digo e o oposto, constantemente volúvel, às vezes verdade. juro pela minha alma, mais do que vinho amo a água e só me desenseda e lava, a cara, o corpo e a vergonha de ser quem não quero. os sonhos antigos são sonhos e antigos e os novos de esperar, é esta a vida a mim agarrada, se esperança existe.

sábado, março 26, 2016

Data

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Lembrar uma data é prova de vida ou certeza de morte.
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Se evoco é porque morto.
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Mas se vivo, é a ingratidão.
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Quando dói a memória, é vivo ou defunto? A saudade é um remorso.
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Se lembra, vivo. Não telefono a mortos nem amo mais só porque.

quinta-feira, março 24, 2016

O escritório de Terezín

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Tenho um problema com a memória. Por isso, tenho um problema com a culpa.
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Tenho um problema porque inactivo e até mesmo tendo deixado, quase por completo, de ser cínico – adjectivo ou substantivo que infantilmente desejei e cultivei. Porém, centrando o assunto, o dilema é a memória.
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Ser-se culpado é menos chato do que se reconhecer culpado. A memória existe também para isso, e se castiga também por ela se pede o perdão.
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Lembro-me mais vezes de mil novecentos e quarenta e três dos que de dois mil e quinze.
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Em mil novecentos e quarenta e três, eu era um anónimo ariano, conveniente Obersturmführer da Schutzstaffel sem perguntas, poucas respostas para dizer e sem falar à consciência. Dois anos depois a culpa não era minha, eu não era nada, não tinha feito nada, cumprira ordens, só isso e até morrera.
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Se era anónimo, por que me lembro mais de mil novecentos e quarenta e três do que de qualquer outro ano recente? Porque sou verdadeiramente nulo, os meus actos inalcançam.
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Lembro-me agora. Dói-me de vergonha, queixo-me de mim, dos silêncios, da cobardia e do desamor. Conto agora porque vi a metáfora de vidas. Na distância entre a carne e o sítio não há cheiro, apesar do pó dos anos a pesarem nos arquivos.
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Em cada compartimento ficava uma pessoa – os papéis que a tornavam coisa, justificando a sentença.
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O arquivo está em Terezín, na Boémia. Uma fantasia macabra, a cidade encenada, com lojas, dinheiro e posto dos correios. A cidadela fechou-se num forte, uma judiaria exemplar.
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Como se a fome e as doenças fossem incompetentes, havia transportes para os campos de Auschwitz, onde morrer era menos prosaico.
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É sabido que nos prendemos às coisas tal como as memórias se agarram a nós. Quantos não renasceram e estão numa espera de dor – de remorso, de rancor ou de incapacidades. Quantos não regressaram e pelas mesmas razões? E os que sempre estiveram.
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Posso ter estado ali. Em mil novecentos e quarenta e três ou antes ou depois, não sei precisar a data da minha morte.
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Posso ter estado ali. Pelo menos alguém esteve, confortavelmente anónimo e inculpável, como eu, servindo como amanuense. Que disse e diz à consciência e à memória?
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Dirk Reinartz fixou a hora e a função, logo depois de esvaziado o teatro. Os olhos de W. G. Sebald escreveram Austerlitz e Daniel Blaufuks foi ver e trouxe a cor, um modo de mostrar o cheiro, deixou o relógio.
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Duas fotografias da mesma coisa mostram, da mesma forma, a mesma coisa, de modo diferente. A verdade é uma e muito grande para uma só boca – só há uma.
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Nota: Decidi escrever este texto porque me fiz tropeçar no passado ao pensar no drama dos refugiados. Caí na fotografia de Daniel Blaufuks e subi o rio. No sítio da RTP, uma hora de entrevista com Ana Sousa Dias esclareceu ainda mais do que informou. Não as contei, mas desta vez o cliché, de que uma imagem vale como mil palavras, é retrato de corpo inteiro e sobra. Não há uma palavra a mais nem nada a menos nas fotos, na de Reinartz e na de Blaufuks.

