digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, abril 03, 2015

Tira-me essas palavras da cozinha

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Não é preciso ir à escola para se saber da importância das palavras. Um bebé de dois anos percebe, ainda que vagamente, o que querem dizer não e sim. Os marqueteiros são finórios e criam conceitos, palavras de música celestial para fazer vender qualquer produto útil ou bugiganga de género variado.
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Uma ressalva... percebo perfeitamente que empresas ou marcas comerciais tenham designação noutras línguas. É pragmatismo.
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Desde já, aviso que escrevo em generalidade. Como em tudo, não há só preto e branco. Além dos cinzentos, há várias cores e seus tons. Descontando os espectros infravermelho e ultravioleta. Ah! Como não estou a escrever profissionalmente, aqui são possíveis palavras inventadas.
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Os jornalistas são, por regra, preguiçosos e incultos, além de terem a mania de que sabem do que não sabem. Os dois primeiros adjectivos resultam na facilidade com que aceitam vocábulos doutros idiomas e do desconhecimento de palavras correspondentes…. Ou seja, talvez não sejam adjectivos, mas substantivos.
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A obrigação de as notícias poderem ser lidas por qualquer pessoa, da mais erudita à semianalfabeta, leva-os a sucessivas reduções do léxico. O esforço deve ser o de entender o facto, explicando de forma clara. No entanto, a via mais simples é a diminuição do número de palavras em uso. Nisto, os jornalistas não estão sozinhos, mas emparelhados com tradutores e escrevinhadores de toda a ordem.
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Pelo complexo de que não serão entendidos pelos leitores e escutantes, os oficiantes do idioma fogem do prenome «seu» ou «sua». O pânico é que seja interpretado erradamente – «sua» ou «seu» – não relativo ao sujeito, mas relacionado com quem lê ou ouve. A piada surgiu num dos programas de Herman José e passou de trocadilho a facto.
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Ligado a esta doença há a supressão dos reflexivos. Por exemplo:
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– A peça de teatro estreia hoje no Dona Maria.
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Pois, estreia-se.
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No National Geographic Channel tem surgido repetidamente uma delícia que dá vontade de espetar um par de bofetadas… Por exemplo:
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– Hitler e o Governo dele.
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Pois, Hitler e o seu Governo.
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A facilidade que a ausência de sentido crítico e de pensamento esfaqueou alguns desgraçados. Noticiaram-se as decapitações dos bárbaros do Estado Islâmico. Vendo os instrumentos de lâmina apresentados, só diz decapitado quem não lhe conhece o significado e desconhece o verbo degolar. Já a vítima estaria mais do que morta quando a cabeça fosse separada do corpo. Aí, a imprensa brasileira esteve mais atenta. A decapitação é – preferencialmente, às vezes não corre bem (bem?) – realizada num só golpe, de espada, machado ou guilhotina.
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Há a asneira persistente de confundir «por que» com «porque». Um erro que topei num produto – recuso-me a designa-lo como instrumento educativo – da Porto Editora.
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Regressando ao princípio… o abuso dalguns vocábulos dita a sua desvalorização. Em paralelo, outras palavras foram suprimidas. O tsunami afogou o maremoto, o gourmet almoçou gastrónomo e ganhou um outro significado, e light engordou-se com ligeiro(a).
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Os burocratas são uma espécie de bichos irritantes! Soube que um agricultor começou a embalar legumes para sopas rápidas e quase instantâneas. Chamou-lhes «sopa light». O manga-de-alpaca embirrou… passou para «sopa ligeira».
