Estou no
meu segundo luto, e segundo homicídio.
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Deitado,
lado a lado, aguentei o odor das flores quando os dias lhe tolheram os encantos;
vivia num jazigo.
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A
primeira pessoa que matei...
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Sem
mentir ou disfarçar, não sei se matei...
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Não sei
se me posso designar por psicopata, mas não me lembro de nada.
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Entre a
hora e a noite do crime e o momento em que o coração recebe o embate final.
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Lembro-me
de muita coisa, mas não de armas brancas, de fogo ou venenos. Nem verbal.
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Uma
multidão, de duas ou três personagens, apontou-me a culpa.
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Nunca
disse que era inimputável, mas daí a homicida... e naquele caso em concreto...
por que não.
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Não!
Revistos os papéis e as palavras. Não matei!
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E se
tivesse morto? E se matei?
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A ignorância
magoa muito. Provavelmente mais do que os tabefes que os polícias dão aos
meliantes e que, apesar de caçados, voltam imunes para a rua, porque as celas
estão cheias, porque há demasiados julgamentos, porque os advogados não sei o
quê, e porque uma organização dos bonzinhos interveio em nome dos direitos da
canalha contra o socialmente favorecido que estava num lugar errado.
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A
polícia não me interrogou. Nem me bateu, limitou-se a fazer-me penar com o
silêncio e a ignorância da acusação.
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Julgado
e sentenciado por um colectivo de juízes dissonante.
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Sentenciado
por um júri volátil, oscilante entre o que não sabe e o que desconhece.
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Nas
alegações, os autores da queixa, a mulher em lágrimas e o defunto que não me olhava,
até me acusaram de ser bipolar.
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Ora eu
que tomo comprimidos para rir... para que possa enganar o mundo.
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Transtorno
dissociativo de identidade, queriam dizer a vítima e sua partenere. É normal, é
um distúrbio tão raro que quase só acontece na literatura.
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Tanto
faz! Trata-se de caso de loucura e aos loucos não se dá conversa.
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A
justiça fez-se. Uma voz solene leu uma data de palavras, que eu, mesmo
licenciado, não entendi.
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Observando
as regras solenes da etiqueta jurídica, lembrada suavemente por estreito esgar
do advogado, fiquei de pé a ouvir uma novela aborrecida e mal escrita, cujo
interesse se limitou às últimas palavras.
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Eu, em
pé, sob o olhar, entre o confiante e o desesperado do meu advogado, e o
alheamento, fugidio de expressões dos autores...
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Sendo o
homicídio um crime público, lá no cimo do estrado, que existe para dar maior
importância a alguém que se veste com uma bata preta, estava uma pessoa, não
sei se homem ou se mulher, a olhar para mim, com o mesmo interesse que se finge
quando se visita o estábulo de vacas leiteiras.
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A
memória é selectiva e, embora me dissesse respeito, sentia, ainda antes do
festival de argumentações, uma sentença para um acto que...
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Três
juízes disseram: Culpado e com pena efectiva, inocente e em liberdade condicionada
(leia-se magoada), e culpado com pena suspensa, não se dê o caso de não ter
culpa alguma.
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Como a
dor era muita e sempre quis saber a verdade, insisti na tentativa de conversar
com o defunto.
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Guardei-me
num jazigo à espera que passasse ou entrasse. Infantilidades de optimismos...
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Aguentei-me,
enjoado com o odor das flores em agonia.
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E se
entrasse, nem que por engano, o que lhe diria?
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Estás
bom?
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Matei-te?
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Não
sabendo, assumindo o mais puro sentimento da verdade, não estive amnésico.
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Julguei
ter sido alvo duma bala de cicuta certeira na têmpora. Nesse caso, do que
constaria do diploma de óbito? Pensarei noutro dia.
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A
espera, nesse que seria o meu primeiro jazigo, o cheiro das flores tornou-se em
vómito e o tempo tira vida a tudo, até à paciência.
