digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quinta-feira, outubro 28, 2021

Lanço ao mundo «A esperança é mesmo o farol»

 


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No fim vou abrir as portadas, revelando a luz que me ofereceram, amigos e familiares, obviamente amigos, porque o sangue só importa na bondade e amizade. Para já dedico-me ao corridinho das notícias e das explicações.

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Escrevo este texto hoje, terça-feira, porque sei que não conseguirei fazê-lo amanhã e, muito menos, na quinta-feira. Estou a pouco mais de quarenta e oito horas do foguetão estalar a minha barreira do som.

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Este vinte e oito de Outubro será um dos dias mais intensos da minha vida. Assim, à primeira vista – a pouca distância temporal – será tão pleno de inquietude quanto o do meu casamento.

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É mentira, mais do que um engano. A felicidade da melhoria da saúde esquece-me do horror e do terror que passei.

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Se nesse dia ri, agora irei certamente chorar.

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Esta ansiedade é boa.

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É bom sentir a distância de negrum. Ainda angustiante por a saber frágil.

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Parecendo a desastrada letra – não que atinge o grau de mau poema – dum fado de espetar facas nas pedras, não há como as deixar sair, não vejo alternativa:

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Hoje sou feliz quando estou triste. Uma felicidade que vem do mundo que não acaba. A depressão alimenta-se sozinha, sem ajuda. Porém, quando se lhe acrescenta uma contrariedade aceita-a com terrível amizade.

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Esperança? Sim, a esperança de ter esperança – como continuando a má escrita, desse fado, já avisada. O suicida não foge da vida, foge da dor – não sei quem o disse, mas é verdade. Não queria morrer, queria viver e tinha essa esperança de esperança. Noutros dias, vivendo no negrum quase pleno – se o fosse não escreveria este texto –, não queria morrer, queria desexistir.

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Facilitando, a depressão é um bicho. Existe em mim – sou também – e desloca-se. Cria-se, aumenta-se, devora e toma conta de tudo. É um órgão, fígado-estômago-pulmões-coração-cérebro. Que dor quando se levanta e se move… morde até ao querer, ao crer, à existência e chega à alma.

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Agora, melhor em notícias, explicações e contentamento:

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Pelos dias que têm vindo de dois mil e dezoito, uma das principais razões para a escritura do livro, centro-me na visão da ansiedade feliz, porque me faz feliz.

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Sei que sobreviverei ao dia em que vou enfrentar a multidão – estejam dezenas, centenas, milhares ou uma só pessoa na assistência. Será um alívio. Prevejo uma impaciência de dádiva e sofreguidão, e água saindo-me dos olhos, numa confusão de bem e mal e de nudez sem pudor.

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Na busca de exemplos antigos, tentando localizar alguma(s) fonte(s), tristemente descobri uma depressão muito precoce. Sabendo dalguns poemas intensos da juventude, procurei nas folhas que zelosamente guardo. Tristemente alcancei a ignorância dos dias adolescentes. Cheguei aos meus treze anos e parei. Desisti, por prudência, de coscuvilhar. Talvez nem importe saber se foi aos treze ou aos dez ou aos oito anos ou a qualquer data infantil. Essa qualquer data é demasiadamente poderosa para que a queira desafiar. Pousei os cadernos.

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É doloroso identificar uma pessoa que se adora como o mau-da-fita. Recupero algum fôlego quando relembro que sou a vítima.

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Este testemunho não é vingança – coisa estúpida seja pelo que for – nem sequer ajuste de contas. Somos plurais, imperfeitos e, em doses diferenciadas, egoístas e egocêntricos – mais condescendentes connosco do que tolerantes com os outros. O meu pai – verdadeiramente ignorando o mal que me causava – deu-me uma nascente de lágrimas.

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Se magoei o meu pai? Claro, assumo-o com vergonha e alívio por o reconhecer. Porém, este livro não é sobre os meus pecados, mas o do meu sofrer. Espero que não aconteça, mas se vier a suceder será outra pessoa a clarificar os danos que causei, gero e infligirei – espero não errar o suficiente para oferecer tristeza tão funda quanto a minha.

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Esperando não acontecer, tenho de estar preparado para isso. Serei resignado no que conseguir. Contudo, são contas que farão por mim.

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Depois ainda o decisivo empurrão, tiro invisível duma pistola escondida, dum merdinhas que crédulo tive como amigo. Dos antigos e pelos dias que se passam, não acredito na maldade escondida numa mentira. Nem na crueldade duma partida sem adeus. Sem uma palavra verdadeira, sem dizer nada. Vivo nessa ignorância, mas não importa.

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Presentemente, diante de mim estarão os que me têm salvado a vida, sofrendo pelos meus pedidos de ajuda e cuidando, eles mesmos, uns dos outros. Nem todos poderão aparecer na cerimónia, isso não importa, porque o que me auxiliaram – espero que não tenham de o fazer novamente – é tão maior do que parte duma tarde importante.

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Importantes são os dias anónimos.

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Não aceito este texto como autoajuda, independentemente das prateleiras das livrarias onde o coloquem. Não mostro magias, de promessas de alívio e de cura – ilusões perigosas. Não sou profissional que possa tratar o íntimo dos outros. Aconselho, padecentes e seus benqueridos amigos, somente procurar especialistas.

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Porém, se puder ajudar alguém – até mesmo uma só pessoa, ainda que não a conheça ou venha a conhecer – dá-me felicidade. Com a imodéstia da minha modéstia, ou vice-versa ou igualmente, sei que irá acontecer.

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Negrum – vocábulo que decidi criar – é o mais negro dos negrumes. Seja um buraco negro do universo, sorvente do ânimo e da luz, arrastando quem apenas quis generosamente auxiliar.

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Eu não disse «A esperança é mesmo o farol». Foi o meu editor, Francisco Camacho, que o descobriu quando leu as minhas palavras. Quando mo colocou diante dos olhos disse, quando os meus olhos o leram, soube que era o acertado.

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A facção do alinhamento técnico – a estrutura, a sistematização ou onde pôr a vírgula – foi muitíssimo fácil, ainda que a equipa da Leya me tenha sugerido modificações e colocado tópicos a abordar. O problema foi o mexer na intimidade.

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O Francisco Camacho e o seu colega Sebastião Veloso estiveram sempre à distância dum email ou dum telefonema. Concederam-me compreensão por alguma irritabilidade , o que foi vital num texto tão emocionalmente exigente.

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Ambos foram importantes na escrita deste texto de, sensivelmente, duzentas páginas – fica este úmero impreciso, pois não sei o nome do estilo de letra, da sua dimensão e espaçamento que tremendamente ditam a soma final das laudas e doutras partituras. Os dois lançaram desafios, corrigiram-me a mira, mostraram-me onde podia acrescentar.

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Ajudaram-me a escrever. «A esperança é mesmo o farol» não é um trabalho de grupo, mas seria (muito) certamente fraco sem as suas intervenções.

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Serei injusto se não referir o trabalho do revisor, Eurico Monchique, com quem me zanguei e divergi muitas vezes. Se houver enganos de português a responsabilidade será minha, porque assim o exigi. Não é retórica, porque fui exigente e frequentemente distante.

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Os revisores «servem» também para levar pancada dos autores. Assim aconteceu, porque tem de acontecer, pela autoridade, autoritarismo, ganância linguística, pensamento mágico do escritor.

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Espero que os meus golpes não tenham sido nefastos – talvez me esteja a conceder uma importância errónea –, não o tenham magoado. Se o coloco elogiado é porque lhe notei um respeito muito grande e empenhado na revisão destas duzentas páginas.

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Quando se afirma que os amigos são para as ocasiões difíceis não se está longe da verdade. Lembro ainda, e sublinho, que temos sobretudo conhecidos, que tantas vezes estão confundidos com amigos.

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Reconhecendo, afirmo, sem qualquer mentira, que sou um felizardo. Aqueles que cria serem amigos revelaram-se amigos. Alguns precaveram-se, compreensivelmente, da toxicidade que emanei, ainda assim não me abandonaram. Mais ainda: não só ninguém desertou, como apareceram pessoas, de quem não esperava nada, mostrando-me solidariedade e amizade. Numa só palavra: caridade – no melhor o significado. Tenho mais amigos do que julgava ter.

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Isto que acabei de letrar não é bem uma verdade, porque houve quem partisse de mim. Não foram pessoas a quem eu quisesse mal ou me quisessem mal. Foram namoradas – relações breves por minha responsabilidade. Findos esses envolvimentos naturalmente abalaram, não faz sentido, na maioria dos casos, permanecer numa proximidade, mesmo se o parceiro não gere veneno. Não é a mesma coisa que a deserção de cridas amizades.

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Precedendo a galáxia – sem disparate de comicidade de mau-gosto – devo a minha vida também às gatas Granita, Lioz, Paraquedas (sem hífen) e Valsa e aos cães Bobi (sem acento), Chuqui, Manga e Mel. Vidas são vidas e os animais não são brinquedos, têm-nos afecto e concedem-nos momentos doces e divertidos.

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Agora, sim, em delírio (tentado) cómico: o Serzinho Irritante, o Chico-Manel… o meu tão querido filho. Por felicidade, não sabe o que é o meu tormento, embora tenha pressentido o meu amargor e ouvido falar em depressão. É a pessoa que mais gosto no mundo.

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O que dizer agora?

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É esta a época de contar dos heróis. O que fizeram eles? Foram heróis. Há alguém maior do que um herói? Só os seres de luz sublime, que não causa sombra. Acima desses só Deus – afirmo-o porque creio – e chamemos-lhes santos, anjos, amigos espirituais…

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Em que consistiu o seu heroísmo das pessoas terrestes? Literalmente a salvação da minha vida! Desde coisas (aparentemente) pequeninas até à concessão de ombro e colo.

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Não há ordem justa dos enunciar, revelo-os por ordem alfabética:

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Ana Dias (minha mulher), professora Ana Marques Lito (minha psicanalista), Ana Suspiro, Isabel Colher, Carolina Palma, Maria Mestra Palma Tiago, Doutor Mário David (meu psiquiatra), Sérgio Carneiro e Vasco Rosendo.

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Fim. Espero que o meu fim seja – como se existisse fim – quando tiver que ser. Não quando eu pense que seja a minha finalidade.

 

sexta-feira, março 19, 2021

Granita – 24 de Março de 2004 – 19 de Março de 2021

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Há dias felizes, como os há tristes. Um dia, um amigo confidenciou-me a sua dor por perder o pai. Mais ou menos a citação, disse-lhe:

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– A morte não existe. Temos uma só vida e várias reencarnações. Neste lado do mundo, feito de matéria, somos espíritos num fato. É quando o despimos que falamos em morte. É apenas o corpo, não o espírito.

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Esse meu amigo – é sábio pensador e disponível para ouvir sem interromper – respondeu-me:

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– O facto de compreendermos a morte não nos tira a dor da sentir.

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Fiquei sem resposta.

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A verdade é que a morte não me causa medo nem receio nem dúvidas. Muito antes de crer na reencarnação, nunca me causou qualquer penar nem nostalgia. Não sendo frio, não a sinto como uma tragédia. Porém, como diz o meu amigo sábio, compreender não é sentir.

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Não chorei a minha avó materna, cujo desencarne foi o primeiro que constatei. Não chorei familiares. Não chorei amigos. Não chorei o meu pai. Não chorei a minha mãe. Não chorei o meu irmão. Não chorei a minha irmã.

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Fiquei triste? Não. Se me comovi? Claro que sim. Sinto saudades? Não. Lembro-me dos meus «mortos»? Sim. Gostava dos ter aqui e agora? Não. Faz parte da vida. Não há como fugir.

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A matéria recicla-se e nós, que somos espírito, vamos para um local onde não precisamos dum corpo. Regressaremos.

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Hoje, a Granita foi para um outro lugar.

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Morreu – digo assim para facilitar – a poucos dias de completar dezassete anos. Estava em sofrimento e até ao «fim» foi meiga.

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Por ignorância minha, tirei-a da mãe demasiadamente cedo – a ela e à mana Lioz, que feneceu em Novembro de 2015. Alimentei-as a biberão. Fui a mãe.

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A Granita era uma gata muitíssimo dócil que, por causa duma brincadeira parva dum amigo, se tornou menos sociável. Estranhos e menos estranhos habilitaram-se a uma patada ou mordidela quando a iam cumprimentar. Comigo, nunca! Sempre fui a sua adorada mãe. A Ana e o Miguel levaram anos até que ela os considerasse como familiares.

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Esperava-me à porta – na velhice deixou de vir sempre saudar a minha chegada. Amuou duas ou três ou quatro vezes, castigando-me pelos sarilhos que ela criara. Os gatos amuam e são engraçados quando despeitados. Dois dias depois já estava tudo bem.

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Dominou a casa quando viveu só com a Lioz e a Paraquedas. Mandou nos bichos todos, desde os que partiram aos que chegaram. Sempre, mesmo quando adoeceu.

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A Manga, uma épagneul breton, foi a única que a desafiou. Ou seja, uma Canis lupus familiaris com quinze ou dezasseis quilos e uma Felis Catus de três ou quatro – no fim da vida com dois ou três. Quando chegou à nossa casa, a cadela, de raça caçadora e habituada a bulhas em asilos, terá citado Gaius Iulius Caesar:

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Veni, vidi, vici.

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A Granita mostrou-lhe, como os gauleses de Asterix, que não vici.

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Reparámos que a Manga gania quando olhava para a gata. A cadela compreendeu o seu lugar na hierarquia e mostrava respeitinho – aquele respeito com receio – quando se cruzavam ou se aproximavam. Quando se excitava mais, a Granita exercia a sua autoridade.

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Como Rainha e idosa, a Granita foi ganhando caprichos. Manifestava-os, sobretudo, comigo. Desde ter de mudar a tijela de sítio ou exigir um mimo antes de comer. Estas situações causaram-nos gargalhadas, obviamente.

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A Granita, não sendo gigante, foi uma gata grande. Foi gordalhufa e emagreceu. Com o tempo emagreceu e perdeu vitalidade. Por vezes, ficava quase prostrada... é a idade, pensei. Não me apercebi que fosse por estar doente, mas porque os muitos anos simplesmente lhe limitavam o apetite – não tendo sido lenta a perda de peso, não foi repentina.

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Uma noite, por volta do Natal, caiu porque não tinha força nas pernas. Levámo-la ao hospital, onde ficou internada, devido a anemia, decorrente de hipertiroidismo – coisa comum em gatos velhos. Com doença crónica, ficou de tomar diariamente medicação. Sempre com apetite e caprichos gastronómicos: se não gostava duma refeição, não a comia... mesmo faminta!

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Embora muitas vezes estivesse quase letárgica, após começar o tratamento engordou um pouco e o pêlo ficou mais macio. Contudo, há poucos dias emagreceu e perdeu macieza. Ontem, ficou pendurada na roupa da cama, sem força para se erguer ou soltar as garras. A Ana acudiu-a. Depois, peguei-lhe e ronronou diferentemente, como costumam fazer os gatos quando sofrem muito – tal como se chama pela mãe, mesmo quando se tem mais de cem anos.

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Estava novamente com anemia e desidratada, mas sem grande descontrolo da tiróide. Se, desde o Natal, sabíamos que a sua saúde era frágil, não foi propriamente uma novidade quando a veterinária disse que poderia não sobreviver ao tratamento.

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Hoje de manhã, ligaram-me do hospital. A Granita tinha um grande tumor nos intestinos. Poderia ter alta para que pudéssemos despedir-nos. As dores iriam aumentar, em dois ou três dias seriam insuportáveis. Falecer em casa? Não! Deixá-la em padecimento esse tempo, para acabar por ir a correr em emergência?

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Desliguei o telemóvel e pensámos duas ou três frases, trinta ou sessenta segundos – sei lá, foi quase um instante. Que violência! Ela em grande sofrimento e nós a braços com alguém que sabíamos ter horas ou poucos dias.

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Fui ao hospital assinar um documento. Deixaram-me vê-la. Estava enroladinha, voltada de costas para a porta.

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Afaguei-lhe a cabeça e virou-se. Acariciei-a sob o queixo, como tanto gostava. Demorou a ronronar – antes era tão rápida, até antes de lhe tocar, e fazia-o bastante alto –, sem que a ouvisse, sentindo-lhe apenas a vibração. Parou segundos depois.

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O estado de doença agravou-se muito em tão pouco tempo. Em menos de quinze horas, a sua expressão mudara muito, inacreditavelmente muito. Vi-a como se tivesse cem anos.

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Sim, os cães são mais expressivos do que os gatos. Sim, os gatos também expressam sentimentos com o olhar, embora mais subtis. Olhou-me tão triste, com os olhos embaciados pelas cataratas. Baixou a cabeça e enrolou-se, como estava quando ali cheguei.

 

Não tenho medo da morte. Compreendo-a e aceito-a sem dor. Não acredito na morte. Nunca chorei alguém porque partiu. Ainda que tenha lembranças, não sou nostálgico. Hoje deixei verter algumas lágrimas. Tomei a mais extrema decisão da minha vida.

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Não se pense que – por escrever o que acabei de escrever – gosto mais dos animais do que dos familiares e amigos que partiram para um local não material. Mas porque tive (tivemos) de decidir o momento dessa transição.

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Que estranho poder! Que loucura!

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O que fazer? Aceitar a «morte» no seu momento, conhecendo o sofrimento e o agravamento da sua dor? Tantas perguntas, muitas mais respostas e dúvidas.

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Quando cheguei a casa, a Manga olhou-me tristemente. Não sei quanto tempo me olhou. Os cães sentem e pressentem, lêem-nos as expressões e compreendem-nos. Sentem a vida diferentemente, sabem coisas que não conseguimos ler.

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A Valsa, gata que não me pede atenção, saltou para o meu colo. Mimou-me e ronronou. Lambeu-me a mão, algo que os gatos fazem – nem todos – só a quem consideram merecedor. Hoje, pensou que eu precisava desse consolo.

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Nós tristes e a Manga, magnânima e generosa, mostrou a sua dor pela morte da Alfa. A Valsa, a nova Rainha, apiedou-se de nós.

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Órfão de mana

 

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A minha mana mudou-se para a Pátria Espiritual, para onde quis ir. Disso não tenho quase nada a dizer. Quero só contar algumas memórias. Só as do tempo em que vivemos juntos e a última lembrança, com ela, da minha infância.

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Vivi com a Luísa até aos meus cinco anos. Nessa idade, as memórias não são muitas. Umas são reais e outras moldadas por fotografias e palavras que me disseram. Mais vírgula, menos ponto, sei quais as verdadeiras recordações de quando.

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A Luísa contava, com gosto, uma maldade que lhe fiz. Ela tinha comprado uma saia nova e estava muito contente com ela; a natural vaidade duma adolescente. Pegou no seu brinquedo (eu) novo e pô-lo no colo. Só que o brinquedo, com dias ou poucos meses, decidiu fazer um grande cocó e estava sem fralda... pobre Luísa. Não sei quantas vezes lhe ouvi este episódio, mas ria-se sempre.

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A minha mana sempre gostou de crianças, tanto que foi professora primária. Num Carnaval vestiu-me e mascarou-me duas vezes: palhaço e mandarim. Do palhaço só me «lembro», porque há fotografias. Do chinês recordo-me.

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Um dia fiz uma birra – coisa que todas as crianças fazem numa determinada idade, às quais não se pode ceder – e ela foi resolver o caso. Pôs-me em cima da cama dela e disse-me:

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– Vamos fazer uma combinação.

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Para mim, uma combinação era uma peça de roupa. Não percebi como iríamos fazer uma combinação nem para quê. Não me lembro mais do que isto.

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Ofereceu-me dois livros infantis que adorei, um comprido em papel-cartão e o outro em tecido. Embora não me recorde do momento em que mos deu, sempre os tive associados a ela.

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Uma vez, os meus pais iam de viagem a Espanha e eu queria muito ir. Por mais que me dissessem que não iria, acreditava que ia. Levantaram-se cedo, antes do meu acordar. Quando despertei… choradeira. A minha mana consolou-me, deixando-me usar, pela primeira vez, a sua máquina-de-escrever.

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A minha mana levou-me, algumas vezes, à escola onde estudava (Dona Luísa de Gusmão), certamente para exibir o maninho – pode também ter sido uma visita a casa do tio Fernando, que vivia em frente, ou possivelmente as duas coisas. Já quase a chegar, passámos por uma loja que tinha uma miniatura de mota. Pedi-lhe e ela deu-ma. O que adorei aquele brinquedo.

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A última memória de infância que me liga a ela é a mais duradoura e palpável. A Luísa tinha-se casado e eu tinha dez ou onze anos. Numa visita, apresentou-me uma menina doce e contestatária, a Mafalda. A Mafaldinha, como «todos» lhe chamam.

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Adorei tanto o livro que me deu (o volume três) que o li quinhentas mil vezes. Compraram-me os outros – talvez me tenha oferecido mais algum. Está usado por tantos anos de leitura repetida. Sempre que o vejo, a Luísa aparece-me na memória, desde sempre.

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No Verão de 2018, fomos passear ao Norte e pousámos na casa da Luísa. O Miguel tinha onze anos e a mana apresentou-lhe a Mafaldinha. Ofereceu-lhe um livro grande, que junta o conjunto de todos. O miúdo leu-o vorazmente. Uma e outra e outra e outra e outra vez, tal como eu aos onze anos.

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Quando contei ao Miguel que a minha mana se tinha mudado para a Pátria Espiritual, falou-me prontamente na Mafaldinha. Com um olhar de clara saudade por uma pessoa que só viu uma vez.

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Vivendo em Braga e eu em Lisboa, telefonávamo-nos com regularidade. Tanto tempo de falas que um de nós acabava em urgência. Os dias não se fazem só com conversas de manos – estas eram intermináveis, podiam ser eternas. Porém, tenho a sensação que não ficou nada por dizer, só por acabar.

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O nosso espírito é eterno.