digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, abril 06, 2014

À sombra da Árvore da Ciência do Bem e do Mal

Estou no meu segundo luto, e segundo homicídio.
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Deitado, lado a lado, aguentei o odor das flores quando os dias lhe tolheram os encantos; vivia num jazigo.
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A primeira pessoa que matei...
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Sem mentir ou disfarçar, não sei se matei...
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Não sei se me posso designar por psicopata, mas não me lembro de nada.
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Entre a hora e a noite do crime e o momento em que o coração recebe o embate final.
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Lembro-me de muita coisa, mas não de armas brancas, de fogo ou venenos. Nem verbal.
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Uma multidão, de duas ou três personagens, apontou-me a culpa.
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Nunca disse que era inimputável, mas daí a homicida... e naquele caso em concreto... por que não.
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Não! Revistos os papéis e as palavras. Não matei!
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E se tivesse morto? E se matei?
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A ignorância magoa muito. Provavelmente mais do que os tabefes que os polícias dão aos meliantes e que, apesar de caçados, voltam imunes para a rua, porque as celas estão cheias, porque há demasiados julgamentos, porque os advogados não sei o quê, e porque uma organização dos bonzinhos interveio em nome dos direitos da canalha contra o socialmente favorecido que estava num lugar errado.
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A polícia não me interrogou. Nem me bateu, limitou-se a fazer-me penar com o silêncio e a ignorância da acusação.
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Julgado e sentenciado por um colectivo de juízes dissonante.
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Sentenciado por um júri volátil, oscilante entre o que não sabe e o que desconhece.
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Nas alegações, os autores da queixa, a mulher em lágrimas e o defunto que não me olhava, até me acusaram de ser bipolar.
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Ora eu que tomo comprimidos para rir... para que possa enganar o mundo.
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Transtorno dissociativo de identidade, queriam dizer a vítima e sua partenere. É normal, é um distúrbio tão raro que quase só acontece na literatura.
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Tanto faz! Trata-se de caso de loucura e aos loucos não se dá conversa.
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A justiça fez-se. Uma voz solene leu uma data de palavras, que eu, mesmo licenciado, não entendi.
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Observando as regras solenes da etiqueta jurídica, lembrada suavemente por estreito esgar do advogado, fiquei de pé a ouvir uma novela aborrecida e mal escrita, cujo interesse se limitou às últimas palavras.
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Eu, em pé, sob o olhar, entre o confiante e o desesperado do meu advogado, e o alheamento, fugidio de expressões dos autores...
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Sendo o homicídio um crime público, lá no cimo do estrado, que existe para dar maior importância a alguém que se veste com uma bata preta, estava uma pessoa, não sei se homem ou se mulher, a olhar para mim, com o mesmo interesse que se finge quando se visita o estábulo de vacas leiteiras.
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A memória é selectiva e, embora me dissesse respeito, sentia, ainda antes do festival de argumentações, uma sentença para um acto que...
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Três juízes disseram: Culpado e com pena efectiva, inocente e em liberdade condicionada (leia-se magoada), e culpado com pena suspensa, não se dê o caso de não ter culpa alguma.
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Como a dor era muita e sempre quis saber a verdade, insisti na tentativa de conversar com o defunto.
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Guardei-me num jazigo à espera que passasse ou entrasse. Infantilidades de optimismos...
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Aguentei-me, enjoado com o odor das flores em agonia.
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E se entrasse, nem que por engano, o que lhe diria?
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Estás bom?
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Matei-te?
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Não sabendo, assumindo o mais puro sentimento da verdade, não estive amnésico.
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Julguei ter sido alvo duma bala de cicuta certeira na têmpora. Nesse caso, do que constaria do diploma de óbito? Pensarei noutro dia.
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A espera, nesse que seria o meu primeiro jazigo, o cheiro das flores tornou-se em vómito e o tempo tira vida a tudo, até à paciência.