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Até seria para saudar a censura se a justificação fosse a defesa da língua portuguesa. Não, é porque light é light, tem o conceito de saudável associado. Já ligeiro… Enfim! Ora os burocratas permitem que batatas fritas possam ser light, apesar de toda a gordura e sal que carregam… Light, porque há as não-light, ainda mais oleosas e salgadas. Contudo, apesar de ter muito – muito, muito, muito – menos calorias, uma sopa de legumes não pode ser light, pelo que se carimbou como ligeira… Um plebeísmo, pois claro.
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Aqui, o Camões – Deus da Língua Portuguesa – escreveu direito por linhas tortas. O pobre zarolho tem tido pouca sorte com os súbditos.
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Gourmet é a pessoa que aprecia bom vinho e boa comida. Gourmet é gastrónomo. Era, hoje gourmet é um adjectivo para valorizar qualquer coisa, desde as batatas fritas industriais ao mais requintado alimento. As mercearias finas chamam-se lojas gourmet. Até há uma wine shop, por acaso é uma garrafeira. Nesse mesmo espaço há uma bookshop, uma coisinha muito parecida com uma livraria. Juro!… Designa-se por Melt e as especialidades da casa são anglicismos e menu com acento agudo.
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No mar, há séculos – atenção, não há séculos «atrás», nem à frente, nem acima, nem abaixo e nem de lado – os marinheiros foram muitas vezes forçados a pôr solas de molho para matarem a fome. Se fosse hoje, tenho a certeza que as solas do almirante seriam gourmet.
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Comilão é uma palavra antipática. Ainda que possa aparecer numa brincadeira ou numa repreensão pelas costas, comilão é um vocábulo gorduroso e cheio de nódoas. É curioso que não tenha aparecido no dia-a-dia, em excelsas falas, o termo gourmand.
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Os estrangeirismos têm estado sempre associados às elites, desde a de juro e herdade à do novo-rico, criatura que se arma ao pingarelho. É muito mais bonito referir sommelier do que escanção… e já li wine lovers no lugar de enófilos.
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Além dos que aqui agredi ainda há os desastrados… Dizem realizar em vez de perceber, vulgar em vez de ordinário ou rude no lugar inculto ou abrutalhado, ainda que neste último caso se possa compreender alguma correspondência.
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Conta a História que a História nunca se repete, mas que assombra fantasmagórica de tempos a tempos… e há a tese, antítese e síntese… coisas ficam, como o detalhe ou o envelope. Quer uma quer outra sofreram desvalorização. Tudo é gourmet, tudo é light… até que!
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Falando com a gente letrada dos estrangeirismos ocorre-me a peça teatral «A importância de se chamar Ernesto», de Oscar Wilde – cada vez gosto mais deste génio irlandês – génio é outra pérola banalizada – que dinamitou a época Vitoriana, embora me falhem muitas letras. Outra obra a saltar, nesses momentos, no cérebro é o filme «Minha linda senhora», de George Cukor, inspirado na peça «Pigmalião», de George Bernard Shaw. Como em tudo, por vezes temos que engolir as palavras que nos saem pela boca… a tradução não foi feliz, pelo que esta longa-metragem fixou-se como «My fair lady».
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Para rematar, este coisinho sobre os vandalismos linguísticos, escrevo uma afirmação que ouvi e q’adoro! É acerca do uso de estrangeirismos e eufemismos… Por ser ordinária e não querendo ofender olhos e mentes mais sensíveis, vai numa cor qua a camufla. Quem a quiser ler, basta-lhe passar com a setinha do rato, tornando-a visível.
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Não é merda! É cagalhão!
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Como todos, erro sistematicamente. Quem encontrar erro, asneira grossa, asneira fina, alarvidade, incorrecção ou incultura – além de gralhas – que faça o favor de comentar. Publicarei o puxão de orelhas, emendarei e disso farei nota no final desta prosa.
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Evolução da cotação de diversas palavras, desde o início do século até ao presente. Fonte: Instituto de Pantominices do Doutor João Barbosa.
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1 comentário:

Anónimo disse...

Texto arrasador. Arrasa também é um verbo das notícias: há sempre alguém a arrasar outrem e vice-versa e todos a arrasar a gramática.
jp