
Uma capital não é o local mais óbvio para se encontrarem vinhedos. Lisboa é talvez a excepção. Há séculos, a capital portuguesa acolhia algumas centenas de milhares de pessoas e os seus arrabaldes de Alcântara e do Lumiar abasteciam-na de vinho. A cidade cresceu ao longo do Tejo, galgou colinas e vales, espalhou-se pela zona saloia, atravessou o rio largo e tornou-se vasta como uma província.
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O século XX trouxe a indústria, a mecanização, o aumento da natalidade e da esperança de vida. Lisboa acenou com uma vida menos dura e melhores rendimentos às populações rurais. A pequena cidade tornou-se numa metrópole, hoje com mais de 2,6 milhões de habitantes. O cimento e o alcatrão engoliram searas, olivais e vinhedos. Na margem Norte da Área Metropolitana resistem ainda três vinhas únicas, com denominação de origem controlada (DOC): Bucelas, Colares e Carcavelos. Além rio, a urbe aproximou os vinhos da península de Setúbal.
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O vinho doce das praias
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A vista azul atraiu moradores e os construtores ergueram subúrbios à beira do mar. O Vinho de Carcavelos foi perdendo viabilidade. Se até ao início da década de 80 do século XX ainda havia diversas quintas em laboração, hoje restam apenas duas, num total de apenas 9,5 hectares de vinha.
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Na linha do Estoril há quem faça vinho de missa, mas quase todas as quintas morreram ou deixaram a vinha sem função. A Quinta dos Pesos, pertença da família Bullosa, é hoje a decana. A esperança de salvação está na Estação Agronómica Nacional (EAN), um departamento do Ministério da Agricultura, que desde 1983/4 produz Vinho de Carcavelos. Hoje conta com seis hectares e no próximo terá oito. Esta exploração tem uma colecção de cepas, destinada a fins científicos e à melhoria da diversidade genética.
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O Carcavelos já foi uma joia nacional. Em 1752, o rei Dom José enviou-o de presente ao imperador da China. O marquês de Pombal era um apreciador e na sua quinta de Oeiras (da qual tinha o título de conde) produzia-o – sendo essa propriedade a mesma onde hoje está instalada a EAN. Sebastião José de Carvalho e Melo é célebre pela protecção que deu aos vinhos do Douro, cuja região foi a primeira do mundo a ser demarcada. O ministro decretou pena de morte a quem introduzisse vinho na região duriense. Apenas uma excepção: o Carcavelos, refere António Mexia, director da EAN.
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A grande divulgação deste vinho foi obra dos ingleses que acorreram a Portugal a quando das invasões francesas. Terão sido os soltados britânicos os incentivadores da fortificação, ou seja a adição de aguardente por forma a prolongar a vida do vinho. Contudo, só em 1911 é que a região foi demarcada. Consta que, em 1917, as tropas bolcheviques encontraram garrafas de Carcavelos nas caves do czar, mas não se sabe que destino terão tido... mas imagina-se.
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Aos vivas da escrita dos «vencidos da vida» oposeram-se três maleitas que quase o fizeram morrer: o oídio (1852), a filoxera (1871) e o míldio (1882). Na década de 1880 a produção passou de 3000 pipas para apenas 13, sublinha o director da EAN.
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O Carcavelos provém de encepamentos com, pelo menos, 75% de castas galego dourado, boal, ratinho, arinto (brancas), periquita e preto martinho (tintas). Contudo, é sempre «branco», uma vez que as variedades tintas são processadas em bica aberta, para as películas não tingirem o mosto. Mas, a EAN tenciona realizar uma experiência de produção de tinto. Tal como acontece com o Vinho do Porto corrente (ruby e tawny), é comum o Carcavelos ser o lote de diferentes anos.
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O francês de Sintra
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Quando Dom afonso III fez a doação do reguengo de Colares impôs o cultivo da vinha, tendo sido plantadas vides vindas de França. Os primeiros registos de exportação datam do século XIV, mas a fama só aconteceu no século XIX com a filoxera, que lhe abriu o mercado. O decreto de reconhecimento aconteceu em 1908. Este é um vinho exigente que precisa de tempo e de sabedoria para ser bebido e sobre o qual disseram ser o mais francês dos vinhos portugueses.
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A filoxera dizimou as vinhas europeias, fazendo com que as vides rejeitassem as próprias raízes. O pulgão, do tamanho da cabeça de um alfinete, parou nas areias e os vinhedos de Colares estão em areais. Aqui as vinhas estão no chamado pé-franco e não, como é comum, enxertadas em vides americanas.
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Nenhum tinto pode conter menos de 80% da casta ramisco (tinto) ou da malvasia (branco) e tem, forçosamente, de vir de cepas enterradas na areia. O tinto exige envelhecimento, sob pena de estar taninoso, adtringente e áspero. O tempo torna-o delicado, suave e ameno como o clima de Colares.
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A região de abrange apenas 22 hectares. A pressão imobiliária e o abandono da agricultura ditaram a decadência. Em 1999, a então presidente da Câmara de Sintra, Edite Estrela, solicitou a Carlos Monjardino que ajudasse a salvar o Colares. A Sociedade das Vinhas da Areia, detida pela Fundação Oriente, tem hoje 8,5 hectares de areia produtiva, estando previsto para o segundo semestre deste ano o lançamento do seu primeiro vinho, com a marca histórica MJC Colares.
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O enólogo Paolo Fiuza Nigra, conhecido pelas suas criações no Ribatejo e Alentejo, é o alquimista de serviço e a sua missão é a de conseguir um vinho com uma qualidade idêntica há de outrora e, ao mesmo tempo, conseguir que se beba com poucos anos de guarda. O enólogo optou por só usar uvas ramisco, por não compensar fazer outros bagos enfrentar um temperamento tão forte quanto o da casta maior.
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A vida moderna não se compadece com a necessidade de repouso do ramisco, tradicionalmente bebido entre os 20 e os 40 anos. O MJC Colares que vai surgir deverá estar bem bebível com quatro anos e promete de longevidade, adianta Paolo Nigra.
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Por enquanto, esta empresa apenas vai produzir tinto, embora preveja para o lançamento de branco. A demora na chegada ao mercado deveu-se a problemas com a disponibilidade de ramisco e com a não satisfação com a qualidade obtida.
João Goulão chefiou as operações no campo e uma revolução na região, pois as vides em vez de rastejarem pela areia (com os cachos tradicionalmente levantados por pauzinhos para que não assem) estão levantadas e conhecem, pela primeira vez, a rega.
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Uma brisa fresca engarrafada
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O Vinho de Bucelas é perfumado e seco. É vivo e fresco e com uma acidez bem equilibrada e agradável. Num país em que o vinho é sinónimo de tinto, Bucelas só o branco tem direito a denominação. Aqui manda o arinto.
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O marquês de Pombal protegeu estas vinhas, pelo que no seu caminho para o exílio pode pernoitar na Quinta da Romeira sem sobressalto, enquanto noutras terras sentia a sua carruagem ser apedrejada.
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O reconhecimento do Bucelas só aconteceu em 1911. Mas já antes tinha destaque. As tropas inglesas que combateram a forças napoleónicas gostaram da sua frescura e levaram-no de volta a casa. O duque de Wellington te-lo-á dado a provar ao futuro rei Jorge III, que muito o apreciou.
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A fortuna do célebre Camilo Alves foi feita com vinho, muito dele de Bucelas. Ainda hoje as Caves Velhas, criadas por esse magnata, produzem bem e bastante nestas terras de Loures.
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O mais pequeno produtor de Bucelas também descende de Camilo Alves e tem inovado por estas bandas. António Paneiro Pinto é responsável pela marca Chão do Prado, que estreou na região o espumante e colheita tardia. Exótico por terras portuguesas, o colheita tardia faz-se com as uvas já quase em passa e com o fungo botritys (podridão nobre), que lhe dá um travo especial muito delicado. O Chão do Prado tem também branco estagiado em madeira, que pode bater-se com comidas mais pesadas e esperar mais tempo para ser bebido, embora perdendo frescura.
