Pancadas de Molière.
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Panos abertos.
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Primeiro acto – Quietar a Terra.
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Ficar é ir à velocidade da Terra. Ainda que queira ontem. Na
cabeça a terrível melancolia dos dias e das vigílias.
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Pensar em ir é vislumbrar uma vertigem – diria vértico para
inventar mais uma palavra, mas nem isso contentaria por dez minutos.
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Nem com vela latina se pode contrariar o movimento perpétuo
(?) ou tampouco parar para pensar no mundo com a cabeça quieta.
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Assim como desdizer, por mais baixo o tom ou maior a distância,
os dardos dos lábios voam quase à velocidade de Deus.
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E Deus perdoa? Perdoa. Não sei é se o ferido perdoa ou
esquece. Quendera noutra latitude, onde o frio seca e quebra os pensamentos ou
onde o calor os derrete e dilui.
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Morrer não basta. Não basta porque a vida depois da vida.
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Desexistir é muito melhor do que o regresso ao ventre
materno e aos momentos da sublime inocência.
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Tenho alguns ciúmes da sombra, mas não sei explicar porquê
nem quero pensar muito nisso, pois poderia ser ainda mais doloroso. Veio-me, de
repente, ao pensamento...
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Tantos os anos de dores e sem me habituar. Tantos anos de
dor que não sei doutra forma que não.
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Podia agora escrever frases de banalidades, com facas e
coração.
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Trocar o coração pelo fígado é igual.
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Segundo acto – O alívio breve e falso da autocomiseração.
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Pensamento paralelo: Na impossibilidade de voar para recuar
o tempo que perca a vergonha e abrace as árvores da cidade e as fruteiras.
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Voltar à escola e escrever uma redacção que dificilmente
deixará de ser ridícula.
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Preencher o verso abaixo com o tema «prometer para não
cumprir».
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Preencher o verso abaixo com o tema «alegria».
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Ah! Alegria! Laranjas e cerejas, azeitonas e amêndoas... Ah!
A beleza dos dias grandes.
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Coisa pateticamente falsa e estupidamente medíocre. Aposto que
muitos professores adorariam e até pediriam ao adolescente que fosse ao estrado
ler para a turma toda.
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O facto de não ser genial – a escrever ou a desenhar – não me
torna medíocre. O que me torna medíocre é a preguiça e a teimosia de menino
mimado.
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Pode ser-se medíocre por saber além do pedido e querer fazer
outra coisa, porque a coisa que mandam fazer é descaradamente medíocre.
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Não compensa. Ainda que o secreto – verbalizado ou pensado
elogio – reconhecimento da vantagem do trabalho pelo professor obrigado a
promover a mediocridade.
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Sim, fui sempre um menino pequenino, elogiado por todos e
que nunca passou de medíocre, por fazer o que quis.
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Fiz sempre o que quis, porque fui – sou – um menino. Ainda
hoje ingénuo e mimado, crente que podemos ser todos amigos, que posso gostar de
toda a gente e toda a gente gostar de mim.
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Isto aos quarenta e quatro anos é péssimo. Isto não é ser-se
medíocre, é ser-se estúpido – o que é igual ao ser-se inteligente.
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Só a mediocridade compensa e publicam-se e mostram-se mediocridades
que não servem para nada e que a rotação da Terra há-de enterrar no
esquecimento. O tempo é cruel.
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Não digo que não tenha valor. Digo que sou medriocramente
medíocre, o que é trágico aos quarenta e quatro anos e se começa a pensar na
vida
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Agora, já com uma pirosa lágrima a querer saltar – sim, até
sou piroso, carente como um menino birrento. Nesta fase ganho, finalmente, o
direito à mediocridade porque alimentará suspiro a alguém , não por demérito, que
é o mérito da mediocridade, mas por longos esforços para o conseguir – um prémio
de carreira.
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Nesta fase pede-se um beijo e uma musa sorri e beija. Subo a
um palco invisível e comovido aceito a verdade que pode ser-se medíocre, mesmo
lutando contra a mediocridade que foi, ao longo da vida, pedida.
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Coisa pateticamente falsa e estupidamente medíocre.
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Não existe uma mediocridade, mas oceanos e talvez galáxias
dessa ridicularia ilusória.
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Ainda assim alguém leva a sério e se preocupa ou aplaude.
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Terceiro acto – a palavra merda dita muitas vezes.
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Mediocridadamente despejo-me um balde de merda. Pronto! Já disse!
