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Perguntou-me:
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– O que sente neste momento?
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– Maré cheia.
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– Corrijo, como se sente neste momento?
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– Maré cheia.
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– … Hummm … explique-se melhor, por favor.
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– Arrastado, levado pela corrente atirado e puxado como um ioiô
contra as rochas, submergido como se me fizessem amonas, lutando e chegando à
superfície para um breve respirar, de boca aberta para ganhar mais ar e acabar
bebendo a água salgada e incomodar-me com o odor a limos, por os saber perto,
nas rochas.
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– Tem ideia por que se sente assim?
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– Terramotos, desabamentos, pó, muito pó, ouvir as sirenes
ao longe, ouvir os passos e as vozes sem as entender, faltar-me ar para gritar
que estou vivo… ou até mesmo só dizer.
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– Medo da morte.
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– Não. Medo de não morrer.
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– Medo de não morrer?
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– … Sim. Medo que a alma – o meu espírito – não se queira
afastar do túmulo improvisado e conjuntural, zelando do corpo como um cão chorando
o dono sobre a sua campa.
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– …
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– Medo de que o cérebro, com suas inteligência e estupidez,
exija a sobrevivência na dor e me chantageei o espírito. Medo de que além do
corpo que morrerá, agora ou num depois, exista e persista a mente, vivendo mais
tempo e agarrada ao féretro e eu – o espírito – aflito não os consiga deixar…
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– O que é para si a morte?
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– Uma porta. Saímos para entrar… como o nascimento.
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– O sono e o coma?
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– O sono será duas coisas, a que nos lembramos e as
olvidadas. Resultado das fabricações do ego, psi-ego… não sei bem os termos, ou
sequer tenho certeza dos conceitos ou de quantos serão… Sei, mas nunca pensei
nisso, talvez sejam as sabedorias e as certezas dos analfabetos. Outra parte
seja de libertação, leve emancipação do espírito face ao corpo.
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– E o coma?
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– Talvez seja um sono muito profundo e denso.
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– Tem medo da morte?
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– … De largar o corpo?... Tenho receio de não o conseguir,
seja por morte ou por doença.
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– Sofre?
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– Sofro. Sofro duma dor de alma. A imagem é estereotipada e simplista,
sangro por dentro e a alma chora e a cabeça não para de pensar. Corpo, espírito
e mente ou outra coisa mais certa ou correcta a possa definir.
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– Quanto aos outros, como vê a morte?
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– Do corpo? Sem medo. Não choro em velórios nem em funerais…
por vezes comovo-me por ver o sofrimento da família e dos amigos.
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– O quando alguém morre e tem de dizê-lo a alguém próximo,
como faz? Ou faria, caso não tivesse acontecido?
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– Aconteceu. O teu pai – por exemplo – morreu.
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– Só isso?
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– Não basta? Em poucas palavras se diz uma verdade
indesmentível.
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– Não consola, não ameniza, não hesita…?
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– Não. Tento dizê-lo de forma calma, repousada e bem
articulada, depois espero o silêncio ou o choro ou o grito ou qualquer coisa.
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– Não consola?
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– Consolo depois. Depois do essencial e do sinal que o outro
me faça.
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– …
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– Depois do silêncio dói-me. Não por que o espírito tivesse
partido do corpo e que o corpo vá para a terra ou para o crematório. Dói-me
pela dor do outro e aperto-me.
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– Arrepende-se de alguma vez ter revelado a morte de alguém?
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– Arrepender-me de quê? De dizer a verdade? De a dizer com
as palavras suficientes?
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– Frieza ou amparo, essas suas acções e reacções?
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– Frieza, não. Crueza. Não é crueldade, digo as palavras
cruas, as essenciais, sintetizo. Frieza? Não direi calor… admito que possa
sentir ou não sentir… seja a que for, é involuntário, não luto para que seja
assim ou doutra forma.
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– O que diz à família? E aos amigos, no velório, no funeral,
ao telefone, num encontro ocasional ou estabelecido…
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– Uma coisa quase horrível. Não é horrível, porque não é por
querer mal ou por não gostar com quem falo e acerca de quem falo. Horrível
porque entro numa personagem, com uma fala… o proforma de lugares-comuns e
banalidades – passaria horas a explicar, talvez a aleijar, ainda que
inadvertidamente, por mexer.
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– Que banalidades são essas?
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– Os meus sentimentos. Tenha ânimo e força…
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– …
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– Sintético. A morte é tão natural que não sei o que mais se
possa dizer.
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– Sabe que a outra pessoa está em dor…
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– Sei. O que posso fazer? Trazer o falecido de volta?
Dizer-lhe que o Benfica vai ganhar o campeonato, ou outro clube?
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– …
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– Se tentar dizer com profundidade e honestidade levaria
horas, teria de haver o momento e o sítio e disposição para que me ouvisse,
fosse capaz de lidar com as minhas palavras, de me julgar compreendendo-me e
não sentenciando-me ao castigo.
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– Por que não dizer em breves palavras que só o corpo morreu
e o seu espírito regressou ou simplesmente foi para uma dimensão espiritual?