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Já
deslembrado do que nunca soube, continuei. Uma normalidade que só os tolos
pensam ser de grande aventura e maluquice. Pequenas extravagâncias entre amigos
que partilharam quartos
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Ah! Mas não
sou santo! Tenho em mim um vórtice que me puxa. Não inocentemente, pois tenho a
vontade de nele cair, viajando como Alice. Parece-me, pelo que leio e julgo
entender, que a dietilamida do ácido lisérgico tem efeitos que podem ser idênticos ou
comparáveis.
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Esse
vórtice, chupa-cores helicoidal, que me fala e chama, teria de vencer, nem que
fosse por uma vez, a lógica do afecto, que, como o das mães, se confia e
acredita ser eterno.
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Se nesse
primeiro crime deitei-me num jazigo – com as flores que acabaram por apodrecer,
esperando que o féretro se juntasse naquele leito de mármore, que tem, à
entrada, do lado de fora, uma locução de pesar em latim e que acompanha
banalmente a aldeia das casinhas para cadáveres – agora embosquei-me na tristeza
da culpa.
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Desta
vez houve crime verdadeiro, com as minhas mãos transformadas em boca, que estrangularam
pedindo ajuda – um pouco como fazem os náufragos àqueles que os vão salvar, desconhecendo
as artimanhas da morte, que com amonas e abraços estrangulantes matam por
afogamento os salvadores. Assim fiz, com esperança nas palavras.
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O flúor
e o iodo fazem bem à saúde, mas são venenos.
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(É neste
ponto que todos aqueles que, vendo o corpo jazente da vítima e o meu semblante
tardio, me podem, ou devem, apelidar de manipulador – seja para cima ou para
baixo – pois o elevador faz os dois caminhos, com o mesmo ranger de metal, o
que assusta algumas pessoas).
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Digo
tardio, porque o que penso agora tivera tido outra compreensão a quando da sentença,
ainda antes de decidida e proferida.
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Dizia: não
fugi e entreguei-me, ainda o corpo fumegava de dor – embora no singular, deve
ler-se no plural.
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Ostracizado,
foi esse o castigo...
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Voltei a
escolher passar a pena num jazigo, sendo este maior. Não por acaso ou bondade
para com o condenado, mas para que coubessem mais flores e assim me enjoasse
mais facilmente.
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Desta
vez, o defunto apresentou-se. Ficando em ausência, para que a minha dor fosse aguda
e grave, gritando, figuradamente, como um órgão de igreja barroca, fustigando os
ouvidos de qualquer pessoa dotada de bom senso auditivo.
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Eu e a
vítima, separados por um muro de flores a impossibilitar o vislumbre e
filtrando o som que uma boca (a minha) pudesse proferir.
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Exagero:
na verdade, o jazigo partilhado com as flores mórbidas e a vítima basta em
espaço.
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Interrogo-me,
agora marginalmente, onde estão ou estavam os cadáveres proprietários dos
jazigos. As flores garantem a existência do convívio doloroso que une partintes
e ficantes... Mais tarde pensarei nisso.
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Não falo
ao meu homicidiado, porque não me ouve. Quero dizer, não me quer ouvir. Ainda
tentei, mas não se arromba uma amizade.
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Não diz
nada, mas tenho a certeza que me ouve. Noto um certo remexer da folhagem das
coroas ou das pétalas violáceas lá no outro lado da casa.
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E se
falássemos, falaríamos do quê?
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Do frio
que faz dentro da casa de pedra? Penso que é de mármore... ou do odor enjoativo
das flores?
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Do tempo
que está lá fora? Chove? Faz frio? Esta semana viu-se pouca gente...
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Falaríamos
do homicídio? Disso não, porque foi com palavras que lhe estrangulei a réstia
de paciência.
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Pensando...
terei matado alguém vivo num ápice ou terei apenas posto demasiadas gotas de tóxico
no chá?!
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Li nos
jornais que um bandido anda à solta. Começa por impacientar e acaba
estrangulando, com manipulações de sentimentos.
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Ingenuamente
sei que sou eu. Louco, não paranóico. Ainda assim espero o momento duma
acusação nesse âmbito.
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Manchete
em vários jornais: Investigações recentes apontam-me como provável
serialquiler.
