
Este é um homem normal que se julgava especial. Filho de si próprio, que cresceu quase sozinho, filho de mãe trabalhadora e de pai presente e negligente.
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A educação deve-a a si, a umas dicas dos pais, à ajuda da madrinha e a três ou quatro professores empenhados no bem comum.
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Um dia começou a trabalhar, fruto do seu mérito e mínima ajuda de sua mãe, que lhe iluminou as ideias.
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Por mérito, cresceu e lançou-se em aventuras. Um dia, depois de muitas mulheres, duas com importância emocional, conheceu Isabel e quis casar-se, ter filhos e normalizar uma vida de dândi.
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Vieram ventos do além, arrepios, dúvidas, novas ideias, poucas certezas, muito amor. Uma vida quase nova, a estrear.
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Quando tudo se encarreirava, uma onda de porto avançou e derrubou-lhe o mundo. Encharcado em lágrimas, caiu e foi engolido na vertigem dum vórtice impiedoso, para onde não foi voluntário nem certo do destino.
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Se o empurraram e rasgaram o destino, também quis uma nova oportunidade, coisa que lhe deram às mijinhas e exigindo sempre muito mais do que um homem pode dar.
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Deu por si sozinho e deixado de parte pela vida que quis, desejou, conheceu e agradeceu. Ao fim e ao cabo, levaram-lhe a roupa e a nudez. As certezas e as dúvidas.
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Doente, doente da cabeça, quase se deixou internar. Devia tê-lo feito, pois sempre recebia uma tença do Estado e a compaixão dos caridosos. Doente, doente da cabeça, tentou levar a vida. A vida que pouco lhe deixou para viver.
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Perdido de tudo, perdeu-se de quase todos. Um dia puxou da pistola, não para matar um gerente ou um patrão. Puxou da pistola e deu um tiro nos cornos.
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Dado o tiro, continuou numa espécie de formigueiro, não se deixando quieto. Não por ser irrequieto ou ter um cérebro inquiritivo, mas por as minhocas e bicharocos lhe fazerem cócegas na podridão.
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A vida não lhe valeu de nada e a outra, a que veio depois, não lhe acrescentou nada. Tudo o que teve perdeu, até que perdeu a dor que sentia por ter perdido tudo.
2 comentários:
"Ninguém é quem queria ser. Eu queria ser ninguém" (...)
Manel Cruz - Ninguém é quem queria ser, in "Foge, Foge Bandido".
:)
quando já não resta nada, pode finalmente (re)começar tudo. Despojados, somos enfim. Como pela primeira vez.
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