digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sexta-feira, janeiro 16, 2015

A minha ida à guerra

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Com a idade limite, fiz a inspecção militar num dos quartéis da Ajuda, em Lisboa. Reparei na clivagem de tratamento dos militares, muito educados com quem poderia ser chamado para oficial e agrestes para com candidatos a praças.
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Ainda assim, ia-me chateando com um palerma dos Comandos que me fez exame oftalmológico. Saí do quartel pelo meu próprio pé, pois escapei por centímetros duma porta que se abriu com a força dum obus, empurrada por um tipo dos Fuzileiros.
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Passei a primeira manhã a fazer testes de vária ordem. Descobri que tinha bons reflexos e acuidade visual, quando um magala, um dos que monitorizavam a prova, se chegou e disse:
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– Se não queres cá vir bater com os costados, é bom que comeces a falhar.
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Preguicei, então. Bocejei nesse e nos testes de valência aparentada.
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– Obrigado, bacano.
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A inspecção militar tinha a duração de dois dias, que na realidade era de um dia e meio… diziam dois dias, com a sabedoria de que o tempo não dura o mesmo nos quartéis. Ao meio-dia da primeira jornada faltava-me só ser visto por um médico, mais graduado do que aquele que me topou a coluna torta, e ter uma entrevista final.
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Era meio-dia e podia ir embora, pois sabia-se que o tal médico não iria estar. Mas não se podiam saltar etapas, pelo que quem me faria a entrevista não adiantou trabalho… e tempo… e paciência.
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Na manhã seguinte apresentei-me e lá fui visto por o tal médico, que era antipático a roçar a má educação… como se eu fosse culpado por estar ali e de ter a coluna desarranjada. Depois entrei no gabinete dum oficial tarimbeiro, que fingia haver uma hipótese de escolher o ramo e a arma. A entrevista era mera formalidade. Estava liberto, podia dirigir-me à Porta de Armas e sair assim que gritassem o meu número.
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Gritaram, mas, em vez de sair, entrei para um anfiteatro. Ali penei cinquenta minutos, mais uns tantos mancebos. Ninguém dizia por que estávamos ali… tropa entrava e tropa saía, uns jovens chegavam pelo próprio pé e outros vinham escoltados.
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Aquela espera revelou-se como uma das coisas mais estúpidas que devem existir na vida militar. Aguentar e calar. Quando lhe apeteceu, chegou um oficial subalterno que informou a sala:
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– Quem está nesta sala foi dado como inapto ou, por ter até três deficiências, deverá passar à reserva.
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Tinha bastado um postalinho, um telegrama, um telefonema ou um ritmo mais acelerado… cinquenta minutos até que o anfiteatro se enchesse, para não ter muito trabalho em dizer as coisas várias vezes. Tanto lhe fazia, era oficial do quadro e nós paisanos e hipotéticos futuros subordinados… éramos quase qualquer coisa.
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A minha ligação ao mundo militar é… uma coisa engraçada. O meu pai e o meu irmão foram militares, ambos voluntários na Armada. Quer um quer outro foram empurrados. Este ramo dos Barbosas não se dá bem com a instituição castrense… nem o meu avô Francisco foi chamado, tinha a idade certa para ser flagelado na Flandres ou desbaratado em África – coisa que pouca gente sabe: os portugueses foram malbaratdos pelos boches em Angola e em Moçambique, fizeram o que quiseram.
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Tão remota é a ligação à instituição militar que só no casamento dum primo, com a filha de um general, é que percebi para que servia o serviço militar obrigatório. O Exército tinha – ou tem – uma quinta, com capela, cujo uso é… servir para casamentos, provavelmente só para alguns.
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Tinha um Renault 5 TL, cinzento metalizado, e apontei-o ao portão. Um magala, fardado com a «número um» e luvas brancas calçadas, pôs-se diante do meu carro-de-assalto blindado, fez-me continência, chegou-se à janela, pediu-me os documentos e mandou-me seguir.
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Segui muito devagar… percebi que devia ir mesmo muito devagar, pois, dum lado e doutro, perfilados, jovens, vestidos com a «número um», batiam-me a continência, com luvas brancas calçadas.
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No final dessa alameda, um soldado mandou-me parar e fez-me continência. Fez-me sinal para o seguir. Corria com aprumo. Depois parou, bateu-me a continência e afastou-se. Logo substituído por outro… continência de luva branca… a correr até que parou, saudou com a mão junto à testa e logo outro surgiu com os mesmos preparos. Este terceiro servia para ajudar nas manobras de estacionamento.
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Nos anos noventa, Lisboa vivia o auge do pesadelo do consumo de heroína. Farrapos e zumbis ganhavam a vida nas ruas, a indicarem lugares de estacionamento a troco de alguns escudos. Perante aquele espectáculo fandango, questionei-me se haveria de dar uma moedinha ao soldado. Não dei, o pré chegava-lhe bem, certamente.
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O casamento foi chato, como todos os casamentos. O sogro do meu primo vestia um traje antiquado, de opereta, com dragonas e um chapéu esquisito. Acho que era a farda de gala… depois da missa mudou-se, e vestiu um fraque. Haja normalidade!
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Até aos trinta e três anos tinha feito a inspecção militar e participado numa manobra militar de alto coturno. Aos trinta e três anos estava desempregado e o Instituto de Emprego e Formação Profissional chamou-me para me perguntar se queria realizar trabalho de ocupação. Receberia mais vinte por cento de subsídio e trabalharia quatro dias por semana, o outro era para procurar trabalho.
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– Claro que sim! Para onde é?
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– Para o Arquivo Histórico Militar.
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Ora eu, com formação em história, adorei a ideia… de tal modo que ainda arrastei para lá uma grande amiga – a Carla Pedro, doce e de coração terno. No primeiro dia útil de Abril de dois mil e três apresentei-me na Porta de Armas, que dá para o Pátio dos Canhões do Museu Militar.
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Não me lembro da formalidade, sei que recebi uma letra, que definia até onde poderia ir dentro daquele complexo, que agrupa o Museu Militar, o Arquivo Histórico Militar e o Estado Maior do Exército.
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A Porta de Armas situa-se junto à estação ferroviária de Santa Apolónia. No largo informe desenrascou-se um parque de estacionamento para os automóveis dos oficiais superiores e carritos de serviço. Desde então que duas questões me assaltam:
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– Por que é que um oficial superior tem direito a carro e motorista? Por que é que o automóvel de serviço é um carrito de família de classe média-baixa, com muitos anos e quilómetros?
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Um tenente-coronel sentado no banco de trás dum Opel Corsa de três volumes, guiado por um jovem ao serviço da pátria, não dá a dignidade que se pretende. Se o país é pelintra, que se poupem os cobres gastos em carritos. Já os oficiais generais tinham outro tratamento. Quando havia reunião, o Pátio dos Canhões – que é uma área museológica – transformava-se no parque de estacionamento de Mercedes pretos.
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Ao contrário do que acontecia com os outros parceiros de actividade complementar, quando me aproximava da Porta de Armas, os lanceiros punham-se em sentido e faziam-me continência. Como não percebia, tratei de questionar um sargento lá do serviço.
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– É simples! É novo, tem o cabelo curto e vem à civil… é porque é oficial.
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Acrescento que tinha menos trinta quilogramas do que hoje. Um camarada de ocupação – um feliz gozão com inteligência – tratou de me meter veneno:
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– Na próxima vez diga-lhe: À VONTADE!
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Hã, hã… estava-se mesmo a ver.
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Brincadeiras à parte, a verdade é que ganhei muito respeito e consideração por aqueles militares do Arquivo Histórico Militar. Simpáticos, educados e muito interessados no trabalho que exerciam. Todos, sem excepção, estavam prontos a ajudar os noviços com dúvidas.
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Digo por brincadeira que fiz a tropa no Arquivo Histórico Militar, na altura dirigido pelo tenente-coronel Aniceto Afonso. Além de pessoa de bom trato, foi Militar de Abril. Nunca assentei praça, mas ali percebi que a tropa não é uma tortura.
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Gasto o sangue do impulso por via da idade, embora ainda com raros cabelos brancos, compreendo a nobreza da função militar. O serviço militar não me teria feito mal. Olhando para ontem e hoje, percebo que foi asneira terminar com a obrigatoriedade, desde que reconhecendo o direito à objecção de consciência e civicamente colocar as mesmas obrigações às moças.
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Aos dez anos insistia que queria ir para os Pupilos do Exército. Ainda assim, sei que não fui fadado para a instituição castrense, embora sonhe acordado em que comando uma corveta ou rode a torre de um carro-de-assalto com lagartas.
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Cheguei aos quarenta e cinco anos e ouvi dizer, há muito tempo, que aos quarenta e cinco anos se ficava, de vez, livre de cumprir serviço militar. Procurei e é aos trinta e cinco anos… podia ter feito a festa dez anos mais cedo.
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Mas o prazer daqueles seis meses na minha «guerra»… foi mesmo muito bom.
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Nota: Caro coronel Aniceto Afonso, se me ler, não leve a mal as brincadeiras. Foi um privilégio aquele tempo de serviço cívico que cumpri no Arquivo Histórico Militar.

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