Não é isso que pensa?
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– Basicamente, é. Mas lá está: momento, sítio e oportunidade
emocional do outra.
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– Alguma vez aconteceu?
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– Sim.
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– Então?
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– Não gostou nada. Calou-se para não se zangar. Fui muito
cauteloso e só toquei no assunto porque ela abordou…
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– Foi inoportuno.
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– Um amigo disse-me, num momento em que essas três premissas
coincidiram, que compreender a morte – admitindo que o que lhe dizia era a
verdade, a verdade cheia e plena que não depende dos homens, mas que não
concordava – não significa não a sentir ou de sentir a dor.
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– Concordo. Concorda?
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– Em absoluto. Absolutamente sem qualquer reserva.
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– …
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– A morte é um sentimento íntimo. Como Deus ou a fé… quem
acredita, acredita intimamente. Podemos partilhar a mesma religião e o mesmo
rito, até frequentar a mesma igreja e gostar do pároco, mas sentimos e
interpretamos de forma diferente…
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– Isso é um lugar-comum, uma banalidade.
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– É! Há outra forma de o dizer? Em verso? Redondilha,
alexandrino, soneto… poesia branca, prosa poética ou declaração formal em papel
azul de vinte e cinco linhas, devidamente assinado, testemunhado, carimbado e
com selo-branco?
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– Ficou ofendido. Não precisa.
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– Respondi com a deselegância com que me repreendeu pela
explicação do que disse… pior! Com a deselegância pela forma como o disse.
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– Desculpe, não fiz por mal…
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– Tudo bem, está esquecido…
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– Nisso do sentir a morte, interpretar Deus e crença não foi
sintético.
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– Também não lhe respondi durante três quartos de hora… Não
fui sintético, porque tudo isso é muito complicado… não apenas no dizer, na forma
de o dizer, no esforço para ser inteligido…
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– Anunciar a morte é mais fácil?
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– É mais difícil. Muito mais difícil.
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– Contradiz-se…
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– Não. Dificuldade em dizer é uma coisa, o número de
palavras para o dizer é que é simples.
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– Posto isto e voltando quase ao princípio… acredita na
morte?
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– Do corpo.
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– Tem medo?
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– De sofrer.
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– …
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– Da dor física, da dor psicológica e da possibilidade do
pensamento – ou da mente, se for mais preciso ou correcto – existir após o fim
do corpo, atormentando o espírito… que é eterno.
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– Eterno?
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– Sim. E por que não? Não acreditam os fiéis de todas as
regiões? Acho que de todas…
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– …
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– Por isso digo que a morte, tal como o nascimento, são
sítios separados por portas e passamos dum local para o outro.
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– Reencarnação.
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– Sim.
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– Porquê?
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– Porque me faz sentido. Porque é dessa forma que encaixo
Deus no pressuposto de que é perfeito, ama todos os seus filhos e a dá as mesas
hipóteses a cada um.
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– É um homem de fé?
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– Infelizmente não. A minha fé – se lhe posso chamar fé – é de
lógica. Lógica assente nos princípios que enumerei.
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– Tem pouca fé?
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– Provavelmente. Acho que sim, dizem-me que não. A minha fé
em Deus é igual à que tenho em relação à ciência.
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– A maioria ou a generalidade – penso ser o caso – dos cientistas
recusa a ideia de Deus.
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– Não é por o recusar que ele deixa de existir. Podem
afirmar o que quiserem, nomeadamente que não há provas da sua existência, porém
também não provam a sua inexistência.
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– A ciência tem desmentido as religiões, a ciência tem
destronado Deus.
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– Discordo. A ciência tem desacreditado palavras dos homens
sobre Deus, escritas ou faladas. A ciência pode desmascarar – o termo é
demasiado forte, mas é o que me ocorre – religiões, ritos, práticas,
afirmações, gestos… do homem, de quem se sente no direito de falar por Deus, ou
até de o substituir.
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– De o substituir?
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– Claro! Os santos são santos por decreto papal. Por que não
há santos pré-cristãos ou anteriores ao Primeiro Testamento? Há profetas. Por
que é que os chefes das religiões, ou até de ritos, não reconhecem homens santos
doutras fés?
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– …
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– Houve um Papa que instituiu o Limbo. Criou o Limbo para as
crianças, porque não tinham tido tempo para pecar e seria injusto guardá-las no
Inferno ou no Purgatório ou directamente no Paraíso… aliás, se não tinham feito
mal, também não tinham feito o bem…Entretanto, um outro papa – julgo que Bento
XVI – extinguiu o Limbo.
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– …
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– Quanto aos santos… por causa da ciência, por ter medo da
ciência e de recair nos erros do passado em que castigou cientistas, livros e
pensamentos, que a hierarquia católica tirou dos altares vários santos. Porquê?
Porque verificou dúvidas acerca das suas vidas e milagres.
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– Por exemplo?
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– Para não sair de Lisboa… Santa Apolónia e Santa Engrácia.
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– Porquê só exemplos católicos romanos?
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– Porque estão mais há mão, é o maior rito no nosso país,
que mais influência tem.
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– …
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– Um outro engano; o dom da Graça. No seu leito de morte, o
patife chama o pároco, confessa-se, rezam-se umas orações e o moribundo está
livre de qualquer castigo. E o homem bom, com seus defeitos, não conseguiu a
derradeira confissão – por um qualquer motivo – o que lhe acontece? E quem
sofreu com as acções dessa pessoa má – não gosto da palavra e sei que não é
correcta em absoluto – que teve atitudes incorrectas ou até criminosas? Que
direito tem um homem sobre os sentimentos e julgamentos de pessoas que
padeceram por acções dessa outra que acabou por ganhar a paz celestial?
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– …
. – Além das indulgências…
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– Isso acabou! Acabou há muitos anos!
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– Não é verdade! Podem chamar-lhe outras coisas… A
recentemente desencarnada duquesa de Alba dormia com uma declaração papal que
era um salvo-conduto para entrar no Paraíso. A senhora chegou ao seu além,
mostrou o papel – deve ter-se desmaterializado, além de Deus precisar de ser
lembrado dos seus compromissos – e passou a porta do Paraíso. Essa declaração
papal foi paga. Foi comprada.
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– …
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– Há mais! Um morto – um cadáver, o que se quiser – está em
câmara ardente. A família paga para ter um padre a recitar-lhe e a afirmar umas
sentenças. Paga mais para que esteja no momento em que o caixão vai para a cova
ou para o forno crematório.
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– …
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– A missa do sétimo dia… é paga. Em troca, o sacerdote
limita-se a dizer o nome do defunto. Tal como a situação em que se compram – é o
verbo – não sei quantas missas.
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– Tem noção que isso incomoda muita gente?
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– Tenho, mas é a minha verdade – não quero fazer o mesmo que
outros, não sou dono de Deus. Outro exemplo de negócio é o das velinhas. O pior
de todos é o do auto-sacrifício, da mutilação, ir de joelhos a Fátima ou castigar-se
com cilícios.
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– Comércio?
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– Comércio e arrogância.
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– Arrogância, como assim?
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– Os crentes sentem-se no direito de comprar milagres, assumem-se
altivos… «Nossa Senhora de Fátima, se livrares o meu filho do desemprego,
acendo 900 velas em teu louvor, pago cinquenta missas e vou cinco vezes, de
joelhos, a Fátima». Repare… «Se me deres o que te peço».
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– A Igreja tem combatido esses rituais, como aquele – deve ser
o maior – dos calvários, nas Filipinas.
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– Tem?! Não tem. Tanto que não tem que não se ouve,
sistematicamente e veementemente e publicamente, uma condenação ao sofrimento
auto-infligido… nem à venda das velinhas… até permite organizações que defendem
a autopunição.
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– ...
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– Que Deus é esse e gente boa – à falta de melhor palavra
digo santa – que se compraz com o sofrimento gratuito e em seu nome? Esse Deus
não é de amor! Que bondade têm esses santos?
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– Ouvindo-o, tem uma fé quente.
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– Falta-me o calor que penso ser necessário para dizer que
tenho fé plena. A minha fé é racional, tem uma lógica. Lembra-se do que me
perguntou no começo da nossa conversa?
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– Sim. Como se sente?
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– Maré cheia, a dificuldade em respirar e suportar-me a dor…
é a prova maior da minha fé ser apenas racional – embora possa estar errada, eu
estar errado.
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– Como?
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– Um verdeiro crente estaria a debater-se e provavelmente a
rezar, eu não estaria, não estou. Um verdadeiro crente aceitaria, enquanto eu…
faria ou faço – com arrogância – um ultimato a Deus: ou tiras-me daqui já e
deixa-me ir.
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– O que prefere?
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– Deixar-me ir.
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– Porquê?
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– Porque estou cansado. Cansado de tudo. Disfarço a
melancolia mas não o consigo em relação ao tédio.
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– Voltando à reencarnação… acredita que tem uma missão… um
objectivo.
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– Estou – estamos – num mundo de provas e de expiações. Uma
espécie de exame escolar, que, ao sairmos do corpo, saberemos as notas e
veremos onde falhámos, por que falhámos e estudamos.
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– … Então… não aceita?
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– Não sou um cordeiro. Também não sou um lobo. Sou lobo de
mim. A questão é não sentir estar numa qualquer prova ou verdadeira expiação. Sinto-me
andando por aí, sem rumo, sem objectivos, sem vontade. Cansado, farto, exausto…
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– Uma vontade de morte.
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– Muito grande. Não me suicido, porque não me deixam. Não me
suicido porque iria contra a minha fé, a racional… da missão e expiação, de autocondenação
e autocastigo.
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– …
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– Sei que não tenho esse direito. Tenho uma grande vontade
de transgredir. Invento desculpas ou pretextos… mas arrumo as coisas, deixo
lista do deve-e-haver e pedido de desculpas com breve explicação. Depois fico
quieto a paro antes…
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– Chora?
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– Por dentro – banalidade. A dor da alma. A falta de
objectivo. Um sentimento de derrota num jogo em que não sei jogar nem quero.
Tédio! Tédio! Tédio!
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