O que é a mentira?
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A pergunta faz pouco sentido, porque notável é a verdade. Por precaução, perguntamos pela veracidade, é isso. Contrariamente, afirmamos:
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– É mentira!
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Ou artificialmente contornamos, falando o mesmo.
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Levo anos, frequentemente, até perceber evidências. Não sei se é por falta de inteligência ou pouca atenção, mas arrogantemente posso proclamar-me prudente. Espero, contudo, que colha sabedoria por essas pausas.
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Passei por tolo muitas vezes – ninguém mo disse, directamente ou, se o fez, não entendi ou olvidei – desdizendo essas provas. Sinto-me idiota, não pelo que não entendi, mas pelo que desdisse.
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– E se Pilatos tivesse dito:
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– O que é a mentira?
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O que seria de nós? Em que estado estaríamos se o episódio bíblico fosse doutro modo? Que debatam os doutores do pensamento, mas não haverá nem zero nem infinito.
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O meu apatetamento amplia-se dentro de mim, sentindo os castigos dos outros, mais brandos, e os meus. Talvez os outros nem tenham.
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A palavra da hora é a «inverdade», o seu estuário e donde desagua. Conversava, pensava eu estar ensinando, com um miúdo, a quem tenho por obrigação entregar conhecimento, sobre o significado de mentira.
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Dizia ele que se não é verdade é porque é mentira. Não tão claramente, desmentia-lhe e explicava. Ele, por teimosia de sono ou contrariedade infantil, não desistia. Cito-me nas próximas vezes, as suas respostas não importam, porque foram iguais.
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– Mentira é quando se diz, conscientemente, uma coisa que não é verdade.
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– Mentira é quando se diz, com maldade, uma coisa que não é verdade.
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– Se dissermos uma mentira porque alguém nos disse, e acreditarmos, não estamos bem a mentir.
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Estou perplexo por ter conseguido segurar uma afirmação imprecisa, em que as coisas são absolutas, e tornar tudo mais complicado. Como se tivesse aberto um relógio para explicar como funciona, não o tendo conseguido e ficado com peças de sobra ao remontá-lo.
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A «inverdade» ocorreu-me quando vi uma imagem datada, dum episódio ocorrido antes do meu nascimento e que julgara, de algum modo, ter sido coevo. Em instantes chegaram-me situações diversas do uso das palavras «verdade» e «mentira».
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Os políticos são mestres em retórica e se acumularem com conhecimento jurídico fazem naperões com artifícios linguísticos – mestre deve ler-se sábio, mas sabe-se que nem todos os mestres são mestres, se digo mestre é para facilitar. Na oratória repete-se a palavra «inverdade» – recurso abusado quando há pouco de substantivo e quase tudo de partida de ténis, possivelmente o desporto mais enfadonho.
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– O que vossa excelência disse é uma inverdade!
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Quem sentencia chama mentiroso ao outro e todos entendem. Na resposta, o visado não acusa a estocada que o opositor deu não dizendo. No espelho o direito é esquerdo, verdade e mentira.
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Aprecio o texto complexo e o virtuosismo do escrever, mas não é por gostar da pintura barroca flamenga que tenho de me deleitar com a escultura barroca portuguesa. A palavra «inverdade» tem-me agoniado até às veias.
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No entanto, a inverdade não é afinal só perversa, como a tenho avaliado. Quem a criou merece um Nobel qualquer – talvez a tenha gerado malignamente, mas tem uso bondoso, como a nitroglicerina serve para partir a rocha das minas, matar e dilatar as veias do cardíaco.
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O que me faltou, essa palavra, naquela conversa avessa.
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– A mentira que dizemos julgando ser verdade é uma inverdade.
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É brilhante! Não a minha descoberta, mas a invenção.
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Nota: na memória tenho um passeio por Braga, na década de oitenta, em que viajei de eléctrico. Afinal, estão parados desde 1963.
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