digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

quarta-feira, novembro 04, 2009

Churchill e as violetas

É nos lugar improváveis que acontecem as surpresas. A Primavera é fértil nesses acontecimentos... e a espécie humana, tão inteligente, ainda se espanta.
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O Zé enerva-se com calma. Só põe os olhos sérios e faz apenas uma expressão de chá agitado numa xícara (sem transbordar). O Gil é destravado e divertido como um autocarro «tunning».
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Num dia de Março houve um almoço de gritos, que só não foi de gritos porque ninguém gritou. Mas só faltou isso. Há coisas que quando começam mal estão fadadas a acabar bem, muito bem.
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Se há coisa que Gil Magriço deteste é passar a hora de almoço sentado à mesa com o trabalho. Preferia alimentar-se a pílulas e produzir mais do que pachorrar a ter de debater com a comida à frente. Por cada pausa para dizer algo de proveitoso recrimina-se por não estar a apreciar o repasto. Por cada garfada saboreada culpabiliza-se por não gastar os neurónios em cálculos e somas.
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Se há coisa que o Zé aprecie é descontrair-se ao almoço, mesmo que a conversa desague em débitos enquanto contorna um copo de tinto e finta as entradas.
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Os dois reuniram-se ao almoço num dia de Março. Nesse dia, Gil saiu disposto a fazer um esforço... ou dois: deixou que o parceiro escolhesse o restaurante e vestiu um fato. Este último é um feito e tanto, ou não fosse o Magriço um trintão com o síndrome de Peter Pan. Enfiou-se num meia-estação cinzento-claro, que bem combinou com uma camisa de azul-pálido. Quis pôr uma gravata, mas a que lhe convinha era alaranjada e não a tinha. Estava muito confortável e bem-posto no conjunto Dielmar – a marca portuguesa que a Rita, miúda afinada no gosto e acertada na moda, o convenceu a seguir – mas estava desgolado e sentia-se despido. Na rua compôs-se, depois de jogar a mão a uma violeta dum jardim, que enfiou na lapela.
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À hora combinada mais uns minutos o Gil chegou à Doca 6 – atrasado porque parou embasbacado a sonhar com os veleiros e para as estrelas de luz no firmamento de Tejo. O Zé disparou perfurante contra o atraso do amigo e parceiro de afazeres.
– Olha lá, isto é que são horas?
– Estás rico ou isso é de imitação? Aposto que o ponteiro dos segundos dá saltinhos. Mandas-me bocas sobre o atraso só para mostrares um Rolex falso? Ora deixa lá ver o teu ChinaTownex!
Já passava do dia 21, já era Primavera e Gil, como a generalidade dos humanos, esquece-se dessas enormidades pequeninas da vida. O ponteiro dos segundos deslizava suave e macio pelo mostrador, tão mais bonito do que os parecidos. Magriço ainda perguntou do que era feito o rosto, mas Zé só respondeu que se chamava Cellinium. Uma voz interrompeu para indicar a mesa, pondo fim a uma conversa que iria dar a números, local onde nenhuma parte ia querer chegar.
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As barrigas davam horas, muitas horas. Primeiro veio do Alentejo um gostoso queijinho de ovelha. O Zé entrou com «mexilhões gratinados com crostas de ervas» e Gil foi para «chévre gratinado sob aveludado de tomate». A escolha do vinho é que ia dando para o torto, com os dois garnisés a trocarem-se de razões sobre o que de beber. A carta está rica e sortida, a sorrir para muitos apetites e carteiras, pelo que cada apreciador fica convicto da sua certeza e atino na melhor parelha para a comida. Deu-se um quase consenso e chamaram um árbitro. Veio à mesa António Mesquita, escanção reputado, que deu assentamento à decisão do Zé.
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O escolhido foi um tinto do Douro com nome esmagador: Churchill Estate 2003. É redondo e bem elegante. Quando chega é um vinho, quando parte é outro, muito melhor. Tem fruta e flores sem espalhafato. Flores? «Flores»! Garantiu Gil. «Talvez violetas», admitiu Zé... «como essa extravagância»... em vez de azedarem, riram. «Violeta, é isso. Mas discreta, como uma viúva antiga. Deve ser da touriga franca», prosseguiu Magriço. O Zé acenou que sim com a cabeça, pois o parceiro às vezes levantava voo e melhor é não contrariar.
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O devaneio foi estratosférico. Fica um breve registo sobre o que se ficou a saber a partir da divagação de Gil a partir deste tópico: «Há cerca de 500 espécies de violeta e algumas florescem em Março. São essas as mais bonitas. Há outras que se dão todo o ano, porque são cultivadas e formatadas em laboratório para que assim seja. Há outras que nunca dão flor, porque só encantam quando tocadas por mestres músicos. A cor da violeta é o triste púrpura, que é de luto pelo e a do Senhor dos Passos. Mas a Provença é alegre, com luz encantadora com os seus campos de lavanda e violetas».
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Alucinado com o comensal, o Zé ia bebendo o Churchill Estate e olhava para a sua cor concentrada como que a procurar um conjunto de cordas a tocar música enquanto se afogava, mas seguia Gil com interesse. Quando este terminou postou sabedoria: « é tinto para beber e para guardar uns anitos, que há-de aguentar-se bem».
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Os pratos comportaram-se com aprumo e simpatia. Mas os aplausos foram para as ligações de vinhos com as sobremesas, sugestões do escanção listadas em carta. Há ali especialidade. Os desseres dessa tarde enfadam ao serem postas em letras, o que é enganoso e injusto. Parecem comuns... parecem. O Zé atirou-se a uma «pêra rocha em vinho tinto com especiarias e gelado de pistacho», mais ao Vinho Licoroso do Esporão, que realça os condimentos e os vermelhos, e é tão delicado quanto o fruto. O Gil preferiu uma «queijada de Sintra» (caseira) emparelhada com um Porto tawny com 10 anos. Dois casamentos muito felizes.
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Este duo tão diferente é mais parecido do que aparenta. Os sisudos que não se aproximem, pois juntos são insuportáveis: divertem-se horrores! Quanto ao assunto da reunião? Foi esquecido. Surpreendente? Já era Primavera e o Peter Pan nunca deixaria...

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