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É um dia inteiro, esta tarde vaga e de silêncios. Um dia inteiro de solidão para que se possa levitar, ter esperança de voar. Ninguém vê. Ninguém se lembra. Ninguém sente. Só. Solidão no silêncio e deserto da casa.
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Lembro disso. Era miúdo e o casarão estava quase vazio de gente, só a minha prima velhota. Nos corredores entrava a luz possível, filtrada pelos vidros martelados e esgueirada pelo espaço deixado pelas portadas dos postigos. Brincava a uma espécie de macaca, uma espécie de pé-coxinho, sozinho, já se vê, sobre os ladrilhos com padrões do chão.
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Era o ar das manhãs prometedoras. Das tardes quentes. Das noites escuras. Era aquele tempo todo, entre a infância e a maioridade imaginada. Tinha tantos sonhos, que sonhava um dia não ter sonho nenhum. E realizou-se o sonho.
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Restam as tardes como esta. Todos os dias, meses a fio. Nem amores nem desamores. Só na vida, como no sono, como no sonambulismo. Um fantasma com corpo, com pouco para dizer e nada para ouvir. As tardes são longas e a vida curta. Uma tarde inteira de meia vida, de pouca vida. Um dia haverá. Um dia. Um dia.
Uma vez fui ver uma exposição ao museu do Chiado sobre surrealismo. Fiquei fascinada com os desenhos feitos "a duas mãos às cegas". A folha dividida ao meio, tu desenhas deste lado, eu desenho deste, depois desdobramos a folha e contemplamos a simetria concêntrica que criámos às apalpadelas. Deviam ser os surrealistas a fazer os testes Rochard.
ResponderEliminarah, esqueci-me de acrescentar, isto tudo porque ao ler o teu texto de hoje me pareceu que ele surgia do outro lado da folha de papel do meu...
ResponderEliminaressas obras designam-se de cadáveres esquisitos. também se fizeram em literatura. quando andava na escola fazíamos essa brincadeira; um escrevia uma frase numa linha e deixava uma palavra na seguinte. tapava a sua frase e o outro escrevia uma frase a partir da palavra deixada, e assim por diante.
ResponderEliminarlembro-me disso, fazia com o meu colega de carteira, o Zé. Lembro-me que às tantas, era uma história sobre um koala vindo do espaço. Depois ele começou a fumar ganzas e fartou-se. Muito antes disso, nas aulas de português do 11º ano, ele costumava-me dizer (sempre que as aulas eram sobre Garret), "olha, já agora, lembra-me de cortar as unhas dos pés... não, nenhum de nós queria saber sobretudo não de Garrett
ResponderEliminardizia eu para a setôra: arret, arrete, oh Garrett
ResponderEliminare diria que essa das unhas dos pés era um convite desastrado para um estado de maior intimidade. devia tê-lo beijado ;-)
ResponderEliminarNunca me passou pela cabeça beijar o Zé e acho que o Zé também nunca me quis beijar. Ele era sobretudo, já nessa época, um provocador...
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