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Um dia num restaurante – belíssimo – caí na asneira de
provar um bicho do mar, que não peixe. O chefe, reputado e apaixonado pelo
peixe do mar português, sabia da minha intolerância ao peixe. Ainda assim,
arriscámos – ele sujeitando-se à sentença e eu ao vómito. Há poucas coisas
marítimas que consigo, todas elas com casca.
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Estava sentado diante de mim e ansioso perguntou-me:
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– Gostas?
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– Não! Sabe a pexum!
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Respondi-lhe num quase vómito e enxofrei-o. Deu-me uma
descasca – educada e sem fazer um escabeche – que pexum é o cheiro do peixe estragado.
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Não discuti. Já fora indelicado e magoado, escusei ser
mal-educado.
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Amêijoas, cadelinhas (conquilhas), mexilhão e, sobretudo, berbigão
agradam-me muito. Por que não experimentar um búzio. Arrisquei, sabendo que nem
bichos de casca podem deliciar, como as ostras ou os canivetes. Por que não
búzio?!
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Porém, pexum. Pexum! Pexum! Pexum! Horrível!
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Existem alguns mitos:
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– O peixe fresco não tem cheiro.
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– O peixe cheira a mar.
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Dessa forma seria impossível que eu sentisse asco ao cheiro
após descarga na lota ou na praia e detestaria praia ou proximidade do mar.
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Errado! O peixe não cheira a mar! É mentira! Absolutamente
mentira! O mar tem muitos cheiros e, falando apenas nos limpos, todos
maravilhosos. Adoro praia e algumas têm perfumes particulares.
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O peixe tem vários odores, que variam com a espécie, grau de
frescura e modo de cozinhado. O peixe não cheira a mar.
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O peixe sabe a mar?! Mentira! Se soubesse a mar as pessoas ficariam
bastas com um copo de água salgada. Se o peixe soubesse a mar todos eles
saberiam ao mesmo – porque quando se generaliza colhem-se frutos peremptórios.
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Há peixes com cheiros piores do que outros; o peixe-espada é
agoniante, a pescada é vómito garantido, a sardinha é quase tolerável. Isto em
cru.
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Cozinhados, a pescada é vómito garantido, o peixe-espada é
quase inócuo e a sardinha assada quase apetitosa.
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Reconheço que não como sardinhas assadas por receio, por
bloqueio psicológico, por analogia. Possivelmente poderei aprecia-la. Contudo,
não arrisco.
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Depois há o bacalhau… o bacalhau que é arrumado numa
prateleira à parte. O povo dá duas sentenças:
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– Bacalhau não é peixe!
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– Toma lá, para aprenderes que bacalhau também é peixe.
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– A «passarinha» cheira a bacalhau!
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A penúltima é um: «bem-feita», «aprende», «toma que é para
aprenderes». A última abstenho-me de comentar. A primeira é risível.
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O bacalhau salgado, apesar da intensidade do cheiro, não me
incomoda. Excepto se for cozido, o odor deste pescado não me transtorna. Como-o
com agrado em algumas versões; «À Braz», «Dourado», em pastéis (com muita
batata), em pataniscas e… é tudo! «À Gomes de Sá» é por favor. Imitações de
bacalhau ou bacalhau que não o «Gadus morhua» (menos grave) são elefantes a
passear disfarçados.
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Bacalhau fresco é tão intragável, em cheiro, como qualquer
outro peixe.
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É verdade que comer não é cheirar. Pode cheirar-se sem
comer, mas é impossível não cheirar quando se come. Li algures que 70% do
paladar – não sei como se apurou a percentagem – é olfacto.
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Há casos curiosos: como chocos (por favor), como lulas (com
muito favor), como polvo (em arroz, com prazer e muitos coentros). Em todos
estes casos, só consigo se não sofri com o pivete pré-cozinhado nem fiquei a assistir
ao evoluir do «aroma». Os bivalves em cru agoniam-me, mas muito suavemente. Uma
vez que partilham bancada de peixeiros vêm conspurcados pela vizinhança.
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Ao longo destes quarenta e cinco anos – e dos que virão –
sei que vou ouvir:
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– Não gostas de peixe.
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– Não gostas de peixe porque nunca provaste um bem-feito.
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– Quando provares um bem-feito nem notarás que é peixe.
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– Se fosses meu filho…
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Começando pela última: se não fosse filho de meu pai – ou de
minha mãe ou dos dois – não seria eu. Sendo que esta bizarria vem do lado do
meu pai, não sou caso único. Quanto à penúltima, se não for para notar que é
peixe, por que haveria de provar?!... A antepenúltima é quase à penúltima, mas
é liminar, nem bem nem malfeito. A primeira é falsa, pois a questão não é
gostar ou não gostar, mas de suportar o cheiro e, por conseguinte, o sabor.
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Na escola primária comia na cantina. Invariavelmente, as
refeições de peixe terminavam comigo sozinho – os miúdos a brincarem no recreio
– com uma empregada ao lado, supostamente para impor a ordem. Hoje percebo que
fingiam estarem distraídas a olhar para outro lado; estavam a ser cúmplices,
permitindo que despejasse o peixe para o chão.
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Na quarta classe, com cadastro mais do que reconhecido,
quando havia peixe para o almoço ia para a cozinha. Forçado a respirar pela
boca, manjava ovos mexidos com salsicha – os miúdos adoram e se estivesse no
refeitório haveria levantamento de rancho.
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Um dia, a minha prima Carolina foi comigo visitar uma prima,
com quem se fazia cerimónia.
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– Vais comer o que te puserem no prato! Blá, blá, blá…
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Era criança e obedeci… depois vomitei. A Carolina foi
repreendida pela senhora.
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Era bebé e fomos – eu, mãe e pai – passear a Peniche. O meu
pai adorava peixe e lá fomos às docas, para que visse onde era mais fresco e
onde lhe parecia ser melhor tratado. Eu ainda não falava, mas já vomitava.
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Uma outra vez, uns primos do lado da minha mãe quiseram
tirar a teima e, agarrando-se à «verdade» que o peixe fresco não tem cheiro,
levaram-nos – filhos e sobrinhos, todos crianças – à aventura de ir de
madrugada ajudar os pescadores a descarregarem o pescado. Todos alegres e
felizes e eu a vomitar.
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Fui aprendendo a respirar pela boca sem cessar. A boca
seca-me, pelo que tenho de ter água. Se me sento à mesa e há odor – cozinhado –
a peixe, respiro pela boca. Outro dia repararam que respiro pela boca mesmo a
olhar para a televisão; passava uma reportagem em que se mostrava uma banca de
peixeira.
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Tenho pena, porque sou guloso na amplitude da palavra. Em
mim, guloso não é adjectivo, mas substantivo. A riqueza do mar é um enorme
buraco na minha gula e auto-estima.
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Um dia, um enólogo deu-me uma pista; uma sensibilidade a um
nitrato, que não identificou. Fiquei-me com essa, até que outro dia entrevistei
um professor universitário, que sublinhou a previsão e me indicou o nome desse
nitrato: trimetilamina.
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Há pessoas muito sensíveis a alguns aromas. O mais comum é
aversão ao queijo; tenho três grandes amigos a sofrer desse mal. Li na internet
que a convulsão ao cheiro do peixe é um distúrbio comum, sendo que só sei duma
outra pessoa – já falecida – que padecia dessa desordem.
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Quis saber mais e procurei na internet. Desembarquei obrigatoriamente
na Wikipédia. É preciso muito cuidado com o que se retira do mundo dos três W.
A Wikipédia é muito falível, com inúmeras incorrecções, faltas de rigor e
visões facciosas. Ainda assim, cito-a porque – talvez por ignorância – me faz
lógica.
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Trimetilamina, cito:
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– «A trimetilamina é um composto orgânico com fórmula N(CH3)3.
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Esta amina terciária incolor, higroscópica e inflamável,
tem um forte odor a peixe em baixas concentrações e um odor semelhante a amoníaco a
concentrações mais elevadas. É um gás a temperatura ambiente mas é normalmente
vendido em cilindros de gás pressurizado ou em solução a 40% em água.
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A
trimetilamina é uma base nitrogenada e pode ser facilmente protonada para
liberar o cátion trimetilamônio. O cloreto de trimetilamônio é um sólido
incolor e higroscópico preparado a partir de ácido clorídrico.
É também um bom nucleófilo.
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A trimetilamina é um produto da decomposição de plantas e
animais. É a substância mais responsável pelo odor muitas vezes associado a
peixe em decomposição, algumas infecções e mau hálito.4 Esta também associado a tomar grandes
doses de colina e carnitina».
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Podia ser pior? Podia. Podia ser muito pior. Muitíssimo
pior. Nem quero imaginar se sofresse de trimelilaminuria.
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Esta faz lembrar a do esternocleidomastoideu – o principal músculo
flexor do pescoço. Aprendi no filme «A canção de Lisboa»… «Ele até sabe o que é
o mastoideu!»… «O mastoideu… o que raio será o mastoideu?»
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A trimelilaminuria é o síndrome do cheiro a peixe. Lê-se na
Wikipédia:
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– «É uma rara desordem genética na qual o
corpo é incapaz de metabolizar a trimetilamina dos alimentos. Os pacientes com tal
problema desenvolvem um típico odor de peixe no suor, na urina e no hálito,
principalmente após o consumo de alimentos ricos em colina. A
trimetilaminuria é uma desordem autossômica recessiva que envolve uma deficiência de
oxidase da trimetilamina».
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Nem quero imaginar sofrer desta nhoquice! Blheck!
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Em «O grande fosso», das aventuras de Astérix, surge o ignóbil Acidenitrix, um fedorento a pexum.
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Bem, resumindo:
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– Nã côme pêche!
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Já que escrevi com sotaque de Légues (Lagos), conto do nome
que por lá se dá às conquilhas ou cadelinhas: condelipas.
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Esta bizarria decorre da permanência, naquela cidade
algarvia, do conde de Lippe, militar germânico, que veio para Portugal para
melhorar o exército português e as estruturas de defesa, durante a Guerra Fantástica
(1761 – 1763).
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O conde de Lippe veio, em 1762, a pedido do primeiro conde de
Oeiras – futuro primeiro marquês de Pombal – para reorganizar as tropas e
defesas nacionais, que tinham entrado em decadência, por desleixo, desde o
tempo de Dom João V.
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O conflito terminou e os territórios conquistados pelos
exércitos espanhol e francês foram devolvidos. Uma guerra inútil, em que não
fica na memória qualquer batalha de monta. A Guerra Fantástica – tão irrelevante
que nem se faz referência nos manuais escolares, ou não fazia – decorreu sobretudo
em Trás-os-Montes. Daí tirado o sinónimo de Guerra do Mirandum. Mas, na Beira, Almeida
e Castelo Branco também tombaram para os inimigos, tal como a colónia do Sacramento,
na América do Sul.
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Como ninguém adivinha o futuro, a obra deste militar
germânico estendeu-se a todo o território. Guilherme, conde reinante de Schaumburg
[grafia coeva], conde e nobre, senhor de Lipe [grafia coeva] e
Thranberg, marechal-general das tropas de Sua Majestade Fidelíssima, cavaleiro
da Ordem da Águia Negra, etc… esteve em Lagos, onde dirigiu as obras do Forte
da Ponte da Bandeira.
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Nessa cidade algarvia, Guilherme de Lippe [grafia actual]
provou as conquilhas. O seu apetite por este bivalve era tão grande que o povo começou
a chamar, ao bichinho, «conde de Lipe» – eram pró conde de Lippe – degenerando
em condelipas.
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Outra coisa:
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– Amêijoas à Bulhão Pato não levam nem mostarda, nem vinho
branco, nem pimenta, nem limão!
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Nota: Por limitações da caixa das etiquetas com as
referências, escrevo abaixo as identificações dos autores das obras de arte
utilizadas para iluminar este texto escuro.
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1 – Michael Sowa.
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2 – Pintura de Frédéric Bazille.
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3 – Pintura de John Brack.
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4 – Pintura de Zinaida Serebriakova.
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5 – Pintura de Jean-Baptiste Siméon Chardin.
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6 – Pintura de Frederic Leighton.
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7 – Pintura de René Magritte.
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8 – Pintura de Gentil Garcez.
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9 – Fórmula química da trimetilamina.
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10 – Desenho de Albert Uderzo.
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11 – Pintura de Johann Georg Ziesenis.
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12 – Armas do Estado de Schaumburg-Lippe.
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13 – Desenho de Albert Uderzo.
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