêndio de vinte e cinco de Agosto de mil novecentos e oitenta e oito; da estátua desse poeta invisível conversando; e da escultura de Lagoa Henriques, que é uma grande maldade ao Fernando Pessoa. É que nem anatomicamente... por um triz e podia ter descido ao nível de Soares Branco, que, apesar de tudo, tinha a virtude da inconstância: ora saía bem ora era uma cagada. O Lagoa Henriques foi sempre regular e consistentemente medíocre – e era professor nas Belas Artes.
.
O que escreveu então António Ribeiro Chiado, poeta satírico e contemporâneo de Camões, que justifique um monumento?
.
Estou no grupo de quem não leu Chiado: éramos, em 2011, 10.562.177 ignorantes. O outro que falta na estatística oficial é José Pacheco Pereira, o intelectual indomável, que diz pior do seu partido e governo do que qualquer adversário e que se vivesse no período da Monarquia Constitucional recusaria publicamente um título de barão, por ética, mas sofrendo porque queria ser duque.
.
Procurei e encontrei. Cito:
.
.
Guardar de cão que manqueija
.
e de homem mui fraqueiro;
.
guardar de quem de ligeiro
.
em tomar nunca se peja;
.
guardar de quem deseja
.
o alheio e quanto vê;
.
guardar de esperar mercê
.
por modo de lisonjear;
.
guardar de praticar
.
entre pessoas não certas;
.
guardar das encobertas
.
e de quem fala à vontade;
.
guardar de falar verdade
.
a quem trata com mentira;
.
guardar de quem suspira
.
co’o pesar do bem alheio;
.
guardar de quem sem freio
.
diz cada vez o que quer.
.
.
Fim de citação.
.
Já percebo por que não se divulga Chiado no ensino. Confesso que a busca foi breve, mas se o peixe que se apanha é este...
.
Pior talvez o António Sardinha com o seu Integralismo Lusitano... o homem era monárquico – o que não é defeito – e contra uma Constituição. Sendo que nasceu em 1887 tinha mais de um século de atraso mental.
.
Vejamos. E cito:
.
.
Fiel ao sangue, nossa irmã germana,
.
chora Olivença as suas horas más
.
junto do rio que tornou atrás,
.
quando soou a trompa castelhana.
Ó Casa de Antre Tejo-e-Guadiana,
.
lembra-te dela que entre ferros jaz!
.
Não a dobrou a guerra nem a paz,
.
– fiel ao sangue, o sangue a ti a irmana!
E todo aquele em quem ainda viva
.
o ardor da Raça e a voz que nele anseia,
.
se for p'ra além da raia alguma vez,
é Olivença, nossa irmã cativa
.
lá onde com surpresa a gente alheia
.
oiça dizer adeus em português!
.
.
Fim de citação.
.
Antes de acabar tenho de desabafar!
.
A escultura de Chiado é viva, cheia de espírito gozão, um retrato plausível desse poeta do século dezasseis, da lavra de Costa Motta (tio). A do Pessoa é aleijada e tão sonolenta e óbvia que serve apenas para os turistas se pousarem na cadeira que o escultor deixou vaga junto à mesa onde se sentou mumificado o poeta. A estátua do Camões é aborrecidíssima e foi plasmada por Víctor Bastos... a estátua é um boneco! Podia ser um rei, um deus do classicismo ou o Camões. O António Sardinha tem uma praceta – proclamada praça – que é simpática. Não sei se tem estátua... sinceramente nem irei espreitar.
.
Os nossos melhores poetas mereciam melhores escultores.
.
Pergunto-me, pergunto-te, que se fará quando morrer o Herberto Hélder?
.
O corpo cabe em qualquer lado, a poesia sobra nos Jerónimos e em Santa Engrácia. Talvez dêem o nome a uma rua num bairro dormitório.

Sem comentários: