digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, março 27, 2015

Queria ser calceteiro

.
Quando era criança fizeram-me a pergunta que se faz a todas:
.
– O que queres ser quando fores grande?
.
Astronauta, terei dito. Bombeiro, lembro-me. Quase sempre ser calceteiro.
.
Não via o tédio nem as dores por causa das cócoras. Via pedras, areia e instrumentos. Não sabia que hoje teria impaciência.
.
Via construção e construção é arte.
.
A paciência escreve-se no mármore e a ansiedade fica com vento a passar.
.
As calçadas são de pedras anónimas. Juntas são indiferentes, às vezes bonitas. Faltando aleijam os distraídos, o fígado arranha.
.
Via construção e construir é conhecer.
.
Talvez porque na vida antes desta tenha morto e morrido matado.
.
Não tenho ódios, tenho vergonhas.
.
De cócoras não nos vêem as lágrimas.
.
De cócoras escondem-se vergonhas e a cara.
.
De cócoras pensa-se o que se quiser e na distracção juntam-se as pedras.
.
De cócoras quase ninguém repara ou se importa.
.
Sei que matei e morri matando. Perdoado, acusado e por descobrir.
.
De cócoras – os odiantes saciam-se.
.
Penitenciar-me? Escondido apenas.
.
De cócoras – os odiantes segregam a bílis e do alto desprezam.
.
Queria ser calceteiro…
.
Quero ter a humildade para fazer do meu ânimo um calceteiro.

Sem comentários: