digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

domingo, abril 09, 2006

Quase mudos

Não temos quase nada para dizer um ao outro. Tu saiste tarde do trabalho mal pago e foste para o teu biscate que te ajuda a pagar a espelunca. Eu fiz horas para te ver. Estive só a fumar cigarros atrás de cigarros. Não gostas que fume e eu não gosto que trabalhes até tão tarde. Dizes que é para pagar a casa, respondo-te que o buraco não vale o preço que pagas. Justificas-te que não tens dinheiro para mais. Argumento que poderíamos viver juntos. Silencias-te.
Acendo outro cigarro, enfadas-te e pedes mais um copo. Não gosto quando bebes. Suspiro, bufo e mando uma fumaça espessa e larga para que te atinja. Tosses e resmungas. Não dizes nada, não queres discutir. Já tanto me faz, estou farto do silêncio e de te ir buscar todas as noites ao antro onde te exploram por meia dúzia de patacos para acabar a noite na mesma leitaria febrilmente iluminada onde nada acontece. Estou farto e tu estás farta. Não sabes o que fazer à vida e não sabes o que fazer comigo.
Ao domingo vamos para a cama e é bom. À sexta estás cansada. Ao sábado queres passear e estás cansada. Ao domingo não tens argumentos para estares cansada. Às vezes tens coisas de mulher e não podes. Às vezes tens coisas de mulher e satisfazes-me. Às vezes sou carinhoso. Ressono sempre que durmo contigo, mas nunca te oiço. Já deixaste de fingir que não reparas que deixei de ouvir. Já não te chateias.
Acabamos todas as noites na mesma leitaria de luzes intensas onde vão sempre as mesmas pessoas atarefadas e com fome, onde de vez em quando entra alguém desconhecido por acaso. Nunca acontece nada, nunca aparecem amigos. Não tenho amigos. Não tens amigos. Não temos amigos. Eu trabalho e espero que acabes de trabalhar para te dar um beijo à pressa antes de ires para o teu biscate, depois espero que saias e tomo uma cerveja ou um copo de leite enquanto tu bebes um copo de leite ou uma cerveja ou um brandy. Eu fumo e tu detestas que fume. Detesto que bebas. Por mim não tinhas o biscate e vivia contigo. Por ti vivias sempre sozinha e ias às compras com amigas que não tens.
Não sei o que faça contigo. Não sabes o que fazer comigo. Está silêncio de vozes na leitaria. Só o ruído das máquinas e das tarefas do empregado. Nem o cliente tuge a ler o jornal ou a mexer os olhos. Não sabemos o que fazer. A conversa está acabada. Estamos acabados e desconhecemos se gostamos um do outro ou se estamos apenas habituados à vida. Não queremos discutir e pensamos nela neste silêncio de luz penetrante.

5 comentários:

Anónimo disse...

A tarde revelou-se produtiva... para ti, pelo menos... os dois textos de hoje são simplesmente brilhantes. boa! e força! bjs
cíntia

Ana Fonseca disse...

Brilhantes palavras! Descobri hoje este espaço e vou tornar-me, sem dúvida, assídua! A vida é que, às vezes, não tem o brilho que devia! E o hábito e os vícios gastam os Homens e o que os Homens sentem! Que fazer para contornar o hábito que se apodera da paixão?

João Barbosa disse...

dar ar fresco à paixão e ouvidos ao que outro diz para poder ceder... pode ser que resulte. de toda a forma a paixão passa, o problema é quando ela não se transforma em amor ou não aceitamos essa transformação.

Anónimo disse...

E quando a paixão passa, se transforma em amor e ainda assim é um problema?
Será que é falta de aceitação, João, ou pura e simples neurose? (ou ambas!)

João Barbosa disse...

Não sei, mas há quem não aceite a transformação da paixão em amor. Há quem só queira a paixão. Eu não! Eu gosto do amor... Da paixão já gostei, já não quero mais.