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Entre o Tejo e o Sado
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A região vinícola de Terras do Sado abrange todo o distrito de Setúbal, desde a vista do Tejo até aos seus quatro concelhos alentejanos. Nas terras da margem direita do Sado encontram-se as denominações Setúbal e Palmela.
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A produção de vinho na Península de Setúbal remonta ao tempo em que os fenícios escalavam a costa portuguesa, havendo mesmo quem diga que para ali levaram castas da Ásia menor. Outros impulsos foram dados pelos colonizadores romanos e árabes. Dom Dinis também fomentou a vinha nestas landas, mas a delimitação só aconteceu em 1907.
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José Maria da Fonseca é o nome maior dos viticultores sadinos, embora tenha nascido em Nelas. A empresa que criou com o seu nome, em 1834, ainda hoje existe e é uma produtora de grande dimensão. Hexagon é o novo marco da empresa, um topo de gama classificado como vinho regional Terras do Sado, mas o emblema da casa talvez seja o Periquita, que, com mais de 150 anos, é a marca vínica mais antiga do país.
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José Maria da Fonseca foi também o responsável pela introdução da casta simbólica da região: a castelão francês, que trouxe do ribatejo e que nestas paragens adoptou o nome de periquita, por ter sido plantada na Quinta da Cova da Periquita.
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A Quinta da Bacalhôa – Vinhos de Portugal é a outra referência da região. A empresa mudou em Junho de denominação (a antiga JP Vinhos), passando a adoptar a propriedade do seu actual patrão, o empresário Joe Berardo. Quinta da bacalhoa, Palácio da Bacalhoa e Má Partilha são alguns dos mais notáveis citados vinhos desta casa.
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O Setúbal é um vinho generoso, muito fino e elegante. O mais conhecido é o branco, que se deve beber fresco. A sua cor vai do topázio-claro ao âmbar, tem aroma de flores e na boca evoca mel, um pouco de laranja e tâmaras. O tinto é menos conhecido. A prova surpreende, por ultrapassar a promessa deixada pelo aroma.
A sua denominação implica que, pelo menos, 67% dos encepamentos sejam de moscatel de Alexandria (branco) ou de moscatel roxo (tinto). Para ostentar a designação de Moscatel de Setúbal a percentagem mínima destas castas sobe para 85%.
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Quando se pensa em moscatel o topónimo Setúbal não é o único a surgir na mente, pois no Douro fazem-se também vinhos com idêntica menção. Além das diferenças do clima e do solo, a casta branca com que se faz o Moscatel de Setúbal não é a mesma dos seus homónimos do Douro (Alijó e Favaios), onde reina s moscatel galego.
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A fama dos vinhos de Setúbal é antiga e sabe-se que em 1675 foram exportadas 350 barricas. Do século XVI há registos de um banquete em que foi servido o «precioso Setúbal» e dois séculos depois era consumido com alegria na corte russa.
O Setúbal é um vinho fortificado. A fermentação é parada com a adição de aguardente vínica. As peles das uvas permanecem na cuba durante seis meses, o que confere maior complexidade. A Bacalhôa utiliza barricas de madeira usada para envelhecer os seus moscatéis, explica Rita Cabral de Almeida, responsável pelo marketing. Os mais correntes passam três anos em barrica, mas são também produzidos com oito e 20 anos.
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Os vinhos de Palmela são de pasto e menos célebres que os vizinhos de Setúbal. A denominação é recente e resulta de um reajustamento que levou também à extinção da denominação Arrábida. No entanto, a vinha tem sido cultivada no concelho desde há séculos, como se prova na referência da carta de foral, passada em 1185 por Dom Afonso Henriques.
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Em relação a Setúbal, os solos de Palmela são mais pobres, pois são arenosos. O cultivo da vinha nestas areias terá acontecido no século XIX, devido à filoxera. Os vinhos tintos são encorpados, de cor intensa e com aroma a frutos secos e especiarias. O tempo torna-os mais macios. Os brancos não são uma especialidade.
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