digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, março 27, 2006

Sereia e Estrela


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Este ano não fui à praia, mas conheço o sabor do mar e o seu cheiro. Sei da textura das algas e das brincadeiras dos limos das rochas a quererem derrubar tudo o quanto neles põe o pé. Só de ver sei se a areia quer que nela me deite ou se a evite. Tudo isto aprendi durante os anos em que uma sereia viveu enamorada por mim.
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A minha história com a Sereia é longa e profunda, por isso pode contar-se durante muito tempo ou resumir-se a breves palavras. Não sei se a querem conhecer. Talvez já a tenham ouvido a algum trovador ou lido contos semelhantes. Devo dizer aos descrentes para abandonarem a leitura, não os quero cá. Só digo verdades: as Sereias existem mesmo e, ao contrário do que se pensa, não vivem só no mar. Vou contar a minha verdade verdadinha, tão pura e alva que desejo um amor maior a quem de mim duvidar ou chamar mentiroso.
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Julgo ter sido Inverno quando conheci a Sereia. Ela não veio do mar, mas do céu. Caiu lá de cima e por isso chamei-lhe sempre Menina-Estrela. Tinha o sorriso mais bonito que vira e quando se soltava tinha o riso mais divertido. A sua pele era macia e suavemente perfumada. Cheirava bem. Cheirava a pele. Cheirava a pele de menina. Os olhos eram escuros e profundos, como o mar abissal ou como as noites de Lua Nova. Os cabelos ondulados como o oceano, mas ela esticava-o para que se parecessem com o céu. Era bela e discreta, como devem ser todas as mulheres belas! Quando a conheci não me disse logo que era uma sereia. Ela tinha também umas asas, como se fora um anjo, e um rosto maroto, a fingir-se malvada. As asas não lhe serviam para voar, pois para isso tinha a imaginação, a alma e a bondade. As asas serviam para dizer quem era, de onde vinha e para abraçar e consolar.
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Eu cria que vinha de muito longe e sabia, porque assistira, que do alto. Desconfiava que da terra do Pôr-do-Sol. Fiz-lhe mais de mil juras de amor e alguns poemas, outras tantas promessas. Jurei-lhe que a levaria ao Pôr-do-Sol, mas foi ela quem um dia me pegou na mão e me acompanhou a essa landa. Fizemos um caminho de campos de lavanda e girassóis muito amarelos, passámos sob arco-iris muito perfeitos e diante de nossos olhos passaram animais e vidas que eram maravilhas de se verem. Juntos derrotámos dragões e voámos no dorso da sorte.
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Do paraíso saímos para conhecer o mundo e também cruzámos o Inferno. Fizémos tudo juntos e até partilhámos segredos. Uma vez a Menina-Estrela disse-me que era uma Sereia. Eu fingi que não sabia, mas já tinha lido que quem beijava assim eram esses seres metade mulher e metade peixe, e que com voz melodiosa seduzem quem as ouve. E que voz tinha ela! Não conheço nenhuma outra como a dela, que se sussurada descongela um icebergue.
Um dia houve em que a Sereia teve de seguir o seu destino e mergulhar no mar oceano. Disse-me que não iria voltar, mas estaria sempre comigo. Naquela promessa de amizade havia uma despedida dolorosa e desenganos, que são enganos que enganam mais de uma vez. Vieram tempestades no coração e na alma e apedregei as vagas que davam à costa. Ela contara-me tanta coisa do mar e eu não percebi que era a sua casa. O bater das pedras acertaram-lhe no dorso. Soube mais tarde, pela boca do próprio Neptuno no seu trono, que sempre assim acontece quando gostamos de alguém.
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O tempo passou e as feridas foram sarando. Fui aparecendo menos vezes na praia para atirar pedras à água e por isso deixei de magoar a Menina-Estrela que tinha asas e é uma Sereia. Um dia contaram-me que foi vista no areal. Talvez tivesse vindo à minha procura ou talvez só para matar saudades do tempo que passou em terra. Espero um dia ir a um qualquer pontão mandar beijos ao mar, pode ser que lhe cheguem ou até que a aviste. Se a vir aceno-lhe, mesmo que não saiba o que lhe dizer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Um beijo salgado e um abraço de anjo. Tudo passa...
O tempo cura muitas mágoas e mostra-nos outros caminhos. Descobrimos o que temos de deixar para trás, quando queremos prosseguir a caminhada.
Até sempre!