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As palavras
matam e falo demasiado.
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As
amizades são para a vida! Ok! Quanto dura uma vida?
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Pelo
princípio: o que é a vida? E pressupõe reciprocidade ou Deus criou o universo com
um só sentido de marcha, estando a faixa do lado com vedame mais à frente.
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Num
outro princípio, mas mais avançado... será o jardim de Deus, um labirinto de
sebes, que, ao desvendar-se, como um delta de rio, se transforma em largo prado,
com todas as flores em bosquetes, e pomar de todas as árvores de fruta, podendo
comer-se de todas elas, incluindo as da Árvore da Ciência do Bem e do Mal?
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Porém,
ao contrário do primeiro crime, que alegadamente terei cometido, esta sentença
perdeu a vida.
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A
sentença morreu. Como tudo na vida. Mentira!... ou quase verdade, em
inocência... transfigurada pela metamorfose. Esgotada transformou-se no
martírio do açoite.
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Como dói
a dor que se dá injusta. Como tudo na vida, há um fim.
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Sem
clemência nem apelo, a fustigação fez-se normalidade, daí resultando uma
indiferença.
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Tanto
faz que tenha morto alguém. Tudo na vida morre. Se morrem os corpos dos amigos,
jazem também os sentimentos que se prendem às almas?
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Vive
quem quer e sobrevive quem pode. E o mesmo dito colocando os verbos querer e
poder.
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Tenho as
contas saldadas. Os mortos não me matam. Os vivos, os que ainda, com adaga
segurada entre dentes ou drone para balear à distância, o podem fazer...
fazem-se de moribundos.
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Como as
fieis beatas, que com a boca e coração maldizem para se arrependerem, sem
arrependimento, ao cura, recebendo um perdão, graça e hóstia. Pobres homens, o
que têm de ouvir e aturar.
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Estamos
na Páscoa e sempre comi carne. Antes, durante e depois. Fui malcriado. Esta é característica
que, em estudo aprofundado, pode levar a obter conclusões interessantes acerca
da minha tendência homicida.
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Tenho a
dizer, sem cinismo... acredite quem quiser: Quem teme o estrangulador de
afectos que durma descansado, tal a fraqueza.
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Ceder à
dor da fustigação, a que me prestam em atenção, seria outro massacre de cinto e
fivela.
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Não fico
mais num jazigo e deixo as flores defuntas para quem, embora morto, queira
continuar sem vida.
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Se os
amigos morrem?
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Morrem.
Fica viva a amizade.
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Os
amigos morrem?
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Uma construção
de passados e gratidões, memórias, tristezas e alegrias.
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Matam-se
os amigos. Levados para campa rasa, forno ou jazigo, terão consigo sentimentos
provenientes das alegrias. As tristezas esquecem-se, ainda que na dificuldade
houvesse alguém, mais sóbrio e momentaneamente enrijecido, lutasse para que o
bom pudesse amparar...
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Coisas
que não se fazer por «gosto», mas por amor. dois.
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Lutasse,
pensando, de antemão, no momento do beijo da traição. Afecto cínico, como quem
cria galinhas em capoeira, que mantenha ânimo às suas futuras vítimas.
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A
verdade é maior do que a vida e nada supera o amor, assim quis Deus. Assim
penso. Mesmo crendo por lógica e não por fé, reconheço-lhe infinitas bondade e
inteligência.
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Quando
penso predisposição de me açoitarem, castigando-me navalhados mortalmente e ainda
vivendo, morro um pouco, confesso.
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Morro
pelo engano. Pela traição, tirada emprestada à minha vítima homicidiada.
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Compreendo.
A verdade é maior do que a vida e que esta se faz de memórias. Mesmo não
querendo, negando em juras, há afectos maiores do que outros.
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Que seja
o sangue ou o partido a tomar a parte. Que não tome o rancor e a justiça que
não lhe compete.
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Que
saibam que em cada vida só se morre uma vez. Quem quiser a minha bala de cicuta
que se coloque defronte ao gatilho e espere... Nunca se sabe se o dedo se cansa
e o único projéctil, em sorte de roleta russa, se liberte.
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Se
assim, espero ter saudades da caixa de pedra, onde só se conversa com o vazio.
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Não peço
dores emprestadas, nem as ofereço em demérito. Ainda que queiram que o faça...
e se mo fizerem, não darei o desgosto do rancor.
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Os
amigos são um exército pequenino, talvez menos do que um pelotão. Há os que vão
e vêm, os que ficam (por qualquer razão), os que nunca foram (sem razão), os
que zarpam, e os mais tristes, que saem fechando a porta aos amigos, com as
chaves do lado de dentro e ouvidos surtos a chamamentos.
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A esses
desejo que nunca seja noite e que dentro do santuário que encontrem haja do que
comer e matar a sede.
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E
palavras de encontro, boas ou más, mas que reconciliem quem nunca devia ter
sido apartado, tendo ido ou ficado.
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Digo
isto tardio, evitando desilusão. Quero compreender o homem, que me perdoe e lhe
dê graças por, vindo a mim, mesmo sem que os lábios se mexam, diga uma palavra
de consolo e reconhecimento.
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Não é
pôr em altar de santo. É pedido. Nem mesmo peço para mim desculpa por mágoas
que esqueci ou faço por isso. O mesmo no caminho para lá.
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Terei
morto dois amigos. Um na inocência e outro num desastre.
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Um, que
não me lembro do crime, terei de esperar pelo momento em que nos encontremos no
jardim das sebes e uma força, de luz ou vento ou água ou fogo ou quinto
elemento, nos faça falar. Ajustando contas malfeitas.
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O
segundo tem a porta aberta, ainda que saiba que jamais a vá querer passar.
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Que nas
suas intimidades se queixe do mal que lhe fiz, enquanto murmura etilizado o meu
perdão.
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O
orgulho calá-lo-á para sempre, ainda que as floristas tenham muitas cores e
cheiros, e das suas lojas partam banais rosas encarnadas, assustadoras rosas
amarelas, principescas margaridas, arranjos simples, acabamentos comuns e
desejos especiais. Nas floristas há muito mais, e as ramagens não se aparam com
gadanhas.
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Quem me
aponta o dedo... não matarei, pois a dor tomada de empréstimo é roubo. Roubar é
muito feio e poucos são os que confessam e devolvem. Nunca roubei! Levei, em
nome duma festa, uma garrafa de vinho rasca e porque insistiram que tinha ar de
menino de coro, que não acende um círio sem que o prior dê licença.
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Se
matarei mais alguém?
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Não sei.
Entre mim e mim existe tempo e outras coisas que não se perdoam.
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Se
matarei mais alguém?
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Amigos
há poucos...
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Se
matarei mais alguém?
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A
resposta honesta é dolorosa.
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Não
quero acerto de contas, nem caubois de revólveres nas mãos, um com balas de
arsénio e outro de cianeto.
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A vida é
mais do que isso.
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Há uma estrada
de ir e outra.
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Há o
jardim das sebes e das certezas, muito espaço para conversar.
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Se
matarei mais alguém?
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Uma
memória próxima quase respondeu...
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Não
matarás, mas se o fizeres, faz com que todos chorem também a tua desgraça.
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Que os
amigos partilhem, ainda que na dor escusada e desastrada, um sentimento. Como
antes fora a felicidade.
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O tempo
tira vida a tudo, até à paciência.
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O mar
reclama o que é seu.
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Sobre tudo,
o jardim de todas as benfeitorias.
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Se por
acaso, sejas tu o primeiro falecido ou o segundo mandado, não morreste matado
por mim...
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Se por
acaso não o podes confessar.
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Com dor
e sem rancor, angustiado e triste.
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Uma maré
trará o momento.
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As sebes
abrem-se como os deltas dos rios e o pomar alarga-se como os estuários.
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Sob a
árvore do conhecimento, comendo do querer, a verdade irá juntar quem na Terra
disparatou.
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Sem verdade
não há...
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Não prometo
não voltar a matar.
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Nota: a LM, SA, VR, IQ e PR.
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Nota: a LM, SA, VR, IQ e PR.
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