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Já deslembrado do que nunca soube, continuei. Uma normalidade que só os tolos pensam ser de grande aventura e maluquice. Pequenas extravagâncias entre amigos que partilharam quartos
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Ah! Mas não sou santo! Tenho em mim um vórtice que me puxa. Não inocentemente, pois tenho a vontade de nele cair, viajando como Alice. Parece-me, pelo que leio e julgo entender, que a dietilamida do ácido lisérgico tem efeitos que podem ser idênticos ou comparáveis.
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Esse vórtice, chupa-cores helicoidal, que me fala e chama, teria de vencer, nem que fosse por uma vez, a lógica do afecto, que, como o das mães, se confia e acredita ser eterno.
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Se nesse primeiro crime deitei-me num jazigo – com as flores que acabaram por apodrecer, esperando que o féretro se juntasse naquele leito de mármore, que tem, à entrada, do lado de fora, uma locução de pesar em latim e que acompanha banalmente a aldeia das casinhas para cadáveres – agora embosquei-me na tristeza da culpa.
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Desta vez houve crime verdadeiro, com as minhas mãos transformadas em boca, que estrangularam pedindo ajuda – um pouco como fazem os náufragos àqueles que os vão salvar, desconhecendo as artimanhas da morte, que com amonas e abraços estrangulantes matam por afogamento os salvadores. Assim fiz, com esperança nas palavras.
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O flúor e o iodo fazem bem à saúde, mas são venenos.
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(É neste ponto que todos aqueles que, vendo o corpo jazente da vítima e o meu semblante tardio, me podem, ou devem, apelidar de manipulador – seja para cima ou para baixo – pois o elevador faz os dois caminhos, com o mesmo ranger de metal, o que assusta algumas pessoas).
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Digo tardio, porque o que penso agora tivera tido outra compreensão a quando da sentença, ainda antes de decidida e proferida.
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Dizia: não fugi e entreguei-me, ainda o corpo fumegava de dor – embora no singular, deve ler-se no plural.
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Ostracizado, foi esse o castigo...
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Voltei a escolher passar a pena num jazigo, sendo este maior. Não por acaso ou bondade para com o condenado, mas para que coubessem mais flores e assim me enjoasse mais facilmente.
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Desta vez, o defunto apresentou-se. Ficando em ausência, para que a minha dor fosse aguda e grave, gritando, figuradamente, como um órgão de igreja barroca, fustigando os ouvidos de qualquer pessoa dotada de bom senso auditivo.
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Eu e a vítima, separados por um muro de flores a impossibilitar o vislumbre e filtrando o som que uma boca (a minha) pudesse proferir.
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Exagero: na verdade, o jazigo partilhado com as flores mórbidas e a vítima basta em espaço.
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Interrogo-me, agora marginalmente, onde estão ou estavam os cadáveres proprietários dos jazigos. As flores garantem a existência do convívio doloroso que une partintes e ficantes... Mais tarde pensarei nisso.
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Não falo ao meu homicidiado, porque não me ouve. Quero dizer, não me quer ouvir. Ainda tentei, mas não se arromba uma amizade.
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Não diz nada, mas tenho a certeza que me ouve. Noto um certo remexer da folhagem das coroas ou das pétalas violáceas lá no outro lado da casa.
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E se falássemos, falaríamos do quê?
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Do frio que faz dentro da casa de pedra? Penso que é de mármore... ou do odor enjoativo das flores?
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Do tempo que está lá fora? Chove? Faz frio? Esta semana viu-se pouca gente...
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Falaríamos do homicídio? Disso não, porque foi com palavras que lhe estrangulei a réstia de paciência.
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Pensando... terei matado alguém vivo num ápice ou terei apenas posto demasiadas gotas de tóxico no chá?!
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Li nos jornais que um bandido anda à solta. Começa por impacientar e acaba estrangulando, com manipulações de sentimentos.
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Ingenuamente sei que sou eu. Louco, não paranóico. Ainda assim espero o momento duma acusação nesse âmbito.
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Manchete em vários jornais: Investigações recentes apontam-me como provável serialquiler.
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As palavras matam e falo demasiado.
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As amizades são para a vida! Ok! Quanto dura uma vida?
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Pelo princípio: o que é a vida? E pressupõe reciprocidade ou Deus criou o universo com um só sentido de marcha, estando a faixa do lado com vedame mais à frente.
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Num outro princípio, mas mais avançado... será o jardim de Deus, um labirinto de sebes, que, ao desvendar-se, como um delta de rio, se transforma em largo prado, com todas as flores em bosquetes, e pomar de todas as árvores de fruta, podendo comer-se de todas elas, incluindo as da Árvore da Ciência do Bem e do Mal?
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Porém, ao contrário do primeiro crime, que alegadamente terei cometido, esta sentença perdeu a vida.
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A sentença morreu. Como tudo na vida. Mentira!... ou quase verdade, em inocência... transfigurada pela metamorfose. Esgotada transformou-se no martírio do açoite.
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Como dói a dor que se dá injusta. Como tudo na vida, há um fim.
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Sem clemência nem apelo, a fustigação fez-se normalidade, daí resultando uma indiferença.
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Tanto faz que tenha morto alguém. Tudo na vida morre. Se morrem os corpos dos amigos, jazem também os sentimentos que se prendem às almas?
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Vive quem quer e sobrevive quem pode. E o mesmo dito colocando os verbos querer e poder.
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Tenho as contas saldadas. Os mortos não me matam. Os vivos, os que ainda, com adaga segurada entre dentes ou drone para balear à distância, o podem fazer... fazem-se de moribundos.
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Como as fieis beatas, que com a boca e coração maldizem para se arrependerem, sem arrependimento, ao cura, recebendo um perdão, graça e hóstia. Pobres homens, o que têm de ouvir e aturar.
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Estamos na Páscoa e sempre comi carne. Antes, durante e depois. Fui malcriado. Esta é característica que, em estudo aprofundado, pode levar a obter conclusões interessantes acerca da minha tendência homicida.
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Tenho a dizer, sem cinismo... acredite quem quiser: Quem teme o estrangulador de afectos que durma descansado, tal a fraqueza.
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Ceder à dor da fustigação, a que me prestam em atenção, seria outro massacre de cinto e fivela.
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Não fico mais num jazigo e deixo as flores defuntas para quem, embora morto, queira continuar sem vida.
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Se os amigos morrem?
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Morrem. Fica viva a amizade.
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Os amigos morrem?
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Uma construção de passados e gratidões, memórias, tristezas e alegrias.
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Matam-se os amigos. Levados para campa rasa, forno ou jazigo, terão consigo sentimentos provenientes das alegrias. As tristezas esquecem-se, ainda que na dificuldade houvesse alguém, mais sóbrio e momentaneamente enrijecido, lutasse para que o bom pudesse amparar...
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Coisas que não se fazer por «gosto», mas por amor. dois.
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Lutasse, pensando, de antemão, no momento do beijo da traição. Afecto cínico, como quem cria galinhas em capoeira, que mantenha ânimo às suas futuras vítimas.
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A verdade é maior do que a vida e nada supera o amor, assim quis Deus. Assim penso. Mesmo crendo por lógica e não por fé, reconheço-lhe infinitas bondade e inteligência.
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Quando penso predisposição de me açoitarem, castigando-me navalhados mortalmente e ainda vivendo, morro um pouco, confesso.
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Morro pelo engano. Pela traição, tirada emprestada à minha vítima homicidiada.
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Compreendo. A verdade é maior do que a vida e que esta se faz de memórias. Mesmo não querendo, negando em juras, há afectos maiores do que outros.
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Que seja o sangue ou o partido a tomar a parte. Que não tome o rancor e a justiça que não lhe compete.
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Que saibam que em cada vida só se morre uma vez. Quem quiser a minha bala de cicuta que se coloque defronte ao gatilho e espere... Nunca se sabe se o dedo se cansa e o único projéctil, em sorte de roleta russa, se liberte.
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Se assim, espero ter saudades da caixa de pedra, onde só se conversa com o vazio.
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Não peço dores emprestadas, nem as ofereço em demérito. Ainda que queiram que o faça... e se mo fizerem, não darei o desgosto do rancor.
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Os amigos são um exército pequenino, talvez menos do que um pelotão. Há os que vão e vêm, os que ficam (por qualquer razão), os que nunca foram (sem razão), os que zarpam, e os mais tristes, que saem fechando a porta aos amigos, com as chaves do lado de dentro e ouvidos surtos a chamamentos.
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A esses desejo que nunca seja noite e que dentro do santuário que encontrem haja do que comer e matar a sede.
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E palavras de encontro, boas ou más, mas que reconciliem quem nunca devia ter sido apartado, tendo ido ou ficado.
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Digo isto tardio, evitando desilusão. Quero compreender o homem, que me perdoe e lhe dê graças por, vindo a mim, mesmo sem que os lábios se mexam, diga uma palavra de consolo e reconhecimento.
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Não é pôr em altar de santo. É pedido. Nem mesmo peço para mim desculpa por mágoas que esqueci ou faço por isso. O mesmo no caminho para lá.
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Terei morto dois amigos. Um na inocência e outro num desastre.
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Um, que não me lembro do crime, terei de esperar pelo momento em que nos encontremos no jardim das sebes e uma força, de luz ou vento ou água ou fogo ou quinto elemento, nos faça falar. Ajustando contas malfeitas.
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O segundo tem a porta aberta, ainda que saiba que jamais a vá querer passar.
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Que nas suas intimidades se queixe do mal que lhe fiz, enquanto murmura etilizado o meu perdão.
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O orgulho calá-lo-á para sempre, ainda que as floristas tenham muitas cores e cheiros, e das suas lojas partam banais rosas encarnadas, assustadoras rosas amarelas, principescas margaridas, arranjos simples, acabamentos comuns e desejos especiais. Nas floristas há muito mais, e as ramagens não se aparam com gadanhas.
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Quem me aponta o dedo... não matarei, pois a dor tomada de empréstimo é roubo. Roubar é muito feio e poucos são os que confessam e devolvem. Nunca roubei! Levei, em nome duma festa, uma garrafa de vinho rasca e porque insistiram que tinha ar de menino de coro, que não acende um círio sem que o prior dê licença.
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Se matarei mais alguém?
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Não sei. Entre mim e mim existe tempo e outras coisas que não se perdoam.
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Se matarei mais alguém?
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Amigos há poucos...
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Se matarei mais alguém?
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A resposta honesta é dolorosa.
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Não quero acerto de contas, nem caubois de revólveres nas mãos, um com balas de arsénio e outro de cianeto.
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A vida é mais do que isso.
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Há uma estrada de ir e outra.
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Há o jardim das sebes e das certezas, muito espaço para conversar.
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Se matarei mais alguém?
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Uma memória próxima quase respondeu...
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Não matarás, mas se o fizeres, faz com que todos chorem também a tua desgraça.
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Que os amigos partilhem, ainda que na dor escusada e desastrada, um sentimento. Como antes fora a felicidade.
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O tempo tira vida a tudo, até à paciência.
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O mar reclama o que é seu.
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Sobre tudo, o jardim de todas as benfeitorias.
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Se por acaso, sejas tu o primeiro falecido ou o segundo mandado, não morreste matado por mim...
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Se por acaso não o podes confessar.
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Com dor e sem rancor, angustiado e triste.
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Uma maré trará o momento.
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As sebes abrem-se como os deltas dos rios e o pomar alarga-se como os estuários.
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Sob a árvore do conhecimento, comendo do querer, a verdade irá juntar quem na Terra disparatou.
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Sem verdade não há...
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Não prometo não voltar a matar.
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Nota: a LM, SA, VR, IQ e PR.

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