digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, fevereiro 06, 2023

Necrologia


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Tantas vezes escrevi sobre a morte que um dia. Tantos que se formaram quotidianos. Sem o querer, comecei a ter defuntos – não eu. Sobrevivo e este caderno tornou-se em necrologia frequente.

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De pessoas e animais, agora é doutra coisa. Quando se olha de longe, com horas de ver, fenecer é fenecer, tal como saudade é de vivos e de inanimados.

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Por vários assuntos – afinal só o mesmo – ganhei desvontade de escrever para as páginas doutros. Teimar no destino que se deseja tornou-se num capricho. Obstinação inútil, porque a multidão, muita quanto ínfima, não pede que lhe crie textos.

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Mais do que muitos, rebuçadam-me:

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– Escreves muito bem.

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Como se os adjectivos fossem substantivos, ou os substantivos fossem adjectivos, como se uns e outros fossem alguma coisa prestimosa.

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Assim iludido, por verdadeiros e mentirosos, acreditei ter tantas palavras para vender. Porém sem papel para as drenar nem linhas para as ordenar.

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Quando dos momentos de densidade mais negra, no precipício da campa, tive no jornalismo uma centelha. Irreal, sei hoje, mas esperançosa. Todos os dias disse que haveria de trabalhar notícias, só ou numa redacção. Sinceramente, acreditei que tinha competência e daí reconhecimento.

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Alguma coisa iria acontecer, num prazo de dia, semana, mês ou ano. Induvidoso do sucesso, com a crença optimista do cão. Como não?

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A saúde aligeirou-se e o desejo-merecimento de trabalho permaneceu em fé. Na minha cabeça havia um livro sagrado e o altar estava no coração.

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Por tanto orar e a qualquer hora, vi a luz: a cintilância da crença era falsa. Depois de iluminado pela verdade, caí finalmente no ateísmo. Onde foi alegria ficou um triste-enfado, como parque de diversão à chuva.

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Agora a índole é desistida e sem remorsos. Nem enjoo e muito menos cólica. Quem não quis que fique com as encomendas, não cobro nem entrego inexistências. Estou mudo de súplicas, mendiguei demasiado.

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As minhas (outras) palavras não se me morrem. Ainda que se escondam, estão onde e para quando assim aqui.

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Se diz para não regressar onde houve felicidade. Será o caminho indicado para qualquer sismo? Se nem um nem outro – como o velho, a criança e o burro – só poderá ser em novidade.

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O que fazer se não apetecer uma nova primeira vez e a vontade não aceitar os determinados recentes avistando-se? É de ir até ao lado qualquer que Deus decida?

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O que fazer com a vida é ir e esperar, apressar e permanecer. Que o tempo tenha, a sorte imponha e, se ainda couber, o Criador determine.

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Hoje com riscos começo a tingir papel doutra substância. Avanço para o passado, para quando a idade sabia certezas, e escolhi mal.

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Quem sabe se novo equívoco... Talvez o meu papel seja ainda outro: azul e de vinte e cinco linhas, que mancharei com o carimbo da desimaginação. Viver numa repartição em vez de numa redacção ou ateliê.

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Bem sei que o caminho-tempo não leva tudo. Ficam a memória e o que se quer esquecer, a teimosia e a desistência e a quimera e o sabor do seu engano.

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Hoje rescindi a parte faltante do escrito: palavras de dias que não me lembro mas ciente de sua existência. Rasguei muitos papéis, sendo tantos couberam num saco de tamanho irrelevante.

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Se são passado sem presente nem futuro, não valem nada. Não prestando, arrumem-se onde cabem e fiquem onde merecem.

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Homenageando lonjuras, escrevo a necrologia. Como se fosse o sepultamento dum primo em quinto grau de quem se desconhece o nome próprio – cabendo-me o elogio, por ser o seu único parente, não pesando lágrimas – há pouquíssimo de contar.

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Foram quatro anos de Diário Económico e dois de A Capital: manchetes, primeiras-páginas, chamadas, aberturas, últimas, cachas, legendas, curiosidades, crónicas, ansiedade e dois esgotamentos.

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Tal habitualmente, tingiram-se os dedos nos últimos recortes datados. Sujou-se a mão, não o ânimo, pois o que tinha de ácido já pesara onde era de ferir. Agora o declamo: Não é alívio nem dor.

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Ainda assim, registo em acta, não negarei um chamamento de quem precise de palavras. Provavelmente-precisamente as algumas poucas vozes, de quase silêncio, pedirão o escasso que ainda agora me.

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Vão sobrar as vozes caladas e que há anos são vento sem ruído. Tanto agora, como antes e daqui, são inúteis. Dirão, sinceras ou falsas, que têm pena:

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– Escreves tão bem.

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Farto dessa afirmação garantir uma injustiça. Não peço mais, porque não mereço pedir mais.

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Se fui continental, sou península: terra cercada, ligada por um pedúnculo ao chão antigo.

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Tantos anos enganado e enganando, assim.