digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, março 27, 2015

O que penso do que sinto

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Tenho o frio que senti no meu pai quando o toquei cadáver. Não o reconheci naquele objecto. Este frio é só este frio, nada mais do que o frio do anoitecer numa rua ventosa.
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Tinha um frio cálido, uma contradição. Um saco cor-de-laranja e repousando de olhos e boca. Lá dentro estagnado, sangue quieto. Parado, podem dizer sereno se vos ameniza ou consola.
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Disse-me, antes da médica da emergência, no compreensível raspão, informar – ali na rua, entre carros, no sítio.
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Veio e disse-me da forma como dizia morte, com palavras reduzidas ao mínimo. O mesmo rosto como sempre a disse, a mesma que tenho quando digo morte; usando o mínimo de palavras
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Assim entendemos. Não há dúvidas. Disse-me:
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– Morri.
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Percebi, antes de o ver aproximar-se, de lhe sentir o toque espiritual, de o encarar e ouvir.
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Cheguei e na rua a médica protegendo-se foi lacónica e essencial, usando mais palavras do que ele diria, do que digo.
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O polícia que zelou pelo corpo soprou o vento entristecido e quieto da sala vazia de som, secando as lágrimas da mãe, suspensas à minha chegada. Ali estivemos à espera da próxima burocracia e da outra seguinte.
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O meu pai estava feliz. Antes de ter saudades. Carinhoso, doce como o nunca vi. Acalmou a minha mãe, abraçando-a, ficando de pé a seu lado, com o braço sobre as costas da cadeira e a mão no ombro, ouvindo-nos.
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Estava feliz, o meu pai. Acompanhou-a até que lhe disseram para ir. Esteve por ela e deixou-a ali, junto à terra barrenta, e também ao corpo. Porque o tempo. 
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Saudades vieram e foram-se e virão.
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Deixou o rosto sereno para quem o quis assim entender. Olhei o rosto como corpo, nem sereno, só vazio.
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Olhei-o como alguém que se despede à janela do comboio. Deixei-o com a minha mãe, que não o viu.
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A morte não tem segredo. Faz parte da vida, como gatinhar e aprender a falar.
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É mais difícil de explicar que é apenas do corpo.
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Disse sempre morte com duas palavras e nunca o vi doloroso. Digo de forma mínima e não me vi doloroso.
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Não é frieza nem falta de palavras. São as palavras todas e a certeza mentalmente orgânica de além-fim.
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Não sei se somos – ele e eu – normais, sentindo a normalidade da morte. Não por frieza, mas porque.
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De todas as coisas só não entendi a cor-de-laranja e o frio cálido da pele.

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