
- E que tal?
- Angustiante… como sempre.
- O que aconteceu?
- Nada de especial, o mesmo do costume… nudez e erotismo… afecto e cumplicidade, constrangimento… saudade… arrependimento e orgulho… vontade de corrigir a situação e ter medo da vida daí resultante. Como se alguém, depois de se jogar duma janela, pudesse recuar, pudesse não cair, o soubesse, o desejasse, o quisesse, mas tivesse medo de o fazer.
- Angustiante…
- Opressivo. Ilusão e desilusão. Um mistério muito grande… o que fazer com este amor?
- Mas isso é amor?
- Não tenho a menor dúvida… tanto meu como dela.
- Mas assim não parece.
- Mas é.
- Se ela te amasse não te faria assim sofrer.
- Acabei de te dizer aquilo do voo pela janela… é uma prova.
- É a tua vontade. Foi um sonho. Acorda, na vida não é assim.
- Sonhar é viver. O que seria da vida sem amor e do amor sem os sonhos… e dos sonhos sem o amor.
- … hummm…
- Amo-a como ela a mim. Sei porque sonho. Porque se assim não fosse já poderíamos ser amigos depois do sono. Estás a perceber aquilo que te disse acerca da janela?
- A ser assim, esse amor é doentio.
- É suicida… é masoquista… mas não é sádico.
- É doentio.
- Não! É um amor falso.
- Se o amor é falso, não é amor. Acabaste de dizer que era amor, mas agora dizes-me que é falso.
- É verdade que é verdadeiro, mas é falso porque não se pode nele fiar.
- Mas o que é, afinal, um amor falso?
- Todo aquele que finge.
- Todo aquele em que se finge?
- Não! O fingimento é parte do encantamento.
- Então?
- Todo aquele que finge…
- Finge?
- Finge! Finge que ama. Finge que não ama. Finge que se importa. Finge que não se importa. Diz que está e que não está.
- Doloroso… complicado…
- Sim. Por vezes, há amores falsos com mais consistência e misericórdia do que outros verdadeiros e assumidos.
- Dizes isso tudo, assim… sem medo de te revelares… De te pores nu de frente para o mundo?...
- Nu de frente para o mundo, atrás duma janela. Nu sob a minha roupa, claro na consciência.
- Não fujas… não tens receio?
- Tenho, mas também sou imponderado e impulsivo, é da minha natureza.
- Revelas-te assim…
- Revelo o que quero revelar. Como te disse, a verdade está sob a minha cabeça, na minha consciência. Isto acerca de mim. Sobre o amor, está entre mim e ela.
- Ao revelares-te mostras mais do que deves. Como num jogo de cartas... jogas contra ti, jogas a perder.
- Não. Penitencio-me, rebaixo-me e suplico.
- Não faz sentido! Esse teu amor não é segredo?
- É!
- Por que o guardas e sussurras, a poucos, parte do que te vai?
- É segredo. Mas um dos prazeres do segredo está no breve e leve assoprar. Doutra forma não serve para nada.
- Tem de haver fuga…
- Tem.
- Por vezes, a revelação é contraproducente. É-nos prejudicial.
- Sim. Uma verdade comporta sempre dor e implica haver um derrotado. No entanto, para o outro não tem de ser assim. Além disso, quem assiste vive o escândalo sem se ferir, embora podendo emocionar-se.
- Voltando ao concreto. Achas que ganhas alguma coisa em expores-te? Esse teu amor não é um segredo?
- Sim, é segredo. Válido apenas até à revelação, momento de explosão.
- Já o revelaste…
- Nem por sombras. Estou nu apenas para mim, os outros sabem o que vêem e ouvem, deduzem o que julgam saber. O meu segredo não sabes…
- A Flor Vermelha?...
- Não sabes quem é.
- Vais dizer-me?
- Dou-te uma pista. O meu amor tem uma longevidade imparável. Válido porque não é correspondido nem correspondível… de cá para ela e dela para cá.
- Não existe?
- Existe, mas num limbo entre a carne e o espírito.
- Divino?
- Humano.
- …
- Tem muitas vidas e, por este andar, mais vidas terá.
- Qual o porquê dessa longevidade?
- Isso é segredo.
- Mas qual é o segredo?
- Se o soubesse deixaria de ser segredo. Vamos vivendo uma coisa que construídos, dia a dia. Nenhum conhece o destino. Não deito cartas, nem as quero deitar. Não faço bruxedos nem vou a bruxinhas. O que tiver de ser, será. É nessa angústia e nessa dor que está o prazer. É esse o segredo.
- Que fizeste, então, quando acordaste?
- Respirei de alívio e fiquei magoado e ansioso.
3 comentários:
"O amor é assim, um sonho para mim..."
Bela descrição daquilo que é indescritível.
beijo.
Luiza
Essa angústia e essa dor de que falas, a mim já não me dão prazer. Longe vão os tempos em que isso era tudo e tudo era o bastante. Já não é. Se continuar a deixar que o seja, se-lo-à sempre.
Agora quero o nada.
Venha o nada.
Um viva ao nada!
Ip ip Urra!
E para a Esparsa, não vai nada, nada, nada?
Nada.
Luiza :-D
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Esparsa... pode ser que te passe... ;-)
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