Quando te despi e fotografei e não o fiz

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Agarrei numas fotografias que estavam num daqueles sacos de papel e vieram-me memórias. Ou foi o oposto, uma lembrança inútil que puxou outra e finalmente acudi àqueles papéis.
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Não fiz de propósito e os acasos inexistem. No topo estavam as ampliações dos nus. De que serve a nudez com vinte anos de atraso? Nem para socorrer aflições. Sei do tempo, vários afectos e, além do mais, és tu – que te despiste sabendo que seria arte e só foi, ainda segredo.
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Esses nus ainda não estão documentos – se o fossem estariam mortos. Continuam arte e pudor. Nem me lembro quanto aqueci ao ver-te entrar pela câmara.
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De tudo o que quis, quase tudo deixei. Dispensava as dores dos afectos, suas cicatrizes, memórias e Narciso em queda.
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Mas sem erros e sem memória não se aprende, não é?!
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Não é! A mesma tendência para o coração partido, fractura exposta, e alma amarfanhada em bafio – noites de insónias em dormências, tanta vergonha e arrependimento. Despojando-me à miséria e tão tarde, sempre tardiamente consciente.
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Por que te deixaste fotografar nua? Tinhas-me. Por que te deixaste fotografar nua? Querias-me. Por que te deixaste fotografar nua? Queria-te. Por que nos fotografamos nus? Por que não te despiste?
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Já reparaste que te escrevo não só. Aliás, esta fotografia nem é tua. Por que te despiste? Por que não te despiste?
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Por que fizemos amor? Por que fizemos sexo? Por que fizemos amizade? Por que fizemos engano? Por que não fizemos nada?
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Cada nu é um espelho onde estamos separados mais pelo tempo do que pela dimensão ou situação.
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Hoje talvez apares a púbis… não penso nisso. Pensei agora. Sim, pensei. Pensei, porque nesses nus és bosque.
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E tu, que te nunca te fotografei nem vi nua, como tinhas, jardim ou natureza?
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Ia perguntar-te como tens, mas… não quero inventar fantasmas nem criar feitiço.
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Por que fizemos amor? Por que não nos saboreámos?
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Sem inventar feitiços nem criar fantasmas, penso cientificamente, na pureza da chatice do pensamento vácuo, no que aconteceria se fosse hoje, agora, neste instante, com todas as pessoas e dias do meio entre nós deixadas à porta.
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Como então, a roupa descendo e o espelho subindo e repousando.
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Tirarias a roupa? Fotografava-te? Faríamos cama?
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Repara, não és tu quem está na foto.

Se passando passasses

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Se uma menina como tu assim passasse igual e diferente fosse nua, haveria de me baixar os olhos na vergonha infantil por confundir o desafio com um convite.
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Mas não. Passas assim, vestida acertadinha, muito bem arrumada e composta. Os meus olhos preocupados seguem-te ao quarto onde nua, para então.
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(…)
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Passaram-se duas horas e a tarde ainda desabitada. Nem dei por aquecer a pedra onde sentado fiz amor distraído.

Oitenta e duas piscinas de vinte e cinco metros

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Na incerteza da vida, se vivo ou se vivo, sobrevivo desistente e incansavelmente fatigado, por causa do tédio, a prova da minha incerteza.
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Se o digo é porque duvido, pois as certezas não precisam de pontos de exclamação e a realidade é mais do que o sentido.
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Quanto vale o um e o dois, se são primeiros não são longe. Distante paga bem e recompensa o valor da ilusão. Quatro anos-luz é aqui ao lado e quatro mil milhões de anos é menos de um terço do tempo todo que a ciência admite.
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Os números são cruéis ou apenas. Apenas, pois vou nos quarenta e seis e sei-me infantil e dez é esperança curta ao nascer. Aonde chegarei dista a paciência para o tédio e as alegrias que escondem a sombra.
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Se pudesse voltar só faria igual se soubesse do fim. A arrogância, o orgulho e a negação ditam palavras gordas e tudo o gordo é estúpido:
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– Faria tudo igual!
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As certezas não precisam de pontos de exclamação nem Deus que seja vingado. Se me doeram as pernas e o desânimo assou a pele, para que faria igual se pudesse voltar?
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Mais ou penos o sentido depois de nadar oitenta e duas piscinas de vinte e cinco metros e quarenta e cinco minutos quando se tem trinta e quatro anos, este amor a quatro. As gatas são, ainda que a Lioz não esteja.
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Mais ou penos o sentido depois de nadar oitenta e duas piscinas de vinte e cinco metros e quarenta e cinco minutos quando se tem trinta e quatro anos, o amor a dois, o desamor a mim e tanta gente devassadora, raptada ou nunca-expulsa.
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Lembrar uma data é prova de vida ou certeza de morte.
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Se evoco é porque morto.
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Mas se vivo, é a ingratidão.
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Quando dói a memória, é vivo ou defunto? A saudade é um remorso.
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Se lembra, vivo. Não telefono a mortos nem amo mais só porque.
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Nota: O infotocopiável faz dez anos e a Granita doze, a Lioz é no sítio dos espíritos.

sábado, março 19, 2016

Poema da minha vida

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Escrevia poemas bonitos, davam-me beijinhos e palavras.
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Um dia uma miúda e outra e outra davam-me aperto e em silêncio vivia. Escrevia e não mostrava.
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Sem perceber uma raiva e escrevia, batiam-me palmas.
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Embarquei e em cada porto um poema, aleijava, às vezes doía-me e davam-me beijinhos e palavras.
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Um dia mostraram-me que se pode morrer, escrevi com lágrimas.
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Um dia apresentaram-me a morte e quase tudo são violetas fechadas numa casa de mármore.
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Se for amor, tenho beijinhos e palavras. Se for escuridão, tenho silêncios.

segunda-feira, março 14, 2016

Senhor doutor, tenho uma dor

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O médico perguntou-me:
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– O que o traz cá?
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– Estou muito doente!
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– E do que se queixa?
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– De hipocondria.

O chá

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O céu é azul.
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Mais bonito não há.
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No lume está um bule.
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Fervendo água para o chá.

Uma conversa muita antiga

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Aquela vez que agarrei o beijo porque as palavras eram densas e escuras, sem lanterna muito mais para se ver. A cada vogal, cada consoante, cada sílaba até ao parágrafo e contraposição. Quanto mais os teus diziam, mais os meus sentiam o beijo na beira – mas a cabeça muito mais junta e o relógio afastado. Se olho para trás, se penso no beijo que ficou no tambor do revólver, é da conversa inacabada que me lembro.

Corações Irritáveis – João Paulo Guerra – edição Clube do Autor

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Fujam! Ele anda aí e traz um livro! Malandro, rapina de patetas e com sentido de humor inteligente capaz de pôr a sorrir um alemão da Prússia Oriental. João Paulo Guerra deu-nos à luz um novo livro.
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Brincadeira à parte, trata-se dum livro que não é nem brincadeira nem para brincar. É um romance acerca da Guerra Colonial, tema ainda carente de produção, seja ficcionada ou histórica.
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Não o li, mas assino a recomendação – aqui não há risco como no caso do Grupo Espírito Santo.
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O homenzinho do microfone, como se definiu a si mesmo com palavras duma entrevistada, escreve bem como poucos, sabe do mundo e de o dizer. E ficar à conversa é pouco – pelo menos para mim.
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Termino como comecei, a meter-me com ele: Ainda não li o livro, vou ler e dizer mal.

Perdoa se a alegria e salta para a felicidade

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Os olhos parecem tristes, sei que sorri. Vejo-lhe mar chão, mas atrás das vistas pode doer um coração e o horizonte é longe. Se o mar dos olhos, não haja nem brisa arrefecendo-a ou tumultoando-a, mas o Sol secando-os.
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Nota: Para a MR que publicamente pediu um poema ao mundo.

sexta-feira, março 11, 2016

A realidade é o rio paralelo

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Nem caído nem descaído, e não anjo – por isso. Sem a tocha da manhã, mas com pedra de subir como banco.
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Nem desobedeci nem adolesci. Sentei-me com um escuro embrulhando olhos, pensamento e alma. Perguntei e sem resposta desisti quieto, e nem tédio ou angústia – ainda antes.
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Profano ou pagão ou confuso por uma questão impossível:
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– As sereias cantam. As sereias são mulheres?
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Na tepidez do tempo infinito fiquei na pedra de subir e pensando fui sereio – não cantei. Até um salpico me acordar.
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Nem tocha de alvorada e sem pedras de subir ou descer, só o aborrecimento.

Gomas-lábios

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Lábios de fino traço de carmesim, seguro e de aguarela, tão larga força de prisão dos meus olhos. Eternamente aí, não fossem resgatados por tuas duas gemas de castanho e brilho. Sem libertação, um novo cativeiro.

Azeite Tapada da Tojeira

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O design, como a arquitectura e a enologia, é uma disciplina técnica. Porém tem portas abertas para a estética. Gosto muito da simplicidade funcional do rótulo do Azeite da Tojeira. O bom e o bonito. Dentro da garrafa também.

segunda-feira, março 07, 2016

Que depois seja antes de antes

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O sono é uma porta de engano. O sonho está do outro lado e tenebroso e pior. Meta-carne não sacia e menos sobeja. Simples desistências. Só a desexistência basta, a Deus a peço por graça ou mercê. Não construo nem desisto e nem fumo ligeiro perdure.

Kafka

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Tenho a certeza de que não estou na minha vida.

Febre

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Estou febril e isso esgota-me, ainda o dia do lado de fora da janela, de dentro da vidraça, em mim e expiração.
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Foi um pesadelo de estar acordado, muito pior do que dormindo. Foi uma saga, antes morto. Morrendo-me e matando tudo.
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Um vampiro suicidário e insaciável, dolorosamente consciente.
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Sou o pijama meio do avesso espalhado por onde se não dorme e no vazio de gente.
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Não, não estou com nervos em franja. Um longo cabelo despenteado e emaranhado, simultaneamente oleoso e casposo.
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Não existe este sítio em mim. Contudo sim. Não existe porque não quero nem o quero nem.
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Assim invisível, involuntário e invisível.
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É um bom dia para um suicídio silencioso.
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Todas as lágrimas estão fechadas e o mundo dorme sem dar por mim.

quinta-feira, março 03, 2016

Óbvio

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Quando digo não, pode ser sim. Tal como o oposto. Ou talvez até talvez. Talvez sim ou talvez não.

Escarlate e púrpura

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Das tuas uvas, a bebida sagrada da festa. Como se fosses romã, despindo-te beijando gomo a bago. O sol do Alentejo na boca e o luar cheio nos olhos.

quarta-feira, março 02, 2016

O destino é uma Lei de Newton

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Há passado sem ida e futuro de ficar. Não fales de destino nem de promessas, ambos de cumprir e transgredir. Respondo-te com ciência e sua certeza, a Lei da Gravidade: nenhuma da nossa roupa ficará por cair. Digo-te do magnetismo do ferro, tintura do sangue – o calor do desejo e da nudez. Não fujas, a Terra é redonda, fico parado. Não te escondas, buscarás luz, meus olhos como estrelas. Promete-me o que queres, igual a quero.

Até uma conversa acabar

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Quero-te por todos os sentidos, de panorâmica a próxima, do sussurro e ao respirar acelerado, da pele resguardada ao deslumbre inebriante, da saliva e à flor, do crespo ao veludo.
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Ter o tino de embarcar na loucura, esquecer que o mundo é uma bola e confundir o sítio onde se está com o mesmo sítio onde se está – como se está.
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O mundo não acaba amanhã. Acabou e sobrevivemos. Antes que acabe novamente, façamos como se com ele partíssemos.
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Meiguice até à dor e ficar até uma conversa acabar.

Temperaturas de serviço

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Ao contrário da vingança, a paciência serve-se quente.

terça-feira, março 01, 2016

Há muitas maneiras de fazer pão

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Cartas de poker – escrevo-as de amor e gratidão aos amigos sábios, de mundo de horizonte com caminho, onde me sacio e compreendo a escuridão – só de ganhar. Ases há poucos e reis também. Faltou sempre alguém para o meu pai me ensinar bridge. Tenho cabeça pequenina e certamente ficaria pelo king, jogo tão maçador. Prefiro a canasta e música de câmara, o tango e sangria sem gasosa, o granito românico e a fotografia parecida com a pressa. Escolho arte contemporânea porque a moderna me aborrece, o impressionismo é piroso e concluo das excepções – sem as mãos, sintetizo o caminho do pai, da vanguarda possível do país ao pincel de academia. Os sábios dizem poesia ou sabem-na, outros coleccionam perfumes, dizem dos fumos, dos vinhos e das mesas – uma receita é uma lei, fora dela pode ser qualquer coisa, mas nunca o mesmo. Entendem a estética, que não é bem o bom-gosto, a moda e o bonito, vai do a propósito ao horrível. Sabem do nu descendo as escadas e da Nossa Senhora com o Menino, dum anónimo português do século XV. A superioridade é-lhes pela naturalidade e educação por onde vertem e onde maravilho as novidades, reparos e ângulos, além da perspectiva cavaleira, sabedores do uso das orelhas. A beleza da sem arrogância nem sobranceria, a educação galante do respeito – quando se respeita, o espelho favorece e Narciso vai comprar cigarros. Porque não há cultura sem pão nem homem sem cultura – só animal. Sabem ler e ouvir, histórias, estórias, fantasia, enganos, imprecisões de tempero e a singularidade de assumir quando não se sabe – diferença entre o ouro baço e o brilho da fancaria. Horas com uns e minutos com outros. Ter estas cartas é poder ir a jogo, depois com todos os feijões cozinhar uma coisa saborosa à pressa, elogiando os defeitos.
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Por respeito e decoro, deixo as iniciais… sabem ler siglas: AS, CF, DS, FC, FM, MJ, SGC… e por aí. 

Dingue-dongue

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Com um beijo toco à tua campainha, conversamos e convidas-me a entrar.
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Se há destino, que se cumpra. Se não há, que se invente.
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Não se recusa o leito a um rio.
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Não há rio que não molhe.
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Não há rio sem foz.
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Não há água que não volte.
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Podemos falar disto toda a noite.
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Inconclusindo, concordando ou divergindo, voltarei a tocar-te à porta para conversarmos.