digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

segunda-feira, maio 30, 2016

Espelho

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Os corpos renovam-se em sete anos. Nenhum velho morre velho. Mas o espelho e as fotografias dizem do tempo. A mana não me reconhece como o bebé que se aliviou na saia nova da adolescente vaidosa.
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Isso importa. Importa-me a paciência que substituiu a impaciência. Importa-me a impaciência que substituiu a paciência.
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– Ser jovem é ter espírito jovem!
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Quem diz de mente, mente. Porque ser-se bonito por dentro só encanta os feios.
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Agora quero a calma que sinto lentidão. Os brancos e as rugas são-me indiferentes, mas não o rosto e o encarar.
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Hoje sou mais velho do que alguns já vistos. Passaram-se os vinte cinco, quando entristeci pelo simbolismo. Passaram-se os vinte e oito, passados numa euforia cortada porque um adolescente me tratou por senhor. Passaram-se os trinta da leveza e dos terrores. Passam-se os quarenta.
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Olho para as fotografias e não reconheço o espelho.

terça-feira, maio 24, 2016

Espera

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Diante do vazio, não importa se gente ou dores. Nem o tempo, saltam-se os minutos.
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A vida encurta-se quando se engana o tédio e mingua ainda plo desinteresse de a viver.
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As nove horas da espera no ruído do hospital são um conto infantil. O receio que nenhuma criança reconhece e menos antevê.
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A mãe desamparada é uma menina medrosa.
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Eu, como se fosse anjo

quinta-feira, maio 19, 2016

Se uma brisa

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A inércia e a gravidade equilibram-me. Se tivesse uma vontade, .
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Tenho quarenta e seis anos e não sei o que faço aqui.
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Amei as mulheres que tive de amar. Amei demais e amei demasiadas. Talvez seja a mesma coisa ou causa e consequência.
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Gastei o dinheiro que tive. Desta vida não levarei nada e não terei.
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Soube da bondade e estraguei. Podia ter sido bondoso e não fui. Podia ter sido inconsciente e não fui.
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Envergonho-me de muita coisa e pediria perdão se conseguisse encontrar as pessoas. Tanto me faz das vergonhas que passei por desamor de outros, façam as suas contas, faço as minhas. Amor-próprio não tenha. O orgulho brilhou, mas resta lama. A soberba alimentou-me, tenho fome.
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Fui sempre quem sou. É da minha natureza ser outro, que valha a pena ou tenha o meu verdadeiro préstimo.
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Não minto e nunca roubei. Enfrentei por outros e fiquei só, mas que façam as suas contas, faço as minhas.
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Nada me prende, nem mesmo uma corda que sustente o que me resta. Se tivesse uma corda, . E soubesse fazer nós, tivesse um tronco robusto duma árvore.
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Se tivesse nitroglicerina trataria da cabeça e não do coração.
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Tivesse uma brisa de vontade, enfunaria a vela da barca de Caronte.
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Um lençol, uma vela, uma corda para a fuga.
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Tenho quarenta e seis anos e resto.

A espera

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À noite vou à janela e chove. Em frente, despes-te diante da rua.
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Fico na penumbra para que te tenha.
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Vais deitar-te e fazes amor.
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Fico à espera dum milagre e as horas passam.
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No outro dia, de noite, vou à janela e pode estar sol. Em frente, despes-te diante da rua.
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Fico à espera do tempo infinito e sem data em que faremos amor.

Alcatrão

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A vida cola-se-me como alcatrão quente. Tão negra. Tão fria.

quarta-feira, maio 11, 2016

Telecomando

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– Boa noite querido. Dorme bem. Até amanhã.
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– Humm…
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– Estás a dormir?...
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– Humm…
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– Au! O que é isto?
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– Humm… isto o quê?
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– …
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– É o comando da televisão…
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– E por que está aqui na minha almofada?
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– Está aí para poderes mudar de sonho.

quinta-feira, maio 05, 2016

A janela sineira

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Tenho morrido, por coisas pequenas, notícias irrelevantes, situações da vida, é a verdade. Insignificâncias sem lágrimas, pungências desarrumadas, desilusões de embate mudo e carências esquecidas.
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Morre-se desde o natal e sobrevive-se além-túmulo. Na dúvida vive-se dizendo valer a pena o tempo-vácuo. Para manter as aparências.
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Escreveria sem vírgulas, a vida. Sem elas para-se-me em lavra de pontos finais ou resvala nos desvarios impontuados e segue em enganos gramaticais.
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A banalidade da vida faz-me tristeza banal. O ouro que me encandeou é escondido e negado. A luz do dia não é nas minhas horas tardias. Se quase sempre aconteço antes, quando tardo não espera.
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Os sinos tão solenes não cantarão a partida. Irei como vivo e desisto, gritado e mudo.