digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, outubro 25, 2024

Cor de expirar


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Há uma cor só de dois dias, não mais de quatro, íntima e infantil. Os anos esconderam-me o momento anual, mas um asterisco cola-o na altura em que se vê o vapor expirado.

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Abria os olhos matinalmente e admirava-a pela pequena janela quadrada do tecto. Tinha-a como a certeza da mãe. Como ave migratória, nunca duvidei da sua chegada e sabedor dos poucos dias do ninho feito no céu.

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Quando vinha, queria estar na rua para ainda a ver, apesar da sua decadência e desvanecimento.

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O tom lilás-azul existe, embora a memória da última vez que a vi esteja deserta. Não a irreconhecerei, se assomar, sei.

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Há umas noites surgiu-me uma outra, ao modo da pessoa velha-conhecida quando nos é apresentada. Estava deitado, esperando o sono, e olhei para a janela.

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O tom tardio é longe do matinal, ainda assim infantilmente agradável. Se não vier breve, venha nos mesmos dias doutros anos ou, pelo menos, seja aneiro.

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Uma pomada macia untada nas asperezas da minha alma ubérrima de ansiedades e tristuras. E morna, bálsamo quando se vê o vapor expirado.

segunda-feira, setembro 23, 2024

Balanço breve de pouca coisa e alguma esperança

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Aos dezasseis anos acreditamos que seremos o que quisermos. Gosto das  noites de negro e azul e via-me a caminhar para onde sabia chegar. Contudo. O tempo apaga certezas.

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Depois de dois anos a estudar artes, no secundário, mudei-me para humanidades. Fora das aulas escrevia, desenhava e fotografava. Comecei no Diário Económico, em Janeiro de 1990, e jornalismo tornou-se a árvore que sorve toda a água da floresta.

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Cansado do quase ócio na escrita profissional – embora não duvide do meu talento criativo e estilístico nem da competência – pensei que voltar ao estirador pode ser uma opção profissional complementar séria e desanuviador da mente. Nas palavras sou João Barbosa, nas artes João 25.

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Em 2022 soube do concurso Luxembourg Art Prize e concorri. Recuperar totalmente a mão direita, a outra não tem remendo porque foi sempre nula, levou algum tempo. Por isso, a quantidade de obras foi pequena e não me senti confiante nos trabalhos mais recentes.

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Senti uma coisa, uma sensação muito íntima, distante há mais de trinta anos: o prazer de pensar, conceber e fazer. Daí para cá, tenho o sentimento juvenil, do tempo um pouco antes da primeira namorada até à entrada no jornalismo. Uma felicidade de libertação.

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Na minha primeira candidatura ao Louxembourg Art Prize apresentei três desenhos e duas pinturas, a mais antiga de 1987 e a mais recente de 2008. Prometi-me, consciente que cumpriria, repetir no ano seguinte. Decisão reforçada por me ter sido concedido reconhecimento de mérito artístico.

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Em 2022 concorri com este desenho de 1987.

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É estimulante, mas. Quando as artes plásticas eram a minha vida, ganhei vários prémios de fotografia e consegui ser selecionado para a Bienal de Artes Plásticas da Festa do Avante, quando a mostra era uma verdadeira referência nacional – era miúdo e acreditava ser comunista, mas a crença durou pouco, pois reparei que não tenho nada a ver com essa ideologia. O Luxembourg Art Prize é milhares de vezes mais difícil, sou humilde ainda que sonhador.

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Catálogo da VI Bienal de Artes Plásticas da Festa do Avante, 1989.
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No ano seguinte, ainda com algumas inseguranças, concorri ao Louxembourg Art Prize com nove desenhos e quarenta e três fotografias. Os rabiscos datam de 2023, mas as fotos foram antigas, a mais velha reportando a 1987. Novamente, recebi a distinção de mérito artístico.

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Em 2023 concorri com esta fotografia tirada em Coimbra, em 1989. Adorava a minha Lomo, que infelizmente está espatifada.
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Gosto de monstros, mostrengos, fabulosos, fantásticos e bestas-feras.
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Pensei em apostar mais na fotografia, quase jurei. Comprei rolos para as duas Canon e para a Rolleiflex, mas não correu como desejava. Foram muito poucas e, mais dum ano depois, ainda não as mandei revelar. Juntei um conjunto de inseguranças – confusões técnicas, dioptrias, receio em riscar os óculos e  sensação de que uma das câmaras está com problemas.

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A segurança viria, teoricamente, com uma câmara digital. Porém, não tenho dinheiro, nem disponibilidade mental, para comprar. A isso acresce a incerteza de que quero realmente fotografar e de ter tempo, porque continuo a escrever, não deixei o jornalismo. A liberdade juvenil passou, estou na meia-idade e vejo o mundo diferentemente.

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Voltei claramente aos desenhos, ainda que tenha pintado alguma coisa. O número de obras de traço chegou às dezenas e preenchi dois cadernos. Esses livros permitiram-me ocupar a cabeça, estimular o pensamento e exercitar a mão direita.

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No momento em que escrevo, apresentei a concurso Luxembourg Art Prize uma pintura e oitenta e três desenhos. Hesito em entregar mais ou poupar alguma coisa para o ano. Entalada na indecisão está uma obra digital que publiquei aqui. https://infotocopiavel.blogspot.com/2024/01/pergunta.html

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O processo de candidatura é monótono e trabalhoso, mas vale-me a empolgação. Sem câmara digital de qualidade, sem scanner e receoso de que a digitalização em loja possa amolgar o papel, fotografei os trabalhos com o telemóvel.

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Este ano apresento sobretudo criptideos de caudas gigantescas.

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Queda de Ícaro, por João 25, a partir da Pieter Bruegel, o Velho. Aguarela, guache e lápis sobre papel.
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A qualidade dos registos fotográficos é fraca: não consegui rectângulos perfeitos – é o problema maior porque distorce –, a focagem é incerta e a luz pode atrapalhar. Por isso, repeti imensamente. Além dessa trabalheira houve o aborrecimento da escolha dos trabalhos. Finalmente introduzir os dados… ano, título, género, técnica, dimensões e descrição.

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Já que fotografei todos os trabalhos, resolvi fazer o mesmo com os cadernos de desenho. Esses livrinhos, através da datação, atestam os anos em que andei distante do estirador e do cavalete.

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O meu pai dizia que desenho como respiro. É verdade: um papel e um lápis ou caneta obrigam-me a rabiscar compulsivamente, uma espécie de vício. Sempre foi assim. Porém, uma coisa são uns bonecos e outra é trabalhar com objectivo.

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Antes dos dois cadernos recentemente preenchidos, tive um primeiro álbum em 1991 e que só o terminei em 2016. O segundo foi preenchido em 2023, tinha apenas um desenho feito em 1993. Comecei o terceiro no ano passado e terminei-o há poucos meses. O quarto está fazendo-se.

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Primeiro caderno: o meu grande amigo Sérgio.
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Segundo caderno: um trengo e o seu habitat.
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Terceiro caderno: répteis criptideos e um gato.
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Há um outro elemento que traduz o meu afastamento das artes visuais: o género. Gosto muito de heráldica e teimosamente desenho brasões, parafernália acompanhante e mais umas coisinhas. Sinceramente, não me dá grande trabalho… é rápido e graficamente simples de colorir sem tinta.

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Comecei um armorial. Todos os meus amigos e pessoas por quem tenho estima receberam um brasão particular. Há uma regra de ouro: não pode existir qualquer relação com armas familiares existentes.

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Esse primeiro caderno está ocupado sobretudo com heráldica. Muito do que lá está nem foi criado por mim, há igualmente desenhos de registo, como, por exemplo, do «emblema» da Baviera – faço recolha de heráldica de domínio e a tarefa é trabalhosa, basta dizer que o Sacro Império Romano-Germânico era formado, em 1806, por mais de quatrocentos «países»

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Os meus desenhos heráldicos iniciais eram conservadores, embora com liberdades. Fartei-me da ortodoxia despreocupada e criei um formato único. Reconheço que o escudo e o ordenamento são muito feios e demasiadamente-extremamente-inacreditavelmente heterodoxos. Um dia terei paciência para redesenhar em papel, por agora estou quieto nesse assunto, ocupo-me com o trabalho profissional.

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Quis ser original, mas a novidade não correu bem. Na fotografia o púrpura ficou assim. Tive a ousadia de usar o proibido laranja.
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A minha imaginação e a necessidade de matar o tédio foram maiores do que o número de amigos. Assim, os mais chegados receberam vários novos desenhos, formando armas complexas.

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Destravado, continuei criando e cheguei a um momento em que tive de trazer ao mundo dos vivos uns países imaginários. Vim a descobrir que não sou o único biruta e aprendi a palavra geoficção.

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E, basicamente, é isto que quis partilhar.

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Descobri, há poucos dias, que aos 18 anos já gostava de vodka com limão.








terça-feira, setembro 17, 2024

Ícaro queixou-se menos

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Não voarei no Concorde, mas não faz mal, nem no Caravelle, e isso já dói.

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Nem no Super Constellation nem no Electra nem no Tristar.

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Nem no DC-8 nem no DC-9 nem DC-10 nem no MD-11. Vou suspirando, qual menina adolescente vendo o cartaz da banda, pelo DC-3, que já aterrou sozinho. Largaram-no e lá foi ele, trabalhador humildemente arrogante. Velho e teimoso, aterrou sozinho.

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O 707, às vezes, fazia vibrar os vidros da minha janela. Ainda estava sobre o Tejo e já o ouvia no outro lado da casa. Corria para o ver chegar e corria para o ver ir embora. Não voarei.

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Voei no 727 e no Tu-154, que têm parecenças. No Boeing entrei pela traseira, sob o motor do meio e no soviético foi pela frente, sentei-me mesmo ao fundo, sob o engenho central.

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Gosto do 737… há tantos. É como as louras na Escandinávia, por tantas, prefiro as morenas mediterrânicas, e metade das vezes ao contrário.

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Infeliz, não melancólico, pensando no 747, que já não se faz. Devia ser proibido deixar de construir a Rainha dos Céus… por que não um fundo, das Nações Unidas ou da União Europeia, para proteger o passarinho cabeçudo?

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Nem no VC-10 nem no Il-62. Há tantos… a mim, que não tenho cagufas de voar, não me apanham num Comet. Como se houvesse um Comet para apanhar. Não voarei.

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Havia tantos e agora há tantos que não voarei… lembrei-me do VFW-F 614, esquisito como… escaganifobético, esdrúxulo, com aquelas asas… um zingarelho, uma mofamagarifamafofinha, que tem um ninho com sete mafamagarifamafofinhos. Voava cuncatoriamente, quase de certeza. Tão feio que não há foto de jeito para mostrar.

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Sim, o 787 é bonito, mas eu, sem dinheiro, não tenho o outro lado do mundo para ir. Só este, porque o Boeing são iguais aos Airbus e os Airbus são todos iguais. Rezo tanto.

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Não me falem no A380, que também é diferente. Pois é. Pois é um trambolho grande, mais feio do que uma francesinha a transbordar do prato.

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Já que falei numa mixórdia do Porto… ou dos arredores… fui para lá na barriga da minha mãe, num Caravelle.

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A minha primeira vez foi de Faro para Lisboa e do alto percebi que o Algarve é talqualmente no mapa, definido pelo Guadiana, o Atlântico e as serras.

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Do Porto, do FCP, não sei. Sei que não verei jogar o Peyroteo, o Eusébio nem tampouco o Matateu.

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Já ouvi:

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– Lisboa tem a águia, o leão e a cruz de Crist’e, o Porto tem a pantera e o dragão, animal que não existe.

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Tantas lamentações e mais o calor tardio que está lá fora e também cá dentro. Cerveja? Não beberei nem irei a lado nenhum.

segunda-feira, setembro 16, 2024

Não há eléctricos em Braga

 

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O que é a mentira?

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A pergunta faz pouco sentido, porque notável é a verdade. Por precaução, perguntamos pela veracidade, é isso. Contrariamente, afirmamos:

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 – É mentira!

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Ou artificialmente contornamos, falando o mesmo.

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Levo anos, frequentemente, até perceber evidências. Não sei se é por falta de inteligência ou pouca atenção, mas arrogantemente posso proclamar-me prudente. Espero, contudo, que colha sabedoria por essas pausas.

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Passei por tolo muitas vezes – ninguém mo disse, directamente ou, se o fez, não entendi ou olvidei – desdizendo essas provas. Sinto-me idiota, não pelo que não entendi, mas pelo que desdisse.

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– E se Pilatos tivesse dito:

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– O que é a mentira?

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O que seria de nós? Em que estado estaríamos se o episódio bíblico fosse doutro modo? Que debatam os doutores do pensamento, mas não haverá nem zero nem infinito.

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O meu apatetamento amplia-se dentro de mim, sentindo os castigos dos outros, mais brandos, e os meus. Talvez os outros nem tenham.

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A palavra da hora é a «inverdade», o seu estuário e donde desagua. Conversava, pensava eu estar ensinando, com um miúdo, a quem tenho por obrigação entregar conhecimento, sobre o significado de mentira.

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Dizia ele que se não é verdade é porque é mentira. Não tão claramente, desmentia-lhe e explicava. Ele, por teimosia de sono ou contrariedade infantil, não desistia. Cito-me nas próximas vezes, as suas respostas não importam, porque foram iguais.

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– Mentira é quando se diz, conscientemente, uma coisa que não é verdade.

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– Mentira é quando se diz, com maldade, uma coisa que não é verdade.

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– Se dissermos uma mentira porque alguém nos disse, e acreditarmos, não estamos bem a mentir.

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Estou perplexo por ter conseguido segurar uma afirmação imprecisa, em que as coisas são absolutas, e tornar tudo mais complicado. Como se tivesse aberto um relógio para explicar como funciona, não o tendo conseguido e ficado com peças de sobra ao remontá-lo.

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A «inverdade» ocorreu-me quando vi uma imagem datada, dum episódio ocorrido antes do meu nascimento e que julgara, de algum modo, ter sido coevo. Em instantes chegaram-me situações diversas do uso das palavras «verdade» e «mentira».

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Os políticos são mestres em retórica e se acumularem com conhecimento jurídico fazem naperões com artifícios linguísticos – mestre deve ler-se sábio, mas sabe-se que nem todos os mestres são mestres, se digo mestre é para facilitar. Na oratória repete-se a palavra «inverdade» – recurso abusado quando há pouco de substantivo e quase tudo de partida de ténis, possivelmente o desporto mais enfadonho.

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– O que vossa excelência disse é uma inverdade!

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Quem sentencia chama mentiroso ao outro e todos entendem. Na resposta, o visado não acusa a estocada que o opositor deu não dizendo. No espelho o direito é esquerdo, verdade e mentira.

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Aprecio o texto complexo e o virtuosismo do escrever, mas não é por gostar da pintura barroca flamenga que tenho de me deleitar com a escultura barroca portuguesa. A palavra «inverdade» tem-me agoniado até às veias.

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No entanto, a inverdade não é afinal só perversa, como a tenho avaliado. Quem a criou merece um Nobel qualquer – talvez a tenha gerado malignamente, mas tem uso bondoso, como a nitroglicerina serve para partir a rocha das minas, matar e dilatar as veias do cardíaco.

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O que me faltou, essa palavra, naquela conversa avessa.

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– A mentira que dizemos julgando ser verdade é uma inverdade.

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É brilhante! Não a minha descoberta, mas a invenção.

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Nota: na memória tenho um passeio por Braga, na década de oitenta, em que viajei de eléctrico. Afinal, estão parados desde 1963.

sexta-feira, setembro 13, 2024

Arestas

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Amaina e volta e retorna e regressa desatinado, o mar. Maravilhado numa angústia de amor, a que se obedece por não poder outra.

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Não sei se lhe gabe as ondulosas virtudes femininas ou lhe tema a ira do marido contrariado.

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Olho-o aprisionado, como os antigos. Tal faria eu se tivesse o céu nocturno inteiro, com todas as estrelas, as mortas e as vivas, como no tempo dos velhos.

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Não sei se o mar é verdadeiro ou um teatro e não sei o mesmo dos luzeiros celestes. E são diferentes.

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O camponês, ignaro da letra, lia o céu e não há vidente que saiba de mar. O firmamento é verdade e o corpo marítimo é a contradição repetente e irrepetitiva.

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O mar, o que é? A verdade é verdade e se o não é, é porque se permite. A fotografia não me elucida, nem a sisuda nem a fingida.

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Vemos o mar, o que deixa. Seja na claridade barroca ou na taciturna melancolia da névoa – dos mesmos modos nas noites, nas suas diferenças.

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Do céu? Se a nuvem se afastar e à noite ainda mais, com a permissão das lâmpadas.

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As estrelas desenham-se com poucos traços e as ondas com muitos riscos. Contudo, o céu e o mar não têm arestas.

domingo, setembro 08, 2024

Azul, azul de azul tão azul

 

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Receio tocar no assunto, porque ao fazê-lo sei que a porta se abre e voo para baixo, e a queda não finda.

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Penso em madeira: o caixilho da janela, o soalho como mosaico ou o piano.

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Poderei sair e ver o céu que prevejo azul, azul de azul tão azul.

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Do chão não passo e o teclado dar-me-á. Dará ao dará, o que for, voto por azul.

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Contemplo as teclas, adianto a direita, a esquerda enjeitou-me, hesito como num salto. Não sei tocar nem cair.

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Da fenestra para dentro há luz escurecente do ânimo. Claridade feia, podia calar-se a revelar-me o estado da minha alma, conheço-a da sentir.

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Escolho uma cadeira para ver o azul.

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Nesse meu sonho as pernas esticam-se correndo para a pedra da janela onde deixo os pés libertos.

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Estou na prisão, por não saber fazer mais nada.

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Não quero saber, se dizem amavelmente haver azul, tomo o rebuçado dessa cor, apago a luz da sombra e, sem olhar, contemplo os destroços como uma obra de arte.

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Resto de olhos fechados com o sorriso mais azul. Ninguém mo roubará. Lá fora é azul e esconjuro bicho.

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Azul, azul de azul tão azul.

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Não volto a tocar no assunto! A arte é o que se quiser e quero que seja.

quarta-feira, setembro 04, 2024

O branco, se devaneio, sonhei ou minto

 

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Foi um branco de dourado barroco, numa sala ambarina – um templo consagrado pelas chamas dos círios, onde vozes dos ausentes não entram e dos presentes se cativam  – verteu-se com cerimónia, silenciosa reverência e ansiedade infantil.

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Regrando silêncio casto, pecando por vontade boateira, em custo liberto duas verdades amplas e opacas. Genéricas para esconder e obscuras por desconhecer palavras de justiça, sou mero iniciado, e não virtuoso pudor.

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Aromas raros e paladares de mistérios.

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Um vinho de biblioteca restrita e regiamente nocturno. Sugeri conhecer o claviculário e a tranca da estante invisível e bebi-o fingindo saber carolíngio.

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Tocou-me a boca como o fantasma se encosta na vidente. Deixei-o ficar e em segundos de paz alvoroçou-me, como a dor do orgasmo. Engoli-o e fez-me seu escravo. Por ele recebi a bondade magnânima de Deus e a maldade rechonchuda do Diabo.

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Subi a escada celeste e numa nuvem… conte o quiser quem quiser, resto em silêncio cartuxo.

terça-feira, setembro 03, 2024

Astronauta

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Tenho de ir a Wuppertal, porque tenho de ir. Prevejo-me homem-do-futuro reconhecendo a casa dos seus distantes avós. Não vou procurar o passado, sou quase alérgico à saudade, sinto que preciso de fazer as pazes comigo. Contudo, não matei e fui feliz.

 

sexta-feira, agosto 23, 2024

quinta-feira, agosto 22, 2024

Barbas e bigodes

Irei sempre lembrar-me dos meus mestres. Escrevo o que pretende ser um agradecimento aos três que partiram do mundo material.

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Um dia um amigo podia ter-me ensinado a escrever, fê-lo não fazendo. Não foi um bê-à-bá. As conversas que partilhou, desde a minha tenra adolescência até ao meu adultecer, ensinaram-me mais do que se tivesse estado sentado comigo à mesa do estudo.

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O Eduardo Guerra Carneiro deu-me, numa generosidade que ele próprio talvez não soubesse, transfusões de conhecimento e de sensibilidade. Sabedoria de poeta, mesmo quando não estava a poemar. Confesso que li pouco do que escreveu, mas o que me passou pelos olhos é grande.

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Não me tornei jornalista por causa do Eduardo. Contudo, a visita guiada ao Diário Popular é, ainda hoje, maravilhosa e a memória tem uma distância de quarenta anos. O jornal tinha uma dimensão enorme, da vida dos telefonemas e do teclar nas máquinas-de-escrever à vida dumas máquinas muito maiores que ruidosamente coloriam o papel com as palavras que seriam lidas pelo público.

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Fui parar ao jornalismo por causa dum desgosto de amor. Não sei se o consolo não deu em castigo… a desgraça original já não me dói e a moça ficou sempre amiga. A outra? Enfim. Assunto terminado.

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Em meados da década de noventa achava-me maduro, consciente que aprendera com bons mestres e amigos: o Goulart Machado, o Maurício de Carvalho e o Mário Rosendo. Os dois primeiros foram muito pragmáticos: diziam o que pretendiam, liam a minha escritura, explicavam e mandavam-me alterar o entendiam. Além do Eduardo, que foi mestre sem nunca ter trabalhado com ele.

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O Mário quase me dava reguadas. Eram castigos e gargalhadas. Não foi com bê-à-bá, ensinou-me com o riso e o açoite, desde o picar-o-ponto até ao apanhar o táxi após uma noite de copos.

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O Eduardo, o meu primeiro mestre, não era dado a graças, embora se risse sempre com as minhas anedotas e disparates, mesmo quando não gostava. Nessa vezes comentava curta e amistosamente:

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– Oh Barbosa!...

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Penso ter sido humilde, no início… possivelmente até mais uns aninhos. A realidade pode ser parede ou almofada, ou pedra almofadada. Volto atrás: em meados da década de noventa achava-me maduro, consciente que aprendera com bons mestres.

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Estava no Diário Económico e um dia sentou-se à secretária à frente da minha um homem de meia-idade com um bigode anacrónico. Pareceu-me seco, quase sisudo, e aborrecidamente chefe. Essa impressão durou «cinco minutos».

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O João Paulo Guerra ensinou-me que nunca se sabe escrever, vai-se aprendendo, permanentemente, a grafar e a pontuar o que se vai pensando, exigindo cogitar melhor. Não me disse como bê-à-bá, bastou-me despachar trabalho com ele e receber transfusões de humor.

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Portanto, deu-me com uma pedra almofadada. Ainda hoje me dói essa felicidade.

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Um dia o João apareceu sem bigode. Pareceu-me bem, mas esquisito. A impressão durou «cinco minutos». Comentei, a depilação, com o Eduardo, que usava barba. Uns tempos depois, num jantar, disse-me que se tinham cruzado.

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– Tens razão, ficou esquisito.

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A impressão deve ter-lhe durado os mesmos «cinco minutos».

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Só para memória futura: o Mário, igualmente amigo do Eduardo, também usava bigode. Era um aristocrático à moda de Eça de Queiroz. Aliás, tinham parecenças fisionómicas. Porém, essa cabeleira facial, esteticamente mais antiga, parecia-me menos anacrónica do que a do João… sei lá... que mais tarde deixou crescer a barba.

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O Eduardo tem razão: isto anda tudo ligado.

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O Mário partiu há trinta anos e o Eduardo há vinte. O João foi, há dias, ter com eles. Porque acredito que a morte não existe, suspeito que estejam os três à conversa.

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Na lista dos meus defeitos não consta a ingratidão. Estou grato ao Mário, ao Eduardo e ao João, não pelo que me ensinaram, mas pelas suas amizades. Apesar da amizade não se agradecer.

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Como não acredito na morte, reafirmo que, provavelmente, estão os três à conversa.

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Nota: Guardo, obviamente, gratidão ao Goulart e ao Maurício. Espero encontrar-me com eles, sempre para um curto prazo. Mas a recente partida do João obrigou-me a elogiar os que fecharam a edição na Terra.

quinta-feira, abril 25, 2024

A besta da ditadura contra todas as flores

 

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Cinquenta anos de liberdade. Obrigado a quem lutou por ela e a tornou viva.

Cinquenta anos de liberdade

 

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A besta da ditadura contra todas as flores
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Serve de registo a duas datas. Uma é íntima e outra portuguesa. Ficam as minhas palavras de gratidão e de soberania. Se chegarei a ser polémico? Digam os juízes. Tomo a liberdade de ter liberdade.

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O meu pai faria hoje cem anos. Em casa não havia aniversário, a festa era a da alegria da liberdade. A data nasce dele e nele se encerra, por ser, provavelmente, quem mais me moldou.

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O Manuel Jorge disse sempre claramente que o melhor dia da sua vida foi o 25 de Abril de 1974, calhou-lhe no momento dos seus 50 anos. Mais do que o nascimento dalgum dos três filhos. A sua genuinidade, demasiadas vezes inoportuna, dava-lhe justificação das palavras e perdão dos outros.

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A minha memória do 25 de Abril, acontecido quando tinha quatro anos, não é a da data da revolução que veio a impor a democracia. É um ramalhete de momentos irmãos desse dia histórico. Sei que são lembranças, total ou parcialmente, equívocas e desacertadas no tempo, mas tenho-as.

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Guardo duas memórias – obviamente forjadas pela imaginação por só me narrarem – de manifestação de amor paterno, que não era dado a ternuras nem manifestações verbais de carinho. A primeira delas é a do sismo de 28 de Fevereiro de 1969, em que não era nascido, e outra é a do 25 de Abril de 1974, quando certamente estive mais interessado em brincar com os carrinhos.

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O meu pai, sentindo o prédio a oscilar, foi buscar a minha irmã e o meu irmão, de catorze e nove anos, e fez um ninho na cama. Nesse tempo era viúvo e esse gesto enche-me de ternura, especialmente por causa do meu mano. Dizia:

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– Se fosse para morrer, morreríamos juntos.

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O meu pai era frontal, amigo do seu amigo e de ideais mas não era temerário. Ensinou-me que ter medo não é vergonha e não respeitar o perigo é irresponsabilidade. No 25 de Abril o país estava agarrado aos rádios e em alvoroço nas ruas. Segurou os meus manos, de 19 e 14 anos, e não os deixou ir para os festejos. Prudência alimentada pelas décadas de repressão política.

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A minha colecção de momentos do 25 de Abril tem certamente confusões, lapsos e invenções. Lembro-me duma vez, já de noite, em que houve um tarantantã qualquer e o meu pai saiu de casa com uma pistola. Foi numa data importante do processo.

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Não sei se saiu. Não sei se levou uma pistola. Não sei se tinha pistola. Não sei se era noite. Não sei se aconteceu. Na minha cabeça foi real e senti um grande orgulho no meu pai, como se fosse um herói.

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No 11 de Março de 1975 – data que cito sem qualquer rigor, por crença – ouvi tiros e lembro-me da minha mãe estar muito ralada. Não percebia nada do que se tinha passado, estava a acontecer ou poderia suceder, mas dalgum modo senti o frenesim dos grandes momentos.

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A saudade é um sentimento – na verdade um ramalhete de sentires – que frequentemente é irracional. Como sentir com apreço momentos terríveis, cuja razão se deve à idade que se tinha à época a que se reporta. É aí que se enraíza a nostalgia.

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Não tenho inveja das gerações anteriores nem posteriores à minha. Não daria nada para viver a euforia do 25 de Abril. Não cultivo as minhas datas e muito menos sou nostálgico dum tempo que não vivi. Isto não significa desinteresse nem desvalorizo a luta pela liberdade.

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Por não ser nostálgico é que me enfado com o passado e me irritam as repetições. Reviro os olhos cada vez que oiço o «Grândola, vila morena», porque cansado da linda música e generosos versos, e não uso cravo vermelho no peito – sabe quem sabe e tem rigor que a flor das ruas era de todas as suas cores, não apenas a rubra – nem doutra coloração. Nem rosas, orquídeas, lírios, jarros, gladíolos nem outra nem de papel.

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O 25 de Abril não é essa canção nem a doce e perfumada roda recortada. É um conceito e um conjunto de acontecimentos. Não me tomem por ingrato, só não aceito liturgias e rezas da tradição. Sou consciente e agradecido, mas não estive nesse momento, passado que não é meu.

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Valorizo o significado do 25 de Abril e respondo com desprezo aos salazarentos. Aliás, só entendo a raiva ao 25 de Abril daqueles que perderam alguma coisa com a chegada da liberdade. Os outros nostálgicos são ou ignorantes ou imbecis. O inculto, se tiver génio de curiosidade e boa-vontade, ilustra-se, lavando-se com estatísticas. O outro é bruto e tacanho como o Estado Novo.

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Tenho pena de ter deitado fora uma pintura minha de quando tinha quatro ou cinco anos, ainda frequentava no jardim-infantil. No papel de cenário pintei uma pessoa, uma metralhadora da sua altura e outra coisa que não tinha nada a ver – teria no entender da criança.

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Na escola pintei helicópteros a despejarem cravos e metralhadoras com cravos, como todos os miúdos. As flores a tombarem do céu era um momento real e obrigatório em nós, certo como o amor materno.

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Ando há mais dum mês a escrever este texto. Ando com a certeza de que não conseguirei expressar claramente o meu sentimento. Recorri ao meu pai como ferramenta e saiu pobre, a obra. Perdido, resumo:

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O 25 de Abril é muito importante para mim! Viva a liberdade!

A Paraquedas fez 19 anos

 

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A Paraquedas completou ontem dezanove anos. O que se diz a uma gata desta idade?

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Digo-lhe tudo o que disse durante todos os anos da nossa vida comum.

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Por alturas do Entrudo, a família estremeceu quando, ronronando baixinho, por duas vezes se escondeu. Só com um quilo e meio, desatenta e de olhar vago. Esteve com três patinhas no Outro Mundo. Porém, a Paraquedas não quis ir, não sei quantas das suas sete vidas gastou, pesa dois quilos e cem.

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Parabéns, Paraquedinhas.

quarta-feira, abril 24, 2024

O cão mais feliz do mundo – 2024



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A adopção do Bobi é dos momentos mais importantes da minha vida e enche-me o coração de orgulho-bom e de gratidão por tudo que me deu – nos deu. Um cão feliz, possivelmente o mais feliz do mundo.

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De idade incerta, viveu à volta de vinte anos, para mais. Teve uma vida dura. Sofreu violência física que lhe custou dentes da frente, a fractura do maxilar e um olho para fora. Suportou um banho de água quente – embora não ao ponto de pelar. Foi envenenado. Por pouco não perdeu uma perna – derivado duma ferida causada pela corda com que o prenderam por maldade. Abandonaram-no para morrer, com pouca água e nenhuma comida. Além de doente cardíaco, com efisema pulmonar e portador leishmaniose.

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Porém, foi o cão mais feliz do mundo e o mais grato. Tão doce que podia causar diabetes a quem lhe dava festas. Tinha um olhar muito meigo, pedia constantemente mimos, sempre carente, mas ciente que não lhos negariam.

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Sempre a dar à cauda quando via um dos seus três humanos, a Manga, a Paraquedas ou a Valsa. Muitas vezes não vendo nem ouvindo ninguém, de costas, para nós e amigas, e olhando para a frente, continuava a agitá-la. Não lhe faltava motivo para o fazer, estava feliz. Estava sempre feliz.

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Meigo e feliz mesmo quando a Valsa aparvatava e se armava em gata, dando-lhe patadas ou até o perseguindo para judiar. Fugia com a cauda entre as pernas, mas a dar-a-dar como se ela o estivesse a mimar.

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Ganhou cuidados de saúde, carinho, chão quente, almofadas, uma matilha – contando com as gatas – e um nome. Um nome ou mais. Por tão carente respondia também por Bibope, Bigode e Manga. Ganhou a alcunha de Cão do Demónio, porque uma vez, no segundo dia de estar connosco, se desenvencilhou da coleira e desatou a correr pelo centro de Lisboa. Desconfiava dos humanos e desdenhava do odor dos consultórios veterinários. Velho, doente cardíaco e só com três pernas funcionais corria como um jovem atleta.

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Precisámos de quase duas horas para o apanharmos, o que só possível com a ajuda de duas outras pessoas. Fantasiando, quando nos via olhava-nos, com olhos vermelhos e expressão diabólica, e fugia.

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É conhecida a generosidade dos cães e o Bobi ofereceu-me uma surpresa de molhar os olhos: Custa-me a suportar o ladrar, cria-me ansiedade. Ainda distante do momento da partida, foi deixando do fazer.

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Tendo em atenção a proporção, tinha uma bexiga considerável. O tratamento da leishmaniose obrigou a ida diária ao veterinário para receber uma injecção. A casa e o consultório distam um quilómetro e meio, na ida e volta levantou 52 vezes a pata para urinar, de tão impressionados decidimos contar.

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Lido bem com a morte, mas um cão triste entristece. A Manga está triste. Por vezes fica com a respiração de ansiedade e o seu olhar aperta o coração.

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Hoje pensava festejar os dezanove anos da Paraquedas. A celebração fica adiada para amanhã.

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Também não me cansei


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Se vivendo numa esfera, ou somente num círculo, a cabeça não rodaria mais.

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Não sendo um rio, as lágrimas desceram e hoje não se diluíram na água dos vinte e cinco metros.

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Braçada e pernada pedem demais para se poder pensar. Num tempo infinito não há outra coisa senão ir e voltar. Hoje, não.

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O infinito quando acaba é como o momento de acordar da sesta. Ainda os problemas, mas as ideias, como fruta madura que tomba da árvore para saciar com açúcar e vitaminas, ficam espertas.

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Hoje braços e pernas não foram fortes e a tristeza nem se cansou.

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Um corpo boiando é melancólico e a melancolia é um corpo boiando na piscina.

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Não deixo. Também não me cansei.

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Soluço cloro.

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Soluço cloro, mas não deixo.


Dançar slows

 

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Bola-de-espelhos no final da noite. Quadradinhos luminosos incansáveis.

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Os sapatos apegados aos despojos da cerveja dizem ressaca e bebedeira em partes iguais.

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Vago olhar, triste e confuso, fixando os olhos imparáveis. Perdi a miúda por causa daquele copo mais. Não sei se por ter ido ao balcão ou.

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Tenho a boca pastosa e não gosto da música que toca aqui.

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Onde está a miúda? Não bebi esse copo, não foi por isso.

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Ainda há pouco a sala estava cheia, agora só os sempre-em-pé, os dos gargalos de cerveja e dos copos com mais gelo derretido do que uísque.

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Estou ao pé, sou um deles, assim perdi a miúda que nunca ganhei, certamente nem me viu.

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Esta música já era velha quando, há muito tempo, eu era novo. Esta música já era feia quando, há muito tempo, eu tinha borbulhas.

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Quando eu era novo havia sítios onde se dançava agarrado.

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Hoje ninguém dança slows, ainda bem.

quarta-feira, janeiro 03, 2024

Pergunta


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– O que fui fazer?

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Questão salva-vidas, faço-a antes de mergulhar e oiço-a antes de partir como se tivesse chegado.

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Fico pairando vendo-me indeciso e, às vezes, choro e, às vezes, apático-me.

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Não importa, porque o que a cabeça sente já a boca disse.

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Ainda assim, ninguém me vê despido na rua. Sinto vergonha como se reparassem.

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Porque a boca já disse, recair é mais triste.

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Saberem-me é um corte da desgraça. O infortúnio é uma humilhação.

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Perguntei, esperando uma resposta de bom conselho:

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– E agora, o que fazer?

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Ter-me-ão respondido ou alguma centelha minha recitou?

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Andarei pardo, mais do que andei. Serei uma janela fingindo uma luz. Calar-me-ei como não é devido.

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Que ninguém saiba.

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– O que fui fazer?

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Questão salva-vidas, aproximada dos 400 miligramas azuis, mas sem o sorriso da ilusão.

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O bicho vive e morde e nem sempre as azuis, balas-de-prata ou a estaca, o acalmam e lhe dão sono.

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Abri as janelas antes das paredes me fecharem sem elas nem portas nem lâmpada. Faço a pergunta.

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Fui para a chuva – agora chove – levando nos olhos todas as maldições e promessas que carrego.

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Sob a água caminho rezando a salvação, crendo diluir os feitiços e desdizer os juramentos.

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Quando morde, mordo-o com azul, brado-lhe a devolução dos enguiços e o desatar dos votos.

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Hoje, não. Estou cinzento entalado entre as lágrimas e a letargia.

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Faço a questão e desminto, o mais teimosamente destemido, toda a ditadura que me deseja.

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Hoje é difícil e amanhã não precisarei de perguntar.

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Não vou passar essa vergonha!

quinta-feira, dezembro 28, 2023

Bomba de muitos caninos


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Sem raiva, sou mais de lágrimas do que de dentadura de muitos caninos.

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Tenho uma infantil esperança, que é longa. Não vejo a escuridão na luz e da cegueira no breu só ouvi.

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A minha dieta é ácida e como de olhos fechados. Se não vejo o azedo é por crer não engolir iguaria estragada. E se é requintadamente avariada.

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Não vejo as travessuras malévolas das traições nem oiço silêncios podres. A mentira é irmã da intriga, não escuto nem enxergo. Desconheço.

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Gostava de ter uma bomba, saber manusear a bomba, querer accionar a bomba, usar a bomba e ouver a bomba rebentar com tudo que me rebenta. E que me vejam vê-los vendo-me mandar a imundice para a indiferença e desremelando-me para jamais.

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O coração-menino não tem ira na zanga, por ingénua fé sente apenas mansidão. Fico frágil e finjo estar bem. Contemplo o sangramento e digo, por coração-menino, não ser nada.

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Menino teimoso, surdo e tolo, continuo a acreditar, porque a esperança é longa, mesmo morrendo vagarosamente todos os dias. Creio por só saber crer.

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Choro, faço-o competentemente e sem mentir. Alguma coisa haveria de saber fabricar.

segunda-feira, dezembro 25, 2023

Desabafo acerca do (meu) Natal

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Gosto muito do Natal porque amo quem amo e fico-me nesse sentimento que roubo emprestado. É só isso, nem mais uma bola na árvore-de-natal ou ovelha presepiana. Os sonhos enjoam-me só de pensar, as rabanadas agonio-as antes das ver, aceito os coscorões secos de óleo, ou até azeite, mas o Bolo-Rei é quando-sempre quiser.

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Explico seguidamente, de frente para trás ou inversamente, porque o destino da viagem é o mesmo e a paisagem não muda. Como maré, ora preia ora baixa. A alta não é maré-viva e a outra está um pouco mais ou menos no mesmo tamanho.

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Apesar de tudo sou teimoso, se me dizem uma coisa ou não a falam. Penso que não é indecisão nem incerteza, possivelmente é incapacidade para perceber. Quererei saber? Nesse pensamento procrastino, não preguiço. Desimporto-me, mas vendo tantos interessados aprecio sem paladar. A vontade é feliz e minha.

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Sou feliz por ver gente feliz, as pessoas que amo. Não minto nem me confundo, já sabendo que baralho a quem digo, abraço e beijo.

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Um dia obrigaram-me a não gostar do Natal. Insisti que não, expliquei por que não. É muito difícil de encontrar uma palavra que signifique não, tão perfeita na sua função. Por mais que contasse do desapego, fui incompreendido e forçado a aceitar sem ver. Há gente burra! Asna teimosa impondo a sua luz de escuridão. Lá publicaram uma estória em que eu era uma pessoa inexistente ou escrita erradamente.

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Indo antes dessa conversa com o tolo, houve um curto tempo em que o Natal se ligou ao coração-pulmão e viveu feliz ou assim-mais-ou-menos-mal-iludido. Por causa duma miúda, gastei uma coluna de opinião declarando-lhe amor naífe e glosando fofuras.

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Antes dela, o vazio indiferente, o mesmo de sempre. O Natal é quando um homem quiser, sendo que ou não sou homem ou não quero.

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Caminhando com os calcanhares para a frente, durante uns anos celebrei o Natal igualmente porque fazia feliz alguém. Sempre a mesma verdade, mas sem fingimento. Não minto, ainda menos a quem amo, interesso-me, partilho, beijo e vou deitar-me feliz.

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Chego ao tempo presente – voltarei ao antigo – que começou há onze anos. Quando se tem uma criança, o Natal é diferente, tudo é bonito no sorriso e no abraço. O menino cresceu e a festa não se foi embora. Anualmente alegro-me com a alegria de quem gosto e junto, com árvore-de-natal, minúsculo presépio e presentes.

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Por muitos anos houve a tradição do jantar de vinte-e-seis em casa dum amigo dos maiores e pessoas acarinhadamente importantes. Uma generosidade quente, com grandes conversas e brindes. Hoje não há, mas a memória é sóbria, encantada e feliz. Como não sou nostálgico, não os suspiro, mas todos os dias desse dia são esse dia, que foram muitos, e não há vinte-e-seis que não seja esse dia, hoje e certo de todos os anos de amanhã.

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Em casa dos meus pais deixou de haver Natal. Cresci e por razões doutros não conto nem é importante. Digo dalguns dias muito felizes: num, não me lembro, contava-me a mãe, soltei uma expressão de surpresa e satisfação vendo tantos presentes; outro foi quando ganhei um batiscafo com dois mergulhadores e fui enfiar-me na cama da minha avó; mais tarde eram as colectâneas dos sucessos musicais, desde os pirosos abomináveis aos fabulosos.

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Infelizmente, o abrir das prendas tinha sempre alguns ácidos. Quando a expectativa, iluminada e elevada pelo papel de embrulho, era espatifada por serem cuecas ou meias. Nunca percebi por que algumas pessoas oferecem roupa às crianças, isso é para os seus pais. Guardo rancores contra incertos.

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Em casa dos meus pais deixou de haver Natal e passou a só haver rabanadas, porque era o que o meu pai gostava e, por isso, a minha mãe fazia. Em dado ano, por insistência minha, surgiram os coscorões, que agradavam a todos. O bolo-rei não faltava, mas não se fazia em casa e não conta nestas emoções.

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O dia de escrever a carta ao Pai-Natal era sempre importante e eu era contente, pela esperança de muitos brinquedos e pela tradição. Mesmo depois de terem assassinado o bonacheirão, escrevi-lhe durante anos, sabendo que a missiva não chegaria ao Ártico e que era a minha mãe quem a lia.

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Há quem pergunte: o que pediste ao Menino Jesus? Era claro que Menino estava deitado nas palhas do presépio e que, mais tarde, foi pregado numa cruz. Não entendia e não entendo por que se lhe pedem presentes. Contrariamente, o Pai-Natal tem como profissão entregar prendas – clarinho como a neve da Lapónia.

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Na primeira classe fui vítima de violência por colegas – hoje diz-se bullying. Primeiro foram as nódoas negras – as agressões nunca pararam até ao final do ano lectivo – e depois o homicídio.

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Fiquei muito triste quando mataram o Pai-Natal. Foi na escola e aconteceu nas vésperas ou dias seguintes à festa. Eu disse qualquer coisa acerca do senhor e outros miúdos disseram que não existia.

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A grande maioria dos pais dos meus colegas era de esquerda, sobretudo do Partido Comunista. Portanto, a morte do Pai Natal foi um atentado e todos os natais foram uma revolução bolchevique.

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Além das cuecas e das meias, houve um presente que me desgostou bastante. Foi oferecido com amor e carinho, por bem de mim, mas que me chateou. Um disco que nunca gostei e ouvi-o muitas vezes, tentando apreciá-lo:

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«Os operários do Natal», um álbum em que Carlos Mendes, Fernando Tordo e Paulo de Carvalho, cantavam versos de Ary dos Santos e Joaquim Pessoa, enaltecendo os trabalhos árduos daqueles que construíam a festa. Qual é a magia do lenhador, da costureira ou do pasteleiro?

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Os amigos são o nosso bolo de Natal /cada amigo nosso vale mais do que um Pai Natal / é um irmão nosso que trabalha no Natal / e com suas mãos faz a diferença do Natal.

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Eu gostava do Pai-Natal e, nesses tempos, não tinha nascido o Bob, o construtor. Os amigos são os amigos e a família é a família. O Pai-Natal, mesmo depois de assassinado, tinha magia e encanto, com gargalhada rompendo as barbas. Não o via melhor do que os amigos e família, era doutra dimensão. Eu era inocente, mas percebia as diferenças.

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Possivelmente foi quando comecei a detestar o neorrealismo.

quarta-feira, outubro 18, 2023

Um não-sei-quê, uma cárie perdida no caminho

 

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Tenho um orifício entre o coração e a alma, por onde entra ártico ou sulfúrico. Bicho bichano, dissimulado e ágil.

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Tão temido, por razão ou sofrimento antecipado.

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Se bate, espera-se a tão esperada valentia, recitada nos dias fáceis, e desejando uma cárie picando enganada no caminho.

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Um não-sei-quê que pode ser o amor ou o bicho da morte-vida ou a lembrança descabida ou uma burla de víscera.

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Valha-me o azul, certeiro atirador, implacável com premonições das bruxas que vassouram apascentando o fígado-estômago-pulmões-coração-cérebro-alma.

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Se o azul não matar, é uma cárie que se enganou no caminho.