Merda! Merda! Merda! E mais merda!
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Merda!
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Não aliviou.
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Fico parado a pensar como dizer merda sem ser com as letras
que a formam e postas da mesma forma. Não é cansaço, porque sou preguiçoso.
Talento? O talento por trabalhar é injusta preguiça, mediocridade.
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Aos quarenta e quatro anos faço um balanço da vida. A
primeira vez que me senti velho e incomodado foi aos vinte e cinco anos, passou
aos vinte e seis. A segunda vez foi quando um miúdo de vinte e poucos anos me
perguntou:
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– O senhor tem lume?
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Tinha vinte e oito anos e doeu-me.
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Agora, aos quarenta e quatro anos, a apenas seis meses para me
livrar de vez da hipótese de incorporação nas Forças Armadas, mesmo com guerra,
e tenho metade dos dias expectáveis, penso no que já fiz, sem saber o que possa
fazer.
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Quarto acto: A inocência.
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Quis estudar pintura e a revolta adolescente contra a
ditadura da matemática, da física e da química fizeram-me desviar do destino desejado.
Gastei dois anos da minha vida a bater com os cornos em três disciplinas
inúteis para o meu futuro.
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Disse o meu pai sábio:
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– Antes perder dois anos do que a vida toda!...
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Por que hão-de as artes ter essas ciências e as letras
dispensarem-nas? Porque um conjunto de medíocres não pensou na merda tirânica que
estava a estabelecer.
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Por que ensinam Os Lusíadas aos putos? Não precisam? Por que
não fonética, seria mais útil – e saberão de fonética, os professores?
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Mudei para letras, onde estive bem e descansado como um
ilibado de julgamento. Uma vez mais o talento premiou, mas o desinteresse na
mediocridade do estabelecido me valeu avaliações medíocres.
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Mas repito o reconhecimento de que fugir a uma mediocridade
não implica que não se caia noutra.
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Quis estudar história e concluí. Quis ser jornalista e sou,
há vinte e quatro anos menos um.
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Depois a vida. O que começou prometedor estatelou-se como um
gordo caído dum décimo andar. Mereço? Disse que sou um menino mimado. Serei
ridículo e medíocre e vejo tanta mediocridade e ignorância.
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Uso as desculpas do costume, a de todos os falhados: estou
velho, querem sangue novo, não premeiam a experiência, querem é gente baratinha
e obediente, os miúdos saem das faculdades sem saber nada...
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O caralho! Sempre foi assim. É igual às actrizes que só o foram
por serem jovens e bonitas. Hoje, queixam-se com inveja por os papéis irem para
gaiatas... e o talento? E a sementeira das acções? A desculpa da injustiça é
argumento medíocre, ridículo e estúpido.
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O tempo é cruel para quem não sabe envelhecer e não vê que os
vinte anos não roubam trabalho aos sessenta anos... o talento, mas também
mediocridade.
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Apetece-me tanto destilar a angústia no veneno e citar
nomes...
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Quinto acto – O direito à comiseração.
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Posso chorar, tenho esse direito – vá, comovam-se, que
preciso do vosso sentimento, seja qual for será elogio.
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Comovam-se e tenham pena da mim, que estou tão franco e nu
que os amigos dirão para não publicar este texto que começou uma coisa, passou
a outra e não é nem poesia nem prosa nem prosa poética nem epístola nem memória
futura de despedida da vida corpórea.
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Lamento, perdi o amigo que me aturava e não tenho o dinheiro
para pagar a psicanálise.
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Tivesse eu coragem e diria ao meu pai, de noventa anos, uma
confissão cruel:
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– Pai, obrigado por
compreender que mais vale perderem-se dois anos de estudo inútil do que a vida
toda... mas perdi a vida toda a fazer o que talvez não merecesse, tanto para o
bem como para o mal.
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Luser – não quero estrangeirismos escritos em estrangeiro.
Luser! Luser! Luser!
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Agora vou mostrar a quem visita ou tropeça no endereço o que
escrevi, que é como quem diz o estado do ânimo que, desta vez, é real – coisa raríssima.
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Se quiser posso apagar, anular as palavras, pôr o texto publicado
no momento antes da escrita, ao contrário da vida.
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Ainda assim, quem tem jeitinho conseguirá ler o apagado.
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A solução é mesmo desexistir e todos estes textos, mais de
dois mil, seriam de pai incógnito.
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Baixam-se as cortinas e vou chorar para o camarim, a
almofada.
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