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Disse-me:
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– Sangue azul.
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– Duas palavras bonitas… uma é coisa e outra é meta-coisa.
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– O que pensas disso?
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– É como a rosa-azul ou a tulipa-negra.
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– Como?
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– Um desejo. Seria como o Graal, se o Graal não tivesse sido
criado por Chrétien de Troyes.
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– Não percebo, nem percebo a diferença.
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– A partir do momento em que alguém escreve, é verdade.
Rosa-azul e tulipa-negra não existem, ninguém as encontrou – que eu saiba,
literariamente ou artisticamente falando. O Graal foi concebido para ser
desejo, mas foi encontrado por Sir Galahad, o cavaleiro puro, filho de Sir
Lancelote e da Rainha Élaine, e vislumbrado por outros, Sir Bors e Sir Percival.
E os Doze Apóstolos, e José de Arimateia e sei lá…
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– Quanto ao sangue azul?
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– Sangue azul não existe… pelo menos nos humanos e nos
animais que sei. O que existe é sangue-azul… com hífen.
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– Hã?!
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– O sangue azul é o das veias que se vêem sob a pele das
donzelas, damas e realeza. Alvas, por não laborarem sob o Sol que tinge. É um
privilégio.
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– E o sangue-azul, com hífen?...
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– O sangue-azul é o sinal do mérito, da nobreza de carácter,
da bondade, do sentido de justiça e da compaixão, da misericórdia e
compreensão, da piedade, da solidariedade, do amor verdadeiro – que é o amor da
verdade e pela verdade –, pela amizade sincera, pela sinceridade.
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– O sangue-azul é uma virtude?
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– É a virtude do merecimento. É uma mercê e não uma graça.
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– Sinal de santidade.
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– Se quiseres, mas da santidade verdadeira e não a atestada
por um homem ou grupo, decretada e celebrada com dia de instituição.
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– Santidade concedida por Deus?
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– Não! Santidade por merecimento, em obediência a Deus, amor
e suas facetas. A Deus de amor e de inteligência suprema.
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– Quem decide? Alguém…
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– Desculpa interromper-te… Nenhum homem a pode decidir,
porque nenhum homem é dono da palavra de Deus.
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– Acabaram-se as religiões.
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– As religiões dão jeito, são instrumentos. O que conta é o
sangue-azul. Sei – penso que sei, tem lógica para mim – que Deus ama o bom de
pensamento e bom de gesto e não o crente de verbo e escuridão de carácter.
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– Anjos, santos!... Profetas?!
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– A angelitude não é uma espécie criada por Deus, mas pessoas
de sangue-azul, como os santos; santos pela obra. Já os profetas… há de tudo.
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– … Os profetas falam em nome de Deus…
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– Quem lhes concedeu tal direito ou, sobretudo, esse dever?
Não sabes nem saberás. O que lês quando lês os profetas?... Lê a mensagem e
atenta ao verbo, o que deles se colhe.
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– Palavras atribuídas a Deus… supostamente.
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– Palavras, palavras… Repara, por vezes é tão óbvio que nem
reparamos. Deus do Primeiro Testamento é castigador, um velho irado,
justicialista, egoísta… assim o viam os profetas que o inventaram. Sei que se
cometeram crimes em seu nome, mas também quem foi misericordioso.
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– …
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– Vê a mensagem de Jesus. É de amor. O que fizeram dela?
Homens, alguns supostamente santos – de carta e documentação outorgadas por
outro homem, por um homem político. Queimou-se gente, massacrou-se… até se
criou o verbo judiar, sinónimo das malfeitorias que alguém sofre às mãos de
outrém, uma analogia às brutalidades feitas aos judeus, pelos porta-vozes de Jesus
e de Deus.
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– … Hummmmm…
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– Vê o Corão… Lê e atenta ao ódio que nele está escrito.
Depois do amor de Deus trazido pela voz de Cristo, regressa um ser totalitário,
vingativo, faccioso e intolerante, mesquinho. O Corão é um retrocesso da
humanidade. No entanto, há – certamente muitos, muitos, muitos – bons homens,
de boas acções e verdadeiro amor, que são muçulmanos.
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– O amor. É a fé verdadeira?
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– Não sei. Não sei. Provavelmente, sim. Não quero afirmar o
que não sei nem tenho mandato para dizer… Acho que não pensei nisso
completamente, sistematicamente… acho que sim, que a fé verdadeira, a que
agrada a Deus, é de amor.
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– Só referiste exemplos das religiões do livro. E as outras?
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– Igual. A santidade – que já referi – não esperou por
Cristo – nem por Moisés ou Maomé, admitindo como benignas as suas heranças
escritas.
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– Budistas, hinduístas…
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– Todo o homem bom.
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– Deus criou bons e maus.
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– Deus criou-nos, simples e imortais. Da ingenuidade até à
angelitude, por caminhos de dificuldades, de provas, de expiações – acredito –,
até ao conhecimento, até ao amor. O amor que liberta e nos desliga do
materialismo e nos faz viver em espírito, no sublime.
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– Descrentes… ateus, agnósticos, cépticos de toda a ordem…
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– Deus ama todos os seus filhos, mesmo aqueles que não o
vêem, sentem ou reconhecem como pai. Sei – na minha lógica, na que me faz
sentido – que Deus os prefere assim nessa verdade e de sangue-azul aos beatos
dos credos na boca, das ladainhas, dos auto-elogios de virtudes…
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– O Diabo?
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– O Diabo não existe. O facto de existir o Diabo destruiria
Deus. Quem acredita no Diabo não acredita – ainda que genuinamente e sem dolo –
em Deus. Sendo Deus perfeito, causa primária de tudo, inteligência suprema, amor
infinito… como o Diabo? Seu filho rebelde? Com tanta força e poder? Não pode.
Não pode, de todo, existir.
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– E a maldade? A maldade existe.
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– As maldades são as nossas imperfeições, acidentes do
caminho para a felicidade. O Diabo está em nós – o egoísmo, a cobiça, a inveja,
o ódio…
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– Como deixamos de ser assim?
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– Normalmente… tentativa e erro. Faço e aleijo, crio
inimizade, zanga… aleijando-me, quando os outros me respondem no mesmo modo
como lhes falei ou fiz... O mal que me faz mal é o mal que faço.
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– Perdoai aos outros, como nos perdoamos a quem nos tem
ofendido?
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– É! Quando percebemos que existe uma regra de causa e
efeito e que agindo duma forma nos saímos mal, acabamos por corrigir o passo.
Vê a força de Ghandi, de Martin Luther King, de Nelson Mandela… certamente
homens imperfeitos, mas que com a paz venceram injustiças.
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– Nem todos temos essa fibra, estrutura moral, carácter
decidido e perseverança.
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– Se vivêssemos uma só vez, sim. Deus não seria justo e bom
se só nos desse uma vez para viver – na carne. Repara no óbvio: o rico,
protegido e ocioso pôde estudar e de barriga cheia articulou palavras doces; o
pobre, nascido nos esgotos, no seio da criminalidade, sobrevivendo como pode,
socorrendo-se de toda a maneira… Justiça? A morte não existe, é uma etapa. O
corpo – mesmo biologicamente sempre em renovação – decompõem-se, elimina-se,
mas não o espírito. Somos filhos de Deus, da sua essência – espírito. Vimos e
vamos e vimos e vamos e vimos e vamos e vimos e vamos… erramos, corrigimos,
provamos, andamos, erramos, corrigimos, provamos, andamos… Ora ricos, ora
pobres, ora com uma doença, sempre com uma tarefa e exames para fazer.
Aprovados numas disciplinas e reprovados noutras… Numa outra vez, tentativa…
erro… e outra vez e outra vez e outra vez…
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– Até ao sangue-azul.
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– Até ao sangue-azul.
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