digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, abril 20, 2006

O raio X

Como será a cabeça do poeta triste? Mais cheia de poemas. Com mais letras e algumas vírgulas e pontos. Em que parte do cérebro se guardam as palavras? Em que parte as guarda, um poeta triste? Queria abrir a cabeça a um poeta triste para saber o cheiro dos seus textos antes de estarem prontos. Não seria menos curiosidade científica do que a pesquisa com neutrões ou enzimas.
Do que se faz um poema? Quantas moléculas o formam e que proteínas têm por missão poemar? Queria abrir a cabeça dum poeta triste, mas só a dum poeta triste, porque o mundo não precisa de tristeza real, só precisa dela poemada. O mundo está cheio de tristeza, faz-se dela. O mundo precisa de poetas alegres e tristes. Se a operação corresse mal, tão grande mal viria ao mundo se se perdesse um poeta feliz. Mas um poeta triste é mais autêntico, tem mais verdade do mundo.
Depois de radiografar e abrir a cabeça dum poeta triste iria dissecar-lhe as mãos, para ver como se movem os tendões e os músculos quando escreve. Um poeta triste pode escrever com a esquerda ou com a direita... tal como um poeta feliz... tal como qualquer um... até como os tolos. Mas as mãos dum poeta, sobretudo dum poeta triste, são diferentes das outras, porque escrevem coisas diferentes, porque a sua cabeça ordena-lhes coisas diferentes.
A minha curiosidade não é menos científica. Queria ver por dentro a massa dum poeta triste e se conseguisse provar-lhe o sabor. Sem dar-lhe açúcar. Tenho a certeza que é mais doce e feliz do que as palavras tristes que manda a boca dizer e as mãos escrever. Quero ver a cabeça dum poeta triste.

1 comentário:

Anónimo disse...

É extraordinário o que te passa pela cabeça num só dia, João querido. E tens uma forma de dizer as coisas que é inconfundível. Nunca me esquecerei das gargalhadas (basta pensar nisso para começar a rir) que me fizeste dar (e a vergonha que passei nas escadas para o refeitório pq fazia eco) com a tua anotação num desenho sobre não terem sido maltratados animais. Não sei porquê, lembrei-me disto. Nunca vou esquecer aquele momento e guardo o desenho religiosamente :) Beijo grande.