digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, março 27, 2015

Sangue-azul

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Disse-me:
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– Sangue azul.
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– Duas palavras bonitas… uma é coisa e outra é meta-coisa.
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– O que pensas disso?
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– É como a rosa-azul ou a tulipa-negra.
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– Como?
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– Um desejo. Seria como o Graal, se o Graal não tivesse sido criado por Chrétien de Troyes.
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– Não percebo, nem percebo a diferença.
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– A partir do momento em que alguém escreve, é verdade. Rosa-azul e tulipa-negra não existem, ninguém as encontrou – que eu saiba, literariamente ou artisticamente falando. O Graal foi concebido para ser desejo, mas foi encontrado por Sir Galahad, o cavaleiro puro, filho de Sir Lancelote e da Rainha Élaine, e vislumbrado por outros, Sir Bors e Sir Percival. E os Doze Apóstolos, e José de Arimateia e sei lá…
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– Quanto ao sangue azul?
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– Sangue azul não existe… pelo menos nos humanos e nos animais que sei. O que existe é sangue-azul… com hífen.
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– Hã?!
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– O sangue azul é o das veias que se vêem sob a pele das donzelas, damas e realeza. Alvas, por não laborarem sob o Sol que tinge. É um privilégio.
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– E o sangue-azul, com hífen?...
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– O sangue-azul é o sinal do mérito, da nobreza de carácter, da bondade, do sentido de justiça e da compaixão, da misericórdia e compreensão, da piedade, da solidariedade, do amor verdadeiro – que é o amor da verdade e pela verdade –, pela amizade sincera, pela sinceridade.
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– O sangue-azul é uma virtude?
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– É a virtude do merecimento. É uma mercê e não uma graça.
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– Sinal de santidade.
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– Se quiseres, mas da santidade verdadeira e não a atestada por um homem ou grupo, decretada e celebrada com dia de instituição.
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– Santidade concedida por Deus?
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– Não! Santidade por merecimento, em obediência a Deus, amor e suas facetas. A Deus de amor e de inteligência suprema.
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– Quem decide? Alguém…
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– Desculpa interromper-te… Nenhum homem a pode decidir, porque nenhum homem é dono da palavra de Deus.
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– Acabaram-se as religiões.
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– As religiões dão jeito, são instrumentos. O que conta é o sangue-azul. Sei – penso que sei, tem lógica para mim – que Deus ama o bom de pensamento e bom de gesto e não o crente de verbo e escuridão de carácter.
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– Anjos, santos!... Profetas?!
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– A angelitude não é uma espécie criada por Deus, mas pessoas de sangue-azul, como os santos; santos pela obra. Já os profetas… há de tudo.
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– … Os profetas falam em nome de Deus…
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– Quem lhes concedeu tal direito ou, sobretudo, esse dever? Não sabes nem saberás. O que lês quando lês os profetas?... Lê a mensagem e atenta ao verbo, o que deles se colhe.
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– Palavras atribuídas a Deus… supostamente.
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– Palavras, palavras… Repara, por vezes é tão óbvio que nem reparamos. Deus do Primeiro Testamento é castigador, um velho irado, justicialista, egoísta… assim o viam os profetas que o inventaram. Sei que se cometeram crimes em seu nome, mas também quem foi misericordioso.
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– …
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– Vê a mensagem de Jesus. É de amor. O que fizeram dela? Homens, alguns supostamente santos – de carta e documentação outorgadas por outro homem, por um homem político. Queimou-se gente, massacrou-se… até se criou o verbo judiar, sinónimo das malfeitorias que alguém sofre às mãos de outrém, uma analogia às brutalidades feitas aos judeus, pelos porta-vozes de Jesus e de Deus.
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– … Hummmmm…
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– Vê o Corão… Lê e atenta ao ódio que nele está escrito. Depois do amor de Deus trazido pela voz de Cristo, regressa um ser totalitário, vingativo, faccioso e intolerante, mesquinho. O Corão é um retrocesso da humanidade. No entanto, há – certamente muitos, muitos, muitos – bons homens, de boas acções e verdadeiro amor, que são muçulmanos.
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– O amor. É a fé verdadeira?
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– Não sei. Não sei. Provavelmente, sim. Não quero afirmar o que não sei nem tenho mandato para dizer… Acho que não pensei nisso completamente, sistematicamente… acho que sim, que a fé verdadeira, a que agrada a Deus, é de amor.
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– Só referiste exemplos das religiões do livro. E as outras?
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– Igual. A santidade – que já referi – não esperou por Cristo – nem por Moisés ou Maomé, admitindo como benignas as suas heranças escritas.
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­– Budistas, hinduístas…
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– Todo o homem bom.
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– Deus criou bons e maus.
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– Deus criou-nos, simples e imortais. Da ingenuidade até à angelitude, por caminhos de dificuldades, de provas, de expiações – acredito –, até ao conhecimento, até ao amor. O amor que liberta e nos desliga do materialismo e nos faz viver em espírito, no sublime.
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– Descrentes… ateus, agnósticos, cépticos de toda a ordem…
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– Deus ama todos os seus filhos, mesmo aqueles que não o vêem, sentem ou reconhecem como pai. Sei – na minha lógica, na que me faz sentido – que Deus os prefere assim nessa verdade e de sangue-azul aos beatos dos credos na boca, das ladainhas, dos auto-elogios de virtudes…
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– O Diabo?
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– O Diabo não existe. O facto de existir o Diabo destruiria Deus. Quem acredita no Diabo não acredita – ainda que genuinamente e sem dolo – em Deus. Sendo Deus perfeito, causa primária de tudo, inteligência suprema, amor infinito… como o Diabo? Seu filho rebelde? Com tanta força e poder? Não pode. Não pode, de todo, existir.
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– E a maldade? A maldade existe.
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– As maldades são as nossas imperfeições, acidentes do caminho para a felicidade. O Diabo está em nós – o egoísmo, a cobiça, a inveja, o ódio…
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– Como deixamos de ser assim?
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– Normalmente… tentativa e erro. Faço e aleijo, crio inimizade, zanga… aleijando-me, quando os outros me respondem no mesmo modo como lhes falei ou fiz... O mal que me faz mal é o mal que faço.
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– Perdoai aos outros, como nos perdoamos a quem nos tem ofendido?
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– É! Quando percebemos que existe uma regra de causa e efeito e que agindo duma forma nos saímos mal, acabamos por corrigir o passo. Vê a força de Ghandi, de Martin Luther King, de Nelson Mandela… certamente homens imperfeitos, mas que com a paz venceram injustiças.
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– Nem todos temos essa fibra, estrutura moral, carácter decidido e perseverança.
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– Se vivêssemos uma só vez, sim. Deus não seria justo e bom se só nos desse uma vez para viver – na carne. Repara no óbvio: o rico, protegido e ocioso pôde estudar e de barriga cheia articulou palavras doces; o pobre, nascido nos esgotos, no seio da criminalidade, sobrevivendo como pode, socorrendo-se de toda a maneira… Justiça? A morte não existe, é uma etapa. O corpo – mesmo biologicamente sempre em renovação – decompõem-se, elimina-se, mas não o espírito. Somos filhos de Deus, da sua essência – espírito. Vimos e vamos e vimos e vamos e vimos e vamos e vimos e vamos… erramos, corrigimos, provamos, andamos, erramos, corrigimos, provamos, andamos… Ora ricos, ora pobres, ora com uma doença, sempre com uma tarefa e exames para fazer. Aprovados numas disciplinas e reprovados noutras… Numa outra vez, tentativa… erro… e outra vez e outra vez e outra vez…
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– Até ao sangue-azul.
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– Até ao sangue-azul.
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