Não vejo nada e continuo a nadar.
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– À vontade, para terminar a aula – crawl.
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– Hoje é à vontade – crawl.
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– João! João! Pára! Não nades apenas crawl.
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– Não é à vontade?
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– É... nada lá crawl.
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Crawl... não conto braçadas nem respirações nem piscinas nem
metros – meço pelo avanço que tenho sobre os outros. Uma de avanço, duas de
avanço, três de avanço... conforme a metragem imposta.
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– Hoje vamos começar com bruços. João, não quero ouvir uma
palavra.
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– Bruços não...
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– Não gostas do que toda a gente gosta e gostas de crawl que
é mais difícil e ninguém gosta.
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Olho à volta – rostos, olhos, bocas confirmam.
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– Acabou a aula, podem fazer duas piscinas à vontade. João,
já sei que é crawl.
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Nunca gostei de nadar bruços e até tive um professor que foi
campeão e recordista nacional e que apesar de entradote ainda deu luta a
federados – fiz de carro-vassoura. O homem insistia para que nadasse na forma
clássica: abre os braços e fecha as pernas, fecha os braços e abre as pernas.
Tão dotado para sincronismos, após três momentos certos e já abria pernas e
braços ao mesmo tempo e fechava em sintonia. Não nasci para sapo e sempre me
senti uma rã disfuncional quando tive de nadar bruços.
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– Tens a mania que és o Yokochi...
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– Não consigo.
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Nas muitas vezes que regressei à natação já ensinaram os
bruços «à Yokochi».
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Ainda assim, nadar bruços é um castigo, desajeito-me e sou
tão lento... uma rã disléxica em que a frente desacerta a traseira e a esquerda
engana a direita.
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Um dia, um instrutor sádico iniciou o ensino do estilo
mariposa. Uma violência. Não tinha caparro para ser bom naquilo, mas espantei-o
por ter aprendido na perfeição na terceira ou quarta piscina.
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– Nunca vi ninguém assim...
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– Assim como?
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– Que aprendesse a nadar mariposa na primeira aula – e a
nadar bem.
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Mariposa? Rezava pela aproximação do topo e fingia-me um
hydrofoil para me entreter a mente durante a brutalidade.
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Uns anos depois mandaram-me nadar a mariposa. Fiz duas
piscinas, voltei a meter para dentro os pulmões e pus-me a nadar crawl para
descansar e descomprimir.
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No nadar de costas fui sempre o melhor. Mas duvido que fosse
um pouco melhor que bom se me confrontasse com outros, que não das minhas
turmas – turmas, porque foram tantas as desistências e tantos os regressos.
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Se pensar... talvez tenha um terço da vida dentro de água.
Os elogios afastaram-me sempre. Talvez com medo de falhar, nunca quis competir –
bem me pressionaram. Um dia o bem-intencionado instrutor disse-me:
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– Tenho muitas esperanças em ti para as provas da INATEL.
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– Provas da INATEL?
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– Sim, nas outras já não tens hipóteses, com a tua idade e
com as vezes que paraste...
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Nunca mais lá meti os pés. Era o que faltava ter mais um a
querer levar-me às corridas.
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Depois passou de todo a idade e nunca mais nenhum treinador
me sugeriu ir a provas.
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Mas no crawl... na última vez que piscinei, o maior
adversário era um tipo magrinho e má-onda – nadava que se desunhava e era
perneta. Tenho feito tudo para enganar o ego... um perneta quase a bater-me no
crawl. A verdade é que o tipo fazia aquilo há anos e anos e anos. Constou-me
que era paralímpico, o certo é que ia todos os dias e ficava pelo menos o tempo
de três sessões e pagava uma pista só para ele. Um dia, não sei porquê, ficou
no meu corredor. O tipo era uma besta e quase que ia andando ao estalo.
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Em ritmo de passeio, porque embora possa parecer bazófias sei bem que não sou o super-homem, fazia dois mil e cem metros e quarenta minutos. Os outros cinco eram para o aquecimento e adaptação à temperatura da água.
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Em ritmo de passeio, porque embora possa parecer bazófias sei bem que não sou o super-homem, fazia dois mil e cem metros e quarenta minutos. Os outros cinco eram para o aquecimento e adaptação à temperatura da água.
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– Façam duas piscinas à vontade.
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– João, não estás farto de nadar crawl? Não te fartas? Não
estás cansado? Pára um bocado...
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– Profe, canso-me mais parado do que a nadar (crawl).
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Os exercícios de membros também eram engraçados. Nunca dei
hipóteses. Havia até quem brincasse e dissesse que eu tinha um motor
fora-de-bordo.
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E o sepide (speed) do treino com barbatanas? Todos a
gozarem...
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– Profe, não dês ao João. Já viste o tamanho dos pés dele?
Não precisa de barbatanas.
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Rebentei três pares.
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– Nunca vi nada assim...
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Que posso fazer se tenho força nas pernas e pés grandes?
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Tive um profe que quando chegava à piscina para ministrar o
treino e eu já nadava (crawl) não me dizia nada. Muitas vezes a sessão
terminava e só percebia que tinha acabado quando via outras pessoas a nadar e
que não faziam parte do meu grupo.
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– Nunca te cansas de nadar crawl?
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Tantas vezes ouvi. Não, não me cansei de nadar crawl e juro
que até descansava.
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O único desporto em que tive talento foi uma contínua
desistência. Desporto? Crawl.
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Desisti por culpa de quem? Minha, claro, que sempre fui
pouco dado a relações, compromissos e pressões.
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Não lamento nunca ter ido a corridas. Nadar bem crawl sempre
deu satisfação bastante.
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A única vez que estive numa aflição – piscina vazia, ao ar
livre, sem aquecimento e professor momentaneamente distraído – estava a nadar
bruços. Cãibras tenebrosas do princípio da coxa até meio do pé – na esquerda e
na direita ao mesmo tempo. Quem disse que eu sabia nadar só com braços? Quem
disse que eu naquela aflição conseguia nadar só com braços. Bem ou mal
safei-me.
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Piscina vazia porque treinava à parte e com um treinador
exclusivo – ao ar livre e sem aquecimento, porque era o espaço do clube para os
treinos do Verão, só que era Março e o local habitual fechara momentaneamente
para obras.
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Patati patata corridas e medalhas e de crawl dali para fora.
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Um dia e crawl outra vez lá pra dentro.
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Nota: O meu pai, o meu tio António e o meu mano também nasceram para nadar.
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Nota: O meu pai, o meu tio António e o meu mano também nasceram para